Relacionamentos espaciais

Relacionamentos espaciais como "dentro de", "cruza", "toca" podem ter interpretações diferentes para cada um de nós mas, para o GIS , não.

Uma das características mais importantes de um GIS é a possibilidade de construir e trabalhar os relacionamentos que ocorrem entre objetos do mundo real e que são devidos às suas características espaciais. Esses relacionamentos decorrem das características de localização e geometria associadas a cada objeto geográfico, e seu uso em GIS é bastante freqüente. Por exemplo, são comuns consultas que procuram selecionar as escolas contidas em um determinado bairro, ou as ferrovias que cortam uma determinada região. Tais tipos de consultas são formulados desde que existe GIS, usando em geral um conjunto limitado de operadores definidos pelo sistema.

Como todos temos um conjunto de conceitos bastante intuitivo sobre o posicionamento relativo dos objetos, torna-se fácil exprimir em linguagem coloquial os relacionamentos espaciais que observamos: o ponto de ônibus está em frente ao supermercado; o rio divide dois municípios; a indústria é vizinha à subestação de energia; a estrada corta uma fazenda; e assim por diante. Apesar de intuitivos, esses conceitos têm uma transposição relativamente complicada para o computador, uma vez que precisam ser formulados com uma precisão que permita sua avaliação pela máquina.

Essa transposição de conceitos começa quando se procura modelar a aplicação geográfica. Nessa etapa, cada relacionamento importante entre os objetos envolvidos na aplicação é identificado e representado em um esquema, independente de ser um relacionamento espacial (aquele que é decorrente do posicionamento relativo e da geometria dos objetos) ou convencional (aquele que é decorrente de atributos comuns entre os objetos).

Os relacionamentos convencionais são representados com muita precisão pelos sistemas gerenciadores de bancos de dados (SGBD) usuais. Por exemplo, basta inserir um atributo contendo o código do departamento no registro de um funcionário para que se estabeleça uma relação entre aquele funcionário e seu departamento. Dessa simples regra decorrem algumas restrições que devem ser implementadas pelo SGBD ou pela aplicação, para garantir a integridade dos dados. No caso do funcionário e seu departamento, é necessário garantir algumas coisas: (1) o departamento deve existir antes que o funcionário possa ser membro dele, e (2) se o departamento for excluído, os funcionários ligados a ele devem ser antes transferidos para outros departamentos ou também excluídos antes. Essas regras são identificadas na literatura como regras de integridade referencial.

No caso de relacionamentos espaciais, a situação é um pouco mais complicada. A primeira dificuldade decorre da liberalidade que temos ao usar as expressões que denotam um relacionamento: dentro de, cruza, toca, vizinho a, em frente a, corta, atravessa, pertence, contém, e tantas outras. Como foi dito, cada uma dessas expressões carrega um significado definido por cada um de nós intuitivamente, mas nem sempre esse conhecimento intuitivo é suficiente para garantir uma implementação correta. Por exemplo, quando se usa a expressão cruza, quais das situações apresentadas na Figura 1 estão incluídas? Pessoas diferentes podem selecionar um conjunto diferente de respostas, e nenhuma resposta pode ser considerada errada na ausência de uma definição mais precisa do que viria a ser um relacionamento espacial denominado cruza.

Em qual (ou quais) destas situações a linha cruza o polígono?

Muitas vezes, a definição mais precisa de um relacionamento espacial pode ser o resultado de alguma convenção ou acordo. Em uma aplicação de trânsito aqui em Belo Horizonte, um atributo textual foi definido para conter uma descrição da localização de um ponto de ônibus que pudesse ser usada para orientação aos usuários pelo telefone. Em geral, essa descrição usa algum ponto de referência próximo, facilitando a comunicação com o usuário. Pois bem, depois do início da carga do sistema, foi definida uma convenção, segundo a qual a expressão em frente a seria usada para significar "exatamente em frente, do mesmo lado da rua", enquanto a expressão defronte seria usada para significar "do outro lado da rua". Isso apesar do dicionário considerar as duas expressões como equivalentes.

Alguns trabalhos acadêmicos têm enfrentado a questão, sendo que uma referência definitiva foi apresentada por pesquisadores italianos e holandeses (Clementini, E., Di Felice, P., van Oosterom, P. A small set of formal topological relationships suitable for end-user interaction. In Proceedings of the 3rd Symposium on Spatial Database Systems, 277-295, 1993).

No trabalho, esses pesquisadores analisaram todas as possíveis combinações de situações relativas entre pontos, linhas e polígonos, chegando a um total de 52 diferentes casos. Como essa quantidade de situações é excessiva para a memorização e uso prático, o trabalho parte para uma tentativa de agregação dos casos em grupos, ao mesmo tempo em que procura formular regras precisas para a sua aplicação. Ao final, concluíram que são necessários apenas cinco relacionamentos (denominados toca, em, cruza, sobrepõe e disjunto), com os quais todas as 52 situações podem ser simuladas. A Tabela 1 apresenta todas as combinações possíveis entre pontos, linhas e polígonos, e indica em cada combinação alguns possíveis relacionamentos e sua identificação usando os cinco relacionamentos definidos pelo artigo.
Os cinco relacionamentos definidos na Tabela 1 formam um conjunto mínimo, que pode ser definido formalmente usando alguma notação matemática. Esta é apresentada na Tabela 2, onde objetos são representados por letras maiúsculas. É usada a notação para significar a fronteira do objeto, e Ao para significar o interior do objeto, excluindo sua fronteira (portanto = A – Ao).

No caso de uma linha L, a fronteira é formada pelo conjunto de seus dois pontos extremos, e o interior é formado por todos os pontos pertencentes à linha excetuando os dois pontos extremos. No caso de pontos, admite-se que a fronteira é o conjunto vazio, e que o interior do ponto coincide com o mesmo. Também é usada a função dim, que determina a dimensão de um objeto, retornando zero se for um ponto, 1 se for uma linha ou 2 se for uma área. Apesar de ter sido provado que os cinco relacionamentos definidos na Tabela 2 são suficientes para representar qualquer relação espacial entre objetos, pode-se perceber claramente que as definições não são as mais convenientes para a maioria dos casos. Relacionamentos muito utilizados em aplicações corriqueiras, tais como adjacente a e coincide com, não estão explicitamente definidos – são percebidos como casos especiais de toca e em, respectivamente. Por isso, é conveniente que alguns outros relacionamentos espaciais sejam definidos formalmente, evitando a necessidade de referência às definições dos cinco relacionamentos básicos. A Tabela 3 apresenta a definição de outros três relacionamentos (adjacente a, coincide com e contém) muito utilizados na modelagem de aplicações geográficas.

Diversos outros relacionamentos espaciais poderiam ser definidos usando os mesmos recursos, mas existem dificuldades adicionais associadas a alguns deles. Primeiramente, um relacionamento muito útil, próximo a, somente pode ser definido com precisão caso exista alguma distância associada, ou seja, serão considerados próximos objetos situados a uma distância inferior à distância dada. Em segundo lugar, todos os relacionamentos envolvendo direções requerem também informação adicional para que sejam formalizados. Relacionamentos como ao norte de, em frente a, ou à direita de exigem algum referencial, além de critérios explicitamente definidos, para que possam ser implementados.

Finalmente, é importante estabelecer a diferença básica entre os relacionamentos espaciais e as estruturas topológicas, bastante discutidas em GIS. Os relacionamentos tratam de definições conceituais, que são incorporadas às aplicações, orientando sua implementação. As estruturas topológicas são apenas um dos recursos utilizados para materializar os relacionamentos espaciais entre objetos mantidos por um banco de dados geográfico. É essencial conhecer a fundo tanto a especificação dos relacionamentos ao longo do processo de modelagem de dados, quanto o potencial e as limitações das estruturas topológicas, para resolver problemas em GIS.

Clodoveu Davis é engenheiro civil, analista de sistemas, mestre em Ciência da Computação e Assessor de Desenvolvimento e Estudos da Prodabel – Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte. Rua Alagoas, 314/1501
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