A união do mapeamento colaborativo e os dados geoespaciais oficiais

Historicamente, em cartografia, existiu a distinção clara entre o produtor dos mapas, munido de conhecimento e ferramentas específicas, e o usuário destas informações. Nos últimos anos, vimos esta divisão ir se dissipando gradualmente, com o advento de plataformas de mapeamento voluntário como o Google Map Maker, o OpenStreetMap e o Wikimapia. Ninguém melhor que o usuário para conhecer a dinâmica de sua realidade, suas demandas e interesses, e as ferramentas como dispositivos móveis equipados com GPS são cada vez mais acessíveis e disseminadas.

Em 2007 o professor Michael Goodchild, da Universidade da Califórnia, Santa Barbara, cunhou o termo Volunteer Geographic Infomation (VGI) para descrever o processo de criar, agrupar e disseminar dados fornecidos voluntariamente pelas pessoas através da internet. Hoje, também são usados os termos mapeamento colaborativo ou crowdsourcing, sem que eles abranjam todo o conteúdo geoespacial criado pelo usuário, pois muitas destas informações podem não ser cedidas voluntariamente, mas colhidas automaticamente de forma passiva dentre postagens, check-ins, rastreio de equipamentos e outros.

São em situações de emergências que estes esforços colaborativos mais aparecem e demonstram sua incrível capacidade de geração de dados atualizados quando eles mais são necessários. No mês de novembro, quando o tufão Haiyan devastou as Filipinas, mais de 700 voluntários usaram o OpenStreetMap para mapear, com imagens de satélite pós-desastre, a situação da infraestrutura do país para orientar equipes de resgate e o trabalho de organizações humanitárias. Em casos como esse, nas quais a velocidade é crucial para que as ações coordenadas sejam colocadas em prática, a capacidade de mobilização da multidão é uma clara vantagem. Além de desastres naturais, outras situações de comoção popular, como os protestos no Brasil em junho de 2013, também trazem a necessidade de um mapeamento em tempo real, ágil e dinâmico.

Paralelamente, iniciativas estruturadas de compartilhamento de informações oficiais como as Infraestruturas de Dados Espaciais (IDE) têm sido cobradas por uma participação mais efetiva por parte do usuário. As IDEs são frequentemente relatadas como pouco dinâmicas e com baixa usabilidade. Seria então a integração com o conteúdo gerado pelo usuário uma solução para transformar estas infraestruturas e fazê-las mais amigáveis e participativas?

Mesmo as mais tradicionais agências de mapeamento internacionais têm se mostrado abertas à experimentação nesta área. A chamada “USGS needs you”, do órgão responsável pelo mapeamento nos Estados Unidos, nos mostra essa nova preocupação. A organização criou o The National Map Corps, uma ferramenta online onde os cidadãos podem fazer suas edições que serão posteriormente incorporadas no The National Map, a principal fonte de dados de referência para a IDE americana. Suécia, Holanda, Austrália, Reino Unido e outros países já criaram experimentos neste sentido, muitas vezes relacionados à coleta de nomes geográficos, informação essencial para as buscas referentes ao território.

No entanto, são inúmeros os desafios quando se trata dessa compatibilização entre os dados da multidão e as fontes de dados oficiais. Uma grande fonte de questionamentos são os aspectos legais quanto a estes dados. Como documentos oficiais, as cartas topográficas são usadas como fonte fidedigna de informação em discussões legais. Como aconteceria se esta informação não foi diretamente levantada por uma instituição oficial, mas, talvez apenas validada por ela? O professor Mike Jackson, da Universidade de Nottingham, que esteve no Brasil no princípio de dezembro para o VIII Colóquio Brasileiro de Ciências Geodésicas, organizado pela Universidade Federal do Paraná, ministrou um workshop no evento no tema de compatibilização de dados voluntários e oficiais. Sobre este questionamento legal, ele ressaltou que o receio em se usar informação voluntária para tomar decisões de governo, por exemplo, vem de uma falsa sensação de certeza dos mapas oficias atuais, que muitas vezes é infundada, dada a falta de atualização dos mesmos. De qualquer forma, estas são questões eminentes cujas respostas ainda terão que ser estudadas.

Adicionalmente, surgem preocupações quanto aos desafios tecnológicos desta integração, incluindo questões de heterogeneidades espaciais nas atualizações, que podem gerar representações muito acuradas em alguns lugares e deixar grandes vazios desatualizados em outros. Outras necessidades são como validar essas informações, extrair indicações a repeito da qualidade dos dados e comunicar para o usuário, de forma eficaz, a origem do conteúdo para que a adequação a cada uso possa ser avaliada. São inúmeras lacunas, que incluem uma nova forma de compreender os papéis de produtores e usuários e que podem, no futuro, proporcionar ferramentas para um mapeamento oficial mais atualizado, dinâmico e participativo.

 

Silvana Camboim

Professora de Banco de Dados Geográficos e SIG no Departamento da Geomática da UFPR. Engenheira Cartógrafa e doutora em Ciências Geodésicas pela UFPR, com mestrado em Gestão Ambiental pela Universidade de Nottingham, Reino Unido, e MBA em Gerenciamento de Projetos pela FGV. Coordenadora do nó da UFPR da rede ICA/OSGeo Labs. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Normas e Padrões do Cinde/Concar