O tema desta entrevista foi também o de um dos debates mais concorridos, e polêmicos, do GEOBrasil 2001, quando seus participantes abordaram as divergências de interesses que, não raro, existem entre empresas privadas, públicas, profissionais e usuários. Dr. José Roberto Fernandes Castilho, um dos debatedores, ressaltou as diferenças entre direitos morais, que não podem ser vendidos, e patrimoniais, que estão no mercado e podem ser alienados. Nesta entrevista, exclusiva para a infoGEO, o procurador do Estado de São Paulo, professor-doutor e vice-chefe do Departamento de Planejamento da FCT/Unesp – onde leciona no curso de Engenharia Cartográfica -, detalha este assunto e outros, como os direitos do contratante e a posição das agências oficiais de produção cartográfica.

InfoGEO – O cartógrafo tem sempre direito sobre a obra que elabora? Não é a empresa que detém estes direitos?

Dr. Castilho – Depende. O produto cartográfico é uma obra intelectual e, assim, o cartógrafo será o titular dos direitos morais e patrimoniais dela decorrentes. Os direitos autorais têm este caráter híbrido, desdobrando-se em direitos morais, que significam a vinculação definitiva do autor com sua obra, e direitos patrimoniais, implicando a possibilidade de explorá-la economicamente. Mas, na forma da lei, a empresa pode deter os direitos patrimoniais no caso da chamada "obra coletiva", que é aquela criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica que "coordena" as contribuições individuais. É o caso típico do mapeamento, um conjunto complexo de operações várias – geodésicas, fotogramétricas, etc. – que se fundem numa criação autônoma. Aqui, o grande problema é o de compatilizar os direitos da empresa e dos criadores individuais, tal como manda a Constituição.

InfoGEO – A transferência de direito patrimonial para o contratante deve estar prevista em contrato ou é natural, isto é, quem pagou tem naturalmente o direito patrimonial?

Dr. Castilho – Não, quem pagou não tem
"naturalmente" os direitos patrimoniais. Quem pagou tem o direito de utilizar a obra para a finalidade específica que gerou sua necessidade. Mas não pode cedê-la a terceiros, por exemplo, sem autorização expressa do autor. Apesar disso, os direitos patrimoniais podem ser cedidos, contratualmente; um contrato de cessão que se presume oneroso. Nunca, porém, os direitos morais, que são inalienáveis e irrenunciáveis.

InfoGEO – As informações das agências oficiais de produção cartográfica são públicas ou não?

Dr. Castilho – Esta é uma pergunta de grande relevância e muito pouco discutida. Exatamente por isso tratei do tema no GEOBrasil. Em linha de princípio, as informações geográficas são bens públicos de uso comum, de vez que necessárias ao "exercício da cidadania", como afirma o estatuto do IBGE, que é uma fundação pública. Mas, de outra parte, não poderia uma pessoa apropriar-se de obra produzida por órgão público para fins comerciais, por exemplo, sem a necessária autorização dele. A meu ver, este problema deveria ser muito mais debatido do que é, com a afirmação de um regime autoral específico para as chamadas "obras oficiais". Porém, a doutrina dos direitos autorais, em matéria cartográfica, ainda é quase inexistente.

InfoGEO – Muitos afirmam que a
legislação vigente não está adequada à produção cartográfica. O senhor concorda?

Dr. Castilho – Sim. Em face das novas tecnologias, a legislação autoral mostra-se um "artefato gutenbergiano" (Negroponte). Está sem dúvida ultrapassada em função das qualidades de imaterialidade, reprodutibilidade e comunicabilidade que os meios eletrônicos conferem à informação e, especialmente, à informação espacial. Ademais, por exemplo, a noção de obra original, inconfundível – que é um dos pilares da proteção autoral -, deve ser atenuada em muitos casos, inclusive na Cartografia. De outra parte, hoje, no campo autoral, existe uma tensão básica entre o interesse público na difusão do conhecimento e da cultura, de um lado, e o interesse privado na exploração da obra, de outro, que precisa também ser superada. Em suma, parece-me que a proteção autoral, no mundo todo, encontra-se numa fase de transição, que aponta para o surgimento de novos esquemas conceituais. Até porque, agora, com os computadores, cabe perguntar – com Peter Burke – se não somos todos plagiadores.

InfoGEO – Na sua opinião, os direitos autorais dos produtos cartográficos não estão de fato protegidos?

Dr. Castilho – Bem, a lei autoral de 1998 protege os trabalhos cartográficos em três
momentos: primeiro quando fala especificamente da carta geográfica; depois, quando cuida dos trabalhos de Engenharia em geral – e a Cartografia é uma modalidade da Engenharia -; e também quando protege os programas de computador, sendo a Cartografia hoje prevalentemente computadorizada. Porém, na prática, os criadores de obras cartográficas sentem-se sim desprotegidos seja em face da falta de tradição na defesa do autor no Brasil (basta ver as copiadoras que funcionam sem qualquer restrição), seja em razão da tecnologia da informação, que cria objetos intelectuais novos, envolvendo diretamente a Cartografia. Cabe lembrar que ela se beneficiou enormemente de dois processos tecnológicos que marcaram o século XX: a informática e a exploração do espaço. Talvez ela nunca tenha avançado tanto – e se transformado – quanto no último século.

InfoGEO – Se um mapa feito por uma empresa é atualizado por outra, quem tem o direito autoral dessa obra final?

Dr. Castilho – Sobre isto, há, na História da Cartografia, o exemplo clássico do Theatrum Orbis Terrarum, primeiro atlas moderno, de Ortelius, datado de 1570, e que referenciava expressamente as fontes primárias das suas 53 pranchas. Temos aqui o que se chama de "obra derivada", resultante da transformação da obra original. Evidentemente, há necessidade de autorização do autor da obra dita "primígena" para "atualização" dela. E isto é importante até mesmo para salvaguarda de responsabilidades do "atualizador". Mas a obra derivada merece igual proteção autoral, desde que tenha uma carga de originalidade. Obra originária e derivada constituem distintas criações intelectuais.

InfoGEO – E o registro, ele é necessário para proteger a obra contra a reprodução não autorizada?

Dr. Castilho – No nosso sistema, não. O registro é facultativo. Os direitos autorais derivam diretamente da criação intelectual. O registro serve apenas para dar maior visibilidade à relação autor/obra e, desta forma, maior segurança ao autor. No caso da obra cartográfica, o registro
pode ser feito no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA). Está disciplinado pela recente Resolução 453/2000 e é oneroso. Mas quem registra pode não ser o criador efetivo da obra.

InfoGEO – E, finalmente, existe ética no mercado da geoinformação?

Dr. Castilho – Parece-me que, sobre a ética, prevalece uma lógica "produtiva", "de resultados", que, num certo sentido, é a lógica da tecnologia. No médio prazo, é evidente que esta postura prejudica todos os profissionais. Mas a respeito cabe lembrar a conhecida "boutade" de Marcel Pagnol: "Convém desconfiar dos engenheiros. Eles começam pela máquina de costura e acabam pela bomba atômica".  

Entrevista por: Marjorie Xavier

* Com o texto intitulado "A proteção autoral nos trabalhos cartográficos – princípios gerais", o entrevistado José Roberto Fernandes Castilho detalha ainda mais o assunto na seção de Artigos/Mapeamento do Canal Conteúdo do portal MundoGEO (www.mundogeo.com.br)