Por Emerson Granemann

Durante minha viagem por cinco países da América Latina para divulgar a revista em espanhol, dediquei um dos dias para conhecer o engenheiro Carlos Salmán. Instintivamente, no começo da nossa conversa, antes de começar com o tema da geoinformação, ele me relatou como foi a sua aproximação, ainda muito jovem, com o setor. Num tom apaixonado, confesso que fiquei envolvido com as suas idéias, que misturam uma visão romântica com ações empreendedoras ousadas e de êxito.

Tanto quando atuava no governo, quanto em 1980, quando fundou a SIG S.A. (hoje uma grande empresa do setor no México), Carlos mantém seu idealismo nacionalista. Suas crenças materializam-se no pioneiro Projeto México, em que está produzindo por conta e risco próprios milhares de mapas para diversas aplicações.

Ao final da nossa conversa, Carlos me convidou para visitar o Museu Tecnológico da Cidade do México, uma fantástica exposição de pintura em azulejos que tem como tema mapas antigos. A exposição, concebida por ele, une o talento de artistas mexicanos de Puebla com informações valiosas e históricas da Cartografia da época do descobrimento da América.

Nesta entrevista ele nos explica com detalhes, como os empresários e governantes devem encarar os investimentos na área da geoinformação, como suporte para a tomada de decisões na América Latina.

InfoGeo: Como um engenheiro mecânico transformou-se em cartógrafo?

Carlos Salmán: Terminei os estudos de engenheiro mecânico no Instituto Tecnológico da cidade de Madero, Tamaulipas (Golfo do México) em Junho de 1971. Tinha 21 anos e desejava trabalhar e escrever as minhas teses para me graduar. Foi quando surgiu a possibilidade de participar de um treinamento como operador de instrumentos de fotogrametria na Cidade do México numa instituição pública de recentemente criada: a Comissão de Estudos do Território Nacional (Cetenal). Fui aceito e iniciei a minha capacitação. O diretor do Cetenal, engenheiro Juan B. Puig da Parra, nos falou da importante tarefa de realizar o inventário de recursos do país, nos falou da “visão da águia” e da “sabedoria da serpente” e do compromisso, que como técnicos mexicanos tínhamos com a população mais pobre do país, nos explicou que só um povo que conhece a si mesmo e ao território onde vive, pode se desenvolver e que não basta ter riquezas se elas se destroem por ignorância e ambição. Após ouvir o engenheiro Puig e meus mestres do Cetenal, soube que os motores e as turbinas poderiam esperar, o que realmente era preciso, era a “radiografia do país”, que nos guiaria a um futuro melhor. Para participar dessa missão, todavia, eu precisava ser fotogrametrista ou cartógrafo. Assim, que acabei as minhas teses para não deixar inacabada a etapa de Engenharia Mecânica, concentrei-me em desfrutar dos ensinamentos dos meus mestres da Cetenal.

Dois anos depois, para descansarem de mim, fui enviado por um ano ao ITC da Holanda para realizar uma pós-graduação em fotogrametria.

IG: O senhor comentou que existem cinco pontos importantes no que denominou “A Revolução do Conhecimento”, que a sociedade latino-americana precisa levar em conta com relação as geotecnologias. Poderia citar e comentar cada ponto?

CS: A "Revolução do Conhecimento" que o nosso país e acho que a América Latina requerem para conseguir um manejo técnico do solo, da água e de outros recursos naturais, tem como pré-requisito entender que a informação é como a riqueza: que só é produtiva quando circula e é distribuída, e não quando é escondida e guardada a sete chaves.

Também que a informação não serve para nada – de fato pode ser uma arma letal para que os poderosos que mais têm tirem dos mais pobres – a não ser que se transforme em conhecimento social. Ou seja, é necessário que procuremos mapas mentais e não só digitais.

A informação, dizia o engenheiro Puig, deve ser precisa, veraz e pública. O que eu aprendi, além do mais, é que nos processos de transformação de informação em conhecimento, devemos entender o conceito de consciência possível, quer dizer, não só importa o que os cartógrafos produzem como informação, mas o que o receptor possa captar. Por exemplo: se quero me comunicar com os Totonacas, uma culta raça indígena da região de Papantla, em Veracruz, México, os mapas devem estar em Totonaca e não em espanhol. Além do mais, devo entender que para a raça indígena, a terra não é como para os mestiços, uma “mercadoria” de intercâmbio, mas um ente sagrado que não pode se vender ou se comprar. É como o sol, o vento e a água, elementos que não são e nunca serão “recursos para explorar” ou “recursos para destruir”, mas uma parte indivisível de nós.

Para conseguir um manejo técnico do solo e da água de um país, são necessários ao menos os cinco pontos seguintes:

1) Mapas: Uma cartografia topográfica básica com o nível de detalhe suficiente para poder representar cada parcela do país na área rural e cada prédio urbano. No caso do México isto nos exige, por causa do diferente tamanho dos prédios, níveis de escala da ordem de 1:1000 ou 1:500 para as cidades. Com base na minha experiência, essa cartografia, ao menos no caso do meu país, deveria:

a) Estar atualizada;
b) Cobrir o país todo, sem exceção;
c) Cumprir com especificações técnicas que permitam representar os prédios sem risco de erros de magnitude inaceitável (que pudesse causar confusão nos limites);
d) Existir em duas versões: a vetorial, quer dizer, uma série cartográfica digital nacional, e a ortofotográfica ou foto mapa confiável (e não pseudo-retificações de imagens satelitais);
e) Distribuir-se pelos métodos mais eficientes nas localidades e populações com menos tecnologia, seja de forma impressa ou digital. Não se pode ficar esperando que os nossos povos usem computadores para que possam acessar a informação. Há 500 anos havia códigos que eram mapas e base de dados, ou seja, verdadeiros sistemas de informação geográfica. Não entendo por quê agora devemos condicionar a difusão só aos mapas digitais.

2) Cadastro: Realizar o cadastro rural e urbano integral em todos os prédios, sejam de propriedade do governo, social ou privada. Este cadastro deve ser preciso, atualizado e consultável pelo público e pode ser uma forma muito importante de ingressos para os municípios e estados, além de coadjuvar na definição dos limites políticos, estatais e municipais, uma tarefa pendente a realizar no México.

3) Integração: Integrar o cadastro técnico com os documentos jurídicos que amparam a propriedade, quer dizer, ligar as bases de dados do cadastro com o do registro público da propriedade e fazer acessível ao público a informação quando solicitada, como diz a lei no México. Só isto dá certeza jurídica sobre a posse da terra e justifica o investimento.

4) Radiografia: Realizar a radiografia temática do território, produzindo a cartografia temática dos recursos naturais, com ao menos os seguintes temas: Geologia, Edafologia (solo), usos atuais do solo e vegetação, usos potenciais do solo e aptidão do solo para o desenvolvimento urbano. Esses mapas temáticos devem ter uma escala suficiente para correlacioná-la com os planos topográficos e cadastrais de 1:20.000 a 1:50.000, dependendo do país, para as zonas rurais, e de 1:5000 a 1:10.000 para as cartas de aptidão do solo para desenvolvimento urbano.

5) Estratégias: Estabelecer as estratégias para que toda a informação contida nesta radiografia se transforme em conhecimento social e criar mecanismos de colaboração para que todos os participantes do desenvolvimento possuam a mesma informação e colaborem entre si.

É possível atingir estes cinco pontos anteriormente descritos aproveitando a potencialidade da tecnologia atual, especialmente nos campos de GPS, sensores digitais e sistemas de informação geográfica. Cabe destacar, no entanto, que o que tem falhado não é a capacidade tecnológica, mas a capacidade para antepor os interesses da sociedade aos interesses individuais, corporativos e ou institucionais. Talvez o conhecimento dos GIS possam nos ajudar a construir e transferir às novas gerações latino-americanas uma estratégia de educação para a solidariedade humana e para o respeito à terra.

Esta é a "Revolução do Conhecimento" que está pendente na América Latina.

IG: O senhor menciona que existem etapas fundamentais que qualquer instituição deve aplicar para ter êxito ao investir em geotecnologias. Poderia nomeá-las e descrevê-las?

CS – Sim, são elas:

Projeto do sistema
Refere-se ao projeto da estrutura cartográfica e da base de dados. Não acredito que deva levar muito tempo, pois em geral os técnicos locais em cada país conhecem os problemas e as necessidades dos seus municípios e estados melhor que qualquer consultor estrangeiro.

A execução de volumosos estudos como os solicitados pelos bancos como o BID e o Banco Mundial não são, no meu conceito, necessários, e sim pretexto para promover consultorias internacionais que fortalecem nossa dependência. De fato, acho que nem sequer deveríamos seguir pelo caminho da impotência financeira. Assumamos o desafio de construir nossos sistemas com nossos próprios recursos, sem créditos que nos façam dependentes e escravos.

• Produção e ou adequação de dados
Os dados para um SIG são de 3 tipos: os que se referem aos mapas, os que se referem aos tributos dos objetos cartográficos (base de dados) e os que se referem à organização que o realizará, incluindo sua capacidade, seu compromisso com o país e seus recursos tecnológicos. No primeiro ponto a aerofotgrametria é, a meu ver, o meio idôneo para se obter mapas digitais com as escalas e qualidade métrica e semântica requeridas para o desenvolvimento de sistemas de informação geográfica municipais para fins de cadastro, água potável, desenvolvimento urbano, segurança pública etc.. Mais complexo e caro que a produção cartográfica é o ponto relativo à geração das bases de dados, pois isto requer uma investigação do campo, prédio por prédio, e esta tarefa não é a escala 1:1000 mas a escala 1:1, quer dizer, é necessário caminhar e viver no terreno. Se capacitarmos pessoal em cada município, os custos serão reduzidos, além de facilitar a atualização futura da informação.

Finalmente, com relação à organização, temos que sacudir o desânimo e começar as tarefas cadastrais com entusiasmo nacionalista, isto é mais importante que a tecnologia por si mesma.

• Metodologia de Manejo de Informação
Pelo que se refere às metodologias de manejo da informação, incluindo o software, é importante entender detalhadamente o processo completo do fluxo e integração de informação.

• Equipamentos e instalações
O equipamento de informática tem deixado de ser relevante do ponto de vista financeiro, pois os computadores são, em 2005, de baixo custo e alta potencialidade. Pessoal capacitado, coordenação institucional e liderança técnica-política do projeto: estes três pontos são os que, segundo minha experiência, definem a possibilidade de êxito o de fracasso na implementação de um GIS.

• Contar com pessoal capacitado e motivado
Para o sucesso do tópico anterior é necessário, antes de qualquer coisa, contar com o pessoal a ser capacitado, pois as instituições cartográficas, cadastrais o de planejamento tem sido emagrecidas tanto que não tem a quem mais capacitar. É autorizado o investimento em equipamentos, software e outros insumos, mas não em pessoal. Reduzir drasticamente o tamanho da equipe é o “mantra” dos modernizadores. Mesmo que isto seja executado sem refletir e sem eficiência, aplicam-se programas de “retiro voluntário” para eliminar uma porcentagem dos empregados sem considerar os diagramas de fluxo produtivos nem o impacto na eficiência. Esta idéia é equivalente à que uma pessoa que deseja perder 10% do seu peso escolha tirar os olhos ou uma parte do cérebro. Mesmo que estas não pesem nem 2% do total, podem inutilizar todo o corpo. Isto prova que a burocracia excessiva é de fato daninha. É o mesmo que uma agência cartográfica despeça os pilotos dos seus aviões para baixar custos e fique sem as fotos aéreas, que formam parte da matéria prima de todo o seu trabalho. É essencial que o líder técnico-político do projeto deixe claro a todos os participantes que ter diferentes pontos de vista é aceitável e enriquecedor, mas que não será tolerada a sabotagem ao projeto por interesses ou disputas internas. Finalmente, um GIS não pode se vender e nem se comprar. Um GIS deve ser construído com trabalho de conjunto harmônico entre os fornecedores e o usuário, com a supervisão vigilante e questionadora do líder técnico-político sobre o desenvolvimento e a eficiência do projeto. Os resultados não se medem por quão impactantes são os mapas ou impressionantes às demonstrações, mas por quanto refletem nos impostos, de forma a diminuir os conflitos de terra e melhorar o planejamento das cidades.

• Controlar a qualidade e medição da eficiência do sistema, utilizar o sistema e avaliar suas debilidades. Atualização e manutenção dos pontos anteriores
Os sistemas de informação geográfica não devem ser avaliados só pelo que fazem bem, mas pelo que não fazem, ou pelo que fazem mal. Esta avaliação só é conseguida usando o sistema nas condições reais de operação. A interface sistema-operação institucional é o ponto chave, e é necessário que o pessoal não considere o sistema como sendo um rival – o que pode acontecer se os diretores usarem-no como base para a demissão de pessoal. Convém estabelecer metas de eficiência e fazer com que sejam mensuráveis concretamente, por exemplo: a porcentagem de aumento na arrecadação, o número de prédios regularizados, etc.. O objetivo da etapa de medição da eficiência é estabelecer um processo de melhora contínua baseada numa permanente curiosidade e busca das melhores soluções.

Finalmente, os sistemas devem se atualizar revisando permanentemente os pontos anteriormente mencionados. Do contrário, a desatualização os fará inoperantes ou ineficientes.

IG: Baseando-se na sua experiência no México, quais são os principais conselhos que o senhor daria aos empresários do setor em outros países para obter êxito empresarial e cumprir a missão social da empresa em seu território, seja ele qual for?

CS: Com relação ao papel dos empresários no desenvolvimento dos países da América Latina e baseado na minha experiência, quero que fique claro o seguinte: aos nossos povos não interessa se as empresas são privadas ou públicas, mas se participam ou não do desenvolvimento e se são eficientes. No México, a eletrificação continua sendo realizada pela Comissão Federal de Eletricidade, uma empresa pública da qual estamos orgulhosos, pois mesmo os povoados mais isolados têm acesso à luz elétrica. Pessoalmente, não vejo necessidade de privatizá-la. O que necessitamos são empresas públicas ainda mais ágeis e eficientes que quaisquer empresas privadas e isto é impossível de conseguir. Eu mesmo, de 1971 ao 1978, trabalhei numa, a Cetenal, que foi muito eficiente até que em 1979 chegaram os ministros educados em Harvard, em Princeton e em Yale querendo mostrar serviço.

Eles suspenderam o inventário dos recursos naturais do país, quer dizer, suspenderam a produção das cartas geológicas, edafológicas, de uso de solo e vegetação e de uso potencial do solo assim como as cartas de aptidão de solo para o desenvolvimento urbano. O argumento foi que se a produção de uma carta temática era de 41 mil dólares (incluída a impressão de 500 exemplares) e cada carta era vendida por um dólar, a produção dessas cartas não era “negócio”. Explicamos, porém, que quando pedem a um doente uma radiografia que custa 100 dólares, ele não pergunta por quanto vai conseguir vendê-la e quanto vai ganhar com ela, pois radiografias são feitas para diagnosticar doenças e não para dar lucro. Os argumentos, contudo, não foram suficientes. Em 1978 foi suspensa a produção do inventário nacional de recursos. Em agosto de 1980 tomei a decisão de ir para a iniciativa privada, fundando a empresa Sistemas de Información Geográficas, SIG S.A.. A moda de desmantelar agências cartográficas nacionais não foi exclusiva do México. Ela se estendeu pelo mundo e 25 anos depois a falsa promessa de que conheceríamos o planeta através das imagens de satélites não se cumpriu – inclusive nos países mais desenvolvidos. O mapa base topográfico 1:24.000 dos Estados Unidos, por exemplo, tem uma respeitável obsolescência de 25 anos.

Necessitamos que todas as empresas privadas tenham um objetivo social claro e que entendam que as seus lucros vêm de uma sociedade que deveria estar bem alimentada, sadia e educada, e que possa exercer o seu direito de escolher o seu modelo de vida sem ser bombardeada pelo marketing que a impulsiona ao consumo supérfluo quando poderia optar por uma alternativa sustentável, solidária e humana. Em que deve pensar e que deve sentir o empresário latino-americano para ser realmente o motor do desenvolvimento? Acho que deveríamos pensar que todos estão no mesmo barco e mesmo que poucos vão em primeira classe e a maioria vai no fundo, o barco é um só e afunda. Deve pensar também em ser eficiente e competitivo, sobretudo para gerar e conservar empregos no seu país e em empregar suas utilidades empresariais para conservar e desenvolver as iniciativas tecnológicas na América Latina. Este enfoque de privilegiar o nosso não implica num rechaço irracional do mundo global, como disse Gandhi:

“Quero que o vento de todas as culturas sopre junto a minha porta, mas não tão forte que a derrube”

Com relação a sentir, não posso aconselhar, nem sei o que dizer, exceto compartilhar o que eu sinto: sinto vergonha, sinto desespero e sinto dor por ver que as cidades mexicanas crescem em lugares com grande risco de inundação, muitas vezes arrastando ou sepultando vivos os seus habitantes, de saber que os nossos bosques se destoem e que os solos se desgastam, de ver que comunidades indígenas que deveriam ser irmãs se matam por problemas de posse de terra, porque não fomos capazes de integrar o cadastro com o registro público jurídico da propriedade. Que os nossos rios e praias se contaminam. Por ver um país que adota padrões de crescimento urbano horizontal baseado num modelo que crê que o petróleo seja eterno, quando só o temos para os próximos 20anos.

É verdade que essa vergonha e essa dor pelo México, afortunadamente, não são os únicos sentimentos que tenho. Também sinto um grande agradecimento aos meus mestres, um profundo orgulho de ser mexicano e latino-americano e um amor impetuoso pelo México – e com amor não se discute, se deixa levar por ele. Ao menos para mim, mesmo que pareça “maluco” esse amor, é o que me dá forças para lutar. Por fim, também tenho esperança de que no México na América Latina haja “reservas” de inteligência, generosidade e paixão por construir um destino melhor. Sendo assim, o meu único e respeitoso conselho é: atreva-se a amar o seu país!

Engenheiro Carlos Salmán
www.sigsa.info

Tradução
Rodrigo Ruibal
www.rctradutores.com.br

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