O colunista Marcelo C. dos Santos analisa as motivações da União Européia para a criação do GALILEO

Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 1999, a Comissão Européia (EC), em conjunto com a Agência Espacial Européia (ESA), recomendou o desenvolvimento de um novo sistema de navegação por satélite, e correspondente infraestrutura terrestre, chamado GALILEO. Este sistema europeu teria o papel de atuar de forma complementar ao GPS, ou independente dele. A recomendação da EC está embasada em razões técnicas, políticas, e, porque não dizer, comerciais.

Tecnicamente pode-se considerar, por exemplo, que o GPS sozinho não satisfaz totalmente as mais rigorosas exigências do setor de navegação, principalmente as da aviação civil. Um sistema de navegação deve oferecer precisão externa e integridade suficientes à aplicação. Além destas duas características, o sistema deve permitir posicionamento contínuo ao longo da trajetória (disponibilidade e continuidade), principalmente, nas fases críticas do vôo. Neste contexto integridade significa a capacidade que um sistema oferece de detectar a ocorrência de um erro e de informar este fato ao usuário, de modo que ele pare de usar o sistema naquele momento.

Estas exigências somente podem ser alcançadas se o GPS for complementado, ou "aumentado", de algum modo. Com este propósito surgiu o conceito de um sistema global de navegação por satélite, conhecido pela sigla GNSS. Um GNSS compreenderia a constelação original do GPS aumentada por um número de satélites geo-estacionários com a capacidade de transmitirem sinais de navegação semelhantes aos do GPS, complementados por algumas estações em terra, que fariam o papel de controlar possíveis erros deste sistema. Este conceito ganhou bastante força na Europa, sendo conhecido pela sigla EGNOS.

Do ponto de vista técnico, um GNSS envolvendo sistemas como o GPS, o GLONASS, e futura complementação, já deveria ser suficiente para que serviços por ele oferecidos se enquadrassem no nível desejado. Do ponto de vista político, contudo, o GPS continua sendo um sistema controlado por um único governo (Estados Unidos) e por um único setor deste governo (Departamento de Defesa), em que pese o fato de que outros setores tenham se tornado bastante influentes (como o Departamento de Transportes). Este fato tem sido usado como um fator de instabilidade e desconfiança quanto ao acesso do GPS. A realidade é que o GPS tem sido colocado à disposição da comunidade mundial de forma gratuita por parte do governo dos EUA e, agora, sem a degradação do sinal (ver "Navegando", pág 14). Contudo, não existe uma garantia oficial de acesso em todos os momentos, mesmo levando em consideração as recentes propostas para sua modernização. Para os europeus, este fato já aparece como justificativa bastante forte para a criação de um novo sistema de posicionamento e navegação, que pertença a uma comunidade de países, no caso, à comunidade européia, e não a um único.

Aliadas às preocupações de natureza técnica e política, existem as razões de natureza comerciais. O mercado de serviços ligados ao posicionamento e navegação possui ainda espaços para serem ocupados não só na Europa, que seria a preocupação natural para os mentores do sistema GALILEO, mas também ao redor do mundo.

Unidade de controle GPS da empresa Suíça Leica: estima-se que a Europa tenha menos de 10% do mercado mundial de produtos GPS.

Existem duas propostas para a estrutura da constelação do sistema GALILEO, previsto para estar implementado no ano 2008. Na primeira proposta, o sistema seria composto por 21 satélites, a uma altitude próxima às dos satélites GPS, e mais 3 satélites geo-estacionários, operando integrados com o GPS. Na segunda proposta, o sistema teria uma constelação de 36 satélites, além de 9 satélites geoestacionários. Nesta segunda alternativa, o sistema GALILEO poderia operar totalmente independente do GPS. Adicionalmente, seriam necessários controles de terra. O GALILEO, como planejado, vai se constituir em um sistema de navegação global, operando em conjunto com o GPS, ou rivalizando-se a este.

O custo previsto para o desenvolvimento e implementação completa do sistema GALILEO, já em 2008, gira em torno dos 3 bilhões de euros. Um investimento que pode ser justificável se for considerado o mercado potencial do sistema. Estima-se que a Europa tenha uma participação de menos de 10% no mercado mundial de produtos GPS, que gira em torno de 6 bilhões de dólares por ano. Alguns alegam que isto se deve ao fato do GPS ser um sistema totalmente controlado por outro país. E que a tendência é de crescimento deste mercado com um sistema genuinamente europeu. Esta expectativa já seria uma forte justificativa para a implementação deste novo sistema.

Marcelo Carvalho dos Santos
é Ph.D. em Geodésia e Engenharia Geomática pela Universidade de New Brunswick, Canadá, onde é professor adjunto e membro do Laboratório de Pesquisa Geodésica. E-mail: msantos@unb.ca