Os bens imóveis particulares lindeiros aos terrenos de marinha e a Ação Declaratória da SPU de que tais imóveis são Bens da União

Por Dr. Roberval Felippe Pereira de Lima e Dr. Obéde Pereira de Lima

Introdução

Os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens dominicais da União, em conformidade com o artigo 1o do Decreto–Lei no 9.760, de 05 de setembro de 1946. Estas parcelas imobiliárias foram inseridas no inciso VII do artigo 20 da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05/10/1988. Assim, esta definição legal é indiscutível.

Nos termos da conceituação contida no artigo 2o do Decreto–Lei no 9.760/46, os terrenos de marinha são faixas territoriais com trinta e três (33) metros de largura, medidas horizontalmente para a parte de terra, a partir da linha da preamar média do ano de 1831 – LPM/1831. Naturalmente, por esta conceituação legal, tais faixas ficam localizadas no estirâncio, ou seja, na área litorânea onde o mar atua diariamente, nos movimentos de subidas e descidas dos seus níveis denominados de marés.

A demarcação destas faixas territoriais é atribuição da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, de acordo com o artigo 9o do citado Decreto–Lei no 9.760/46 e artigo 1o da LEI Nº 9.636, DE 15 DE MAIO DE 1998.

De acordo com o artigo 61 do Decreto–Lei no 9.760/46, todo aquele que estiver ocupando imóvel presumidamente – grifei – pertencente à União, deve apresentar a SPU os documentos e títulos comprobatórios de seus direitos sobre o mesmo.

A aceitação de atos e fatos praticados pelos agentes da administração pública como verdadeiros e legítimos, até provas em contrário, é um comportamento normal de toda a sociedade e que não deve suscitar qualquer dúvida sobre a honestidade de seus propósitos. Segundo Meirelles1, (2000, p.148):

“os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que a estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde as exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não podem ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução”.

Por isto, acrescenta Meirelles (op. cit.), o Agente da Administração Pública deve estar sempre atento às normas legais em vigor, para evitar conflitos. Assim, sempre que um agente da administração pública tomar conhecimento de que algum ato ou fato no âmbito da sua esfera de ação foi praticado de modo inconveniente, inoportuno ou ilegítimo, deve, imediatamente, providenciar a sua revogação ou anulação, conforme couber, sob pena de cometer improbidade administrativa, prevista no Código Civil Brasileiro.

Pesquisa realizada por Mattos (2003)2, conclui que:

“Como prerrogativa inerente ao Poder Público, presente em todos os atos do Estado, a presunção de veracidade subsistirá no processo civil como meio de prova hábil a comprovar as alegações do ente público, cabendo a parte adversa demonstrar, em concreto, o não cumprimento, por se tratar de uma presunção relativa. Assim, havendo um documento público com presunção de veracidade, não impugnado eficazmente pela parte contrária, o desfecho há de ser em favor desta presunção.”

Terrenos de Marinha e Seus Acrescidos  – Conceitos Legais Básicos

A conceituação básica dos terrenos de marinha e seus acrescidos encontra-se nos artigos 2o e 3o do Decreto–Lei no 9.760/1946, coma transcrito a seguir:

“Art.2o – São terrenos de marinha, em uma profundidade de trinta e três metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da Linha da Preamar Média – LPM de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo – único. Para esse efeito, a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 cm, pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano”.

Art. 3º – São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.

No caput do artigo 2o acima transcrito verificam-se duas referências fundamentais a serem consideradas na demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, ambas colocadas de formas inequívocas e sem permitir ou possibilitar qualquer ambiguidade ou interpretação diferente do que ali se estabelece.

A primeira referência é a espacial, definindo a faixa territorial com a profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente para o lado de terra a partir da cota altimétrica correspondente à linha da preamar média – LPM projetada pelo seu plano horizontal correspondente na zona costeira. Esta faixa pode ser visualizada pelo esquema do perfil genérico da orla marítima exemplificado na Figura 1 seguinte:

Figura 1 – Esquema de localização da LPM/1831 e da faixa dos terrenos de marinha

Nesta representação esquemática tem-se um exemplo de perfil transversal em um trecho de orla marítima com algumas feições da geomorfologia costeira, associado a um diagrama representativo da maré de águas vivas (fases de Lua nova e cheia) e da maré de quadratura (fases de Lua em quarto crescente ou quarto minguante) com algumas denominações de suas características básicas. Este é um modo simples, técnico-científico e lógico para entender com clareza a conceituação dos terrenos de marinha (para o lado de terra) e, consequentemente, dos seus acrescidos (para o lado das águas), uma vez que a referência é comum aos dois tipos destes bens da União.

A Prática da SPU na demarcaçãodos terrenos de marinha e seus acrescidos

A identificação, localização e demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos é atribuição da SPU, nos termos da legislação em vigor.

Terrenos de marinha na Praia do Cassino, Município de Rio Grande, RS

Tomem-se como um exemplo da prática ilegal na demarcação dos terrenos de marinha pela SPU o que se vê apresentado na Figura 2 seguinte, mostrando um trecho da orla marítima da zona balneária com urbanização consolidada, no bairro do Cassino, município de Rio Grande, RS, onde se veem os absurdos cometidos pelos critérios empregados pela SPU/RS.

As parcelas territoriais localizadas na orla marítima deste bairro balneário, matriculadas nos cartórios do registro geral imobiliário como propriedades particulares, em virtude dos critérios arbitrários da presunção adotados e praticados por aquele órgão gestor dos bens da União foram declaradas pela SPU/RS como terrenos de marinha e seus acrescidos e apropriadas pelo governo federal. A imagem de satélite (Figura 2) do Balneário do Cassino, obtida no sítio do “Google Earth”, comprova esta afirmação.

Vejam-se na Figura 2 a linha vertical na cor vermelha, correspondente a “LPM/1831” arbitrada pela SPU/RS; ela se encontra a uma distância de 765m da linha do NMM, nos dias atuais, para o lado de terra !

Figura 2 – Balneário na Praia do Cassino / Adaptada da fonte: “Google Earth”, (2012)

Neste pequeno trecho da orla marítima, notem-se quantas propriedades particulares foram declaradas e cadastradas como terrenos acrescidos de marinha e, consequentemente, transformadas em bens da União.

Considerando-se que a altura verdadeira da LPM/1831 (cota vertical entre o nível médio do mar oficial brasileiro e o valor correspondente ao do nível médio de todas as preamares no ano de 1831) se encontra atualmente com valor igual a zero, isto é, coincidente com o NM (IBGE), na melhor das hipóteses favoráveis para a SPU/RS a faixa dos terrenos de marinha ficaria localizada sobre o estirâncio, ou faixa praial. Notem-se as outras medidas:

i) a largura média da faixa praial é de 85m;

ii) a largura média da faixa pós-praia (campo de dunas frontais) é de 220m;

iii) a distância da berma (inclinação onde se inicia o pós-praia) até onde a SPU/RS arbitrou a LPM/1831 é de 680m;

iv) a largura média da faixa urbanizada abrangida pela demarcação da SPU, entre a sua “LPM/1831” e a Avenida Beira Mar, é de 445m; e

v) a extensão atual dessa “LPM/1831” (SPU/RS) no Balneário do Cassino, na área urbanizada, é de 6.106 metros, com previsão de ser aumentada com o crescimento da extensão em urbanização ao longo da margem marítima.

Isto que se verifica nesta Paria do Cassino, no município de Rio Grande, RS, se repete ao longo de toda a orla marítima da zona costeira brasileira, o que ocasiona sérios prejuízos ao direito da propriedade previsto no artigo 5o da Constituição Brasileira, haja vista que o direito do domínio pleno sobre o bem é transferido, compulsoriamente, do proprietário particular para a União.

As normas da SPU e a sua prática na demarcação dos terrenos de marinha

Quais as justificativas apresentadas por aquele gestor dos bens da União, para praticar tal procedimento demarcatório, como o constatado na Figura 2? As respostas para esta questão encontram-se na Orientação Normativa “ON-GEADE-002-01”, onde estão estabelecidos os critérios e procedimentos para a realização das demarcações dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Naquele documento oficial normativo são vistos os critérios equivocados, tendenciosamente mal interpretados sob os pontos de vista técnico e cientificamente, como os apresentados nos subitens de 4.8.9 a 4.8.12 da ON-GEADE-002-01, pois, pelos tais subitens se comprova que não foi obedecido ao que consta no artigo 2o do Decreto-Lei nº 9.760/46.

O DECRETO Nº 3.725, de 10 de janeiro de 2001, Regulamenta a Lei no 9.636, de 15 de maio de 1998, que dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União, pelo seu artigo 19 atribui competência a Secretaria do Patrimônio da União – SPU nos seguintes termos:
“Art. 19. O Secretário do Patrimônio da União disciplinará, em instrução normativa, a utilização ordenada de imóveis da União e a demarcação dos terrenos de marinha, dos terrenos marginais e das terras interiores.”

A SPU baseada na prática realizada nas demarcações dos terrenos de marinha e seus acrescidos ao longo de muitas décadas e até o ano de 2000, atividades estas constantes nos Relatórios referentes aos levantamentos topográficos e aerofotogramétricos para o atendimento daquela finalidade, baixou a Instrução Normativa IN-No 2, de 12 de março de 2001, a qual revogou as disposições da IN-No 1, de 30 de março de 1981. Posteriormente, transformou esta IN-2/01 em Orientação Normativa “ON-GEADE-002-01” – (GEADE: Gerência de Área de Cadastramento e Demarcação) aprovada pela Portaria nº 162, de 21.09.2001, publicada no Boletim de Pessoal e Serviço, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, nº 9.15, de 21.09.2001. Atualmente esta é a norma que disciplina a demarcação de terrenos de marinha e seus acrescidos e revoga a IN-2/01 e disposições em contrário.

Os procedimentos praticados atualmente para a determinação da LPM/1831, na demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, continuam os mesmos do início do século próximo passado.

Equívocos flagrantes contidos na Orientação Normativa ON-GEADE 002-2001

Os critérios praticados pela SPU na localização da LPM/1831 e na demarcação dos terrenos de marinha estão definidos em sua Orientação Normativa ON-GEADE-002-2001, especificamente nos itens “4.6 Determinação da Posição da Linha de Preamar Média de 1831 e da Linha Limite de Terrenos de Marinha; 4.7. Pesquisas em Documentos Antigos; e 4.8 Determinação da Cota Básica”, (páginas 11-14). Analisando-se detalhadamente estes itens com seus subitens, sob o ponto de vista da lógica, são constatadas que várias incoerências estão contidas nesta citada Norma.

Um grave equívoco nos critérios da SPU verifica-se logo no início do item 4.6, em 4.6.1.1, ao afirmar como premissa maior que: “terrenos de marinha são terrenos enxutos”. Tal proposição não pode ser aceita como verdadeira, porque sendo a linha de referência a da preamar média do ano de 1831 – LPM/1831, mesmo que ela tivesse acompanhado a subida do nível médio do mar daquela época até os dias atuais, nas marés de águas vivas tais terrenos de marinha teriam uma parte coberta pelas águas do mar durante as preamares.

Destas instruções contidas na ON-GEADE-002-01 são transcritas a seguir aquelas mais comprometedoras da legalidade destas atividades:

“4.6.1.1 Terrenos de marinha são terrenos enxutos”;
…………………………………………………………………………………………………………………………….

“4.8 Determinação da Cota Básica Efetiva”;
……………………
“4.8.2 A cota da preamar média é a média aritmética das máximas marés mensais, ocorrida no ano de 1831 ou no ano que mais se aproxime de 1831.”

Esta orientação do subitem 4.8.2 pode ser considerada como a mais equivocada entre as demais, porque fere frontalmente o artigo 2o do Decreto-Lei No 9.760/46, o qual não dá margem a qualquer interpretação diferente do que ali se encontra estabelecido. Preamar média não pode ser confundida com média aritmética das máximas marés mensais, porque ambas se referem a valores diferentes e simultaneamente excludentes de um mesmo fenômeno: preamares são fenômenos que ocorrem normalmente todos os dias, enquanto preamares máximas ocorrem somente duas vezes ou, muito eventualmente, três vezes em um único e mesmo dia do mês.

Consequentemente, os respectivos valores médios são diferentes. A prática da SPU no cálculo do VALOR MÉDIO DAS PREAMARES MÁXIMAS anuais, em São Francisco do Sul e Joinvile, apresenta uma altura 47 centímetros mais elevada do que o valor médio científico admitido como o correto e, também, em Recife, com o valor médio das preamares máximas fixado em 2,264m, sendo a diferença para mais em 0,597m, quando valor correto da preamar média deveria ser em torno de 1,667m.

Por que a SPU adotou este procedimento? Só há duas justificativas: a primeira, pelo desconhecimento de métodos técnico-científicos para calcular o valor da preamar média do ano de 1831, para o local geográfico da demarcação; e segunda, pelo comodismo e facilidades de buscar na Internet, no site da DHN, as alturas máximas mensais das marés (apenas duas alturas: uma na fase da Lua Cheia e outra na fase da Lua Nova). O valor médio destas alturas máximas não oferece qualquer dificuldade, pois basta somar os vinte e quatro valores e dividir pelo número de ocorrências. Atualmente a DHN está disponibilizando as informações de marés a partir do ano de 2005.

O critério de utilizar a “média das máximas preamares mensais” caracteriza, sem sombra de qualquer dúvida até mesmo para uma pessoa leiga em assuntos de Direito, uma ilegalidade, pois a Lei estabelece que a referência é a “linha da preamar média” LPM, do ano de 1831.

Outro grave equívoco cometido pelos técnicos da SPU é o de utilizar dados das Tábuas de Marés da Diretoria de Hidrografia e Navegação – DHN publicadas em anos recentes, informando que tais dados são das “Tábuas de Marés dos anos de 1831 e 1832” (fls. 83-90 do Relatório do Processo No 10480.008795/89-80 – Demarcação dos terrenos de marinha nas praias de Jaboatão dos Prazeres – PE) sem mencionar qualquer ressalva sobre este fato. Para o leigo em assuntos de marés isto pode ser aceito como verdadeiro. Entretanto, tal informação é totalmente falsa! Em verdade, somente a partir de outubro de 1969 são publicadas pela DHN as Tábuas das Marés, calculadas na época pelo computador IBM/360 da

Diretoria de Intendência da Marinha ( < http://www.bodeverde.org/BV_HP07D.htm#Top > ).

Vejam-se mais os seguintes subitens da citada ON-GEADE-02/01:

“4.8.9 Em locais onde, por ação da dinâmica das ondas, as águas atingirem nível superior ao da cota básica, adotar-se-á esse nível como quantificador da cota básica efetiva.

4.8.10 A ação da dinâmica das ondas deve ser determinada por observações de preamares cuja amplitude mais se aproxime do valor da máxima maré mensal, excluindo-se a influência de outros fatores que não sejam os gravitacionais.

4.8.11 Na constatação da existência de acrescidos naturais ou artificiais (aterros) ocorridos após 1831, toma-se como linha básica para a demarcação da LPM a linha que coincidir com o alcance das ondas na maior maré mensal atual, feita a abstração dos referidos acrescidos.

4.8.12 Na constatação da existência de avanço dos mares ocorrido após 1831, tomar-se-á como linha básica para a demarcação da LPM a linha que coincidir com o batente das ondas, abstraindo-se os referidos avanços.”

Estes quatro subitens de 4.8.9 a 4.8.12 são, como o subitem 4.8.2, também ilegais, porque a linha de referência adotada não está sendo a da “preamar média”, conforme claramente expresso no preceito legal. Esta alteração da referência da preamar média para limites superiores decorrentes da ação da dinâmica das ondas não tem qualquer cabimento e vêm sendo praticados ao arrepio da Lei, na tentativa de justificar uma “LPM/1831” inexistente, jogando-a o mais que puder para o lado de terra e invadindo, consequentemente os imóveis limítrofes.

Depreendem-se pelas transcrições deste subitem 4.8.2 e dos subitens 4.8.9 a 4.8.12, que tais critérios são claramente tendenciosos, no sentido de obter as máximas cotas básicas efetivas da “LPM/1831” e alcançar, pela sua projeção no relevo terrestre, a maior distância possível na localização desta isoípsa de referência, a partir da qual serão contados mais trinta e três (33) metros para o lado de terra, que caracterizam os terrenos de marinha.

Estes critérios contidos nos subitens 4.8.2, e de 4.8.9 a 4.8.12 da ON-GEADE-002-01 são os mais comprometedores de todos. Os demais até podem ser relevados, mas estes não podem ser admitidos em hipótese alguma, pois conflitam com os ditames legais em vigor.

Seguindo a orientação contida nessa ON-GEADE-002-2001 a SPU, através de suas Superintendências Regionais nos Estados brasileiros, determina que a empresa contratada para efetuar os levantamentos topográficos e cartográficos dos terrenos de marinha em certa localidade, que localize a “LPM/1831”, por exemplo, com uma cota básica sobre a curva de nível com altitude oficial (NMM IBGE), por exemplo de 1,6m, elevado para dois (2) metros – por arredondamento para mais do valor da sua cota básica calculada – já que entende que os terrenos de marinha são terrenos enxutos – e, a partir dela faça a localização da linha limite de marinha – LTM, ficando assim, demarcada a faixa dos terrenos de marinha. Isto se constata nos Relatórios das SPU Regionais sobre as demarcações realizadas.

Após realizada a demarcação como acima explicada, em obediência ao artigo 11 do Decreto-Lei 9.460/46, o chefe do órgão local da SPU Regional “determinará a posição da linha em despacho de que, por edital com prazo de 10 (dez) dias, dará ciência aos interessados para oferecimento de quaisquer impugnações”. Se alguém ousa impugnar a declaração de que seu imóvel não se encontra sobre faixa de terrenos de marinha, a SPU indefere o recurso administrativo alegando que “a homologação da LPM/1831 é um ato administrativo perfeito e acabado”.

Acredita a SPU que os seus atos foram praticados em fiel obediência ao contido na ON-GEADE-02-01 e que as atividades e tarefas foram realizadas por uma Comissão de técnicos (engenheiros, geólogos, geógrafos, e outros) designados por uma Portaria, e que as demarcações foram feitas de acordo com o que determina o Decreto-Lei 9.460/46. Por tudo isto, acredita na eficácia e na validade de todos os seus atos.
A jurisprudência predominante na área do Direito entende que: “Ato administrativo é a declaração jurídica do Estado ou de quem lhe faça as vezes, no exercício de prerrogativas públicas, praticada enquanto comando complementar de lei e sempre passível de reapreciação pelo Poder Judiciário.” E mais que: “O ato administrativo é perfeito (concluído) quando cumprir os requisitos de existência jurídica, incluído nestes a publicidade.”

Verificam-se assim, pela jurisprudência existente, que “um ato administrativo perfeito e acabado” não pode suscitar qualquer dúvida quanto a sua validade, acreditando-se que o mesmo foi produzido de acordo com as normas jurídicas que o regem (adequado à ordem jurídica).

Os equívocos na interpretação de elementos estatísticos clássicos, que se aprende desde o ensino de nível médio, e a adoção de conceitos sofismáticos, inadequados e ilegais como os contidos na referida Orientação Normativa, são flagrantes e invalidam os atos administrativos dos agentes da administração pública que os pratica, embora não admitam tais incoerências.

Demarcar os terrenos de marinha utilizando-se de critérios da presunção para a localização de uma “LPM/1831 (SPU)”, diferente de como se encontra definido pelo artigo 2o do Decreto–Lei no 9.760/1946, não pode mais ser admitido atualmente, em face da existência de metodologia técnica e científica moderna que soluciona o problema.

Encaminhamento de propostas de mudanças na conceituação dos terrenos de marinha

A população brasileira vem questionando e solicitando, através de órgãos técnicos das áreas da Engenharia e do Direito e, particularmente dos políticos envolvendo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, providências no sentido de mudar a conceituação dos terrenos de marinha, porque, como se encontra, já não mais se justifica, além de se encontrar gerando sérios e graves prejuízos ao direito da propriedade particular localizada na orla marítima brasileira.

As propostas de alteração no conceito de terrenos de marinha que já tramitaram e continuam tramitando no Congresso Nacional, não têm surtido os efeitos desejados, porque estão sempre associadas com solicitações de suspensão ou redução de pagamentos das taxas de aforamentos/ocupações e laudêmios. Esta tem sido uma barreira intransponível porque alega a administração pública que: “se particular está ocupando bem da União os pagamentos das taxas correspondentes são devidas, de acordo com a legislação em vigor”. Isto seria verdadeiro se as demarcações dos terrenos de marinha também fossem verdadeiras. Por isto as pressões da sociedade brasileira desde longa data.

Foi a partir da adoção desta referência da LPM/1831 que os problemas demarcatórios dos terrenos de marinha e seus acrescidos começaram a surgir. Já no ano de 1904 o Clube de Engenharia no Rio de Janeiro se empenhava com denodo em estudos sobre a demarcação da linha de preamar média, onde se registra:
“Provocado por consulta de um sócio que deseja saber do processo mais acertado para a discriminação dos terrenos de marinha, tendo em vista não somente processos científicos, como também as disposições da lei que regem o assunto, o Conselho Diretor designou o Dr. Alfredo Lisboa para elaborar o parecer”.

A consulta levantava os seis questionamentos seguintes, que foram apresentados na sessão do Conselho realizada em 1o de junho de 1904:

I. O que é preamar média?

II. Qual o processo científico mais prático para determinar a preamar média com exatidão aproximada?

III. Como transferir o nível da mesma preamar para a costa?
IV.
V. Uma curva traçada na costa e que liga os pontos extremos a que chegam as ondas do mar nas praias, por ocasião da arrebentação, pode ser considerada como limite da preamar média?
VI. A linha que as águas do mar deixam gravada nas praias e rochedos pode ser considerada como limite da mesma preamar?
VII. Finalmente, de acordo com o Decreto n.o 4.105, de 22 de fevereiro de 1868, podem as linhas assinaladas nos quesitos IV e V servir de testada de faixa dos terrenos de marinha?

Estes questionamentos persistiram ao longo destes noventa e oito (98) anos, até o mês maio do ano de 2002, quando foi divulgada e publicada a metodologia técnico-científica de uma Tese de Doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

A metodologia técnica e científica moderna que soluciona o problema da localização da LPM/1831, existente a partir do início do ano de 2002 (Lima, 2002)1, comprova que a conceituação dos terrenos de marinha contida no artigo 2o do Decreto–Lei no 9.760/1946 já se encontra caduca e carece ser extinta, pois não faz mais qualquer sentido a sua manutenção.

Contudo, depois de decorridos mais de dez (10) anos da existência da metodologia desenvolvida para a demarcação dos terrenos de marinha, até a presente data nem a SPU nem os órgãos do governo brasileiro, nos seus três níveis federal, estadual ou municipal, adotaram qualquer postura que beneficie as pessoas que tiveram seus bens imóveis confiscados, após serem declarados e cadastrados como bens da União, demarcados que foram pelos critérios antigos e inadequados que continuam vigentes. Esta postura da SPU conduz a dois questionamentos fundamentais à respeito do assunto:

Primeira questão: Dispondo da metodologia técnico-científica capaz de localizar a LPM/1831 real, com a precisão e exatidão requeridas na medição destas parcelas territoriais, em relação ao nível médio do mar de cada localidade da orla marítima brasileira, tem a SPU interesse em aplicá-la?

Pelas constatações das ocorrências pode-se afirmar que a SPU não tem tal interesse.

Segunda questão: Quais são as razões pelas quais a SPU não utiliza a metodologia científica ora disponível para o cálculo da LPM/1831 verdadeira?

A resposta para esta pergunta tem sido dada pela SPU e por políticos da área governamental, sempre que são questionados e/ou pressionados para mudar os critérios na demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Respondem que o “Governo Federal precisa manter a arrecadação tributária sobre estes bens e não pode abrir mão dela”. Ou seja: o governo apropria-se da propriedade particular e concede o uso do domínio útil a quem detém a posse das benfeitorias edificadas, mediante o pagamento das taxas de aforamento, ocupação e laudêmio.

Um exemplo bem recente deste comportamento pode ser verificado ao se examinar um Projeto de Lei iniciado no Senado no ano de 1999 e arquivado em 15/10/2008 na Câmara dos Deputados.

Tramitou no Congresso Nacional um Projeto de Lei do Senado sob No PLS-617/1999, de autoria do ex-Senador Paulo César Hartung Gomes, atual Governador do Estado do Espírito Santo – ES (E-mail:< governador@es.gov.br > ). Na Câmara dos Deputados este PLS-617/1999 tramitou como Proposição de Projeto de Lei No PL-4316/2001.

Ao encerrar a discussão sobre este PL 4316/01, motivada pela determinação do seu arquivamento no dia 15/10/08 a Comissão de Finanças e Tributação, através do seu Relator, Deputado Federal Ricardo Berzoíni (PT-SP) considerou a “proposta inadequada financeiramente” e que com sua aprovação “isso provocaria perda considerável de receitas federais relativas a taxas de ocupação de imóveis, foros e laudêmios”, além de “transferir significativa parcela do patrimônio imobiliário da União para os municípios”.

Nota-se claramente neste procedimento político a preocupação maior com as coisas do Estado e o total desprezo para com os cidadãos e a sociedade brasileira, pois é sabido pela SPU e pela alta administração do Ministério da Fazenda, que todos os que foram atingidos pelas medidas decorrentes da aplicação do instituto jurídico dos terrenos de marinha, ou a sua grande maioria, tiveram as suas propriedades confiscadas, além de serem compulsados a pagar, de modo perpétuo, as taxas correspondentes aos foros, ocupações e laudêmios.

Portanto, para que a SPU continue se beneficiando com a “legalidade” das demarcações das “LPM/1831 (SPU)” presumidas, ela não somente deixa de aplicar a metodologia já desenvolvida e disponível, como prefere mantê-la no esquecimento.

Conclusão

Em face ao exposto, foi enfaticamente demonstrado que houve interpretações equivocadas e tendenciosas referentes aos conteúdos dos artigos 10o a 14 do Decreto–Lei no 9.760/1946, gerando critérios inaceitáveis e ilegais nas demarcações dos terrenos de marinha, por conflitar frontalmente com o artigo 2o deste mesmo diploma legal, com sérios prejuízos aos proprietários de bens imóveis situados nas orlas marítimas brasileiras, por terem suas propriedades declaradas e cadastradas como bens da União.

Os pagamentos das taxas de ocupação/aforamento e laudêmios pouco ou quase nada representam em relação ao dano maior que se configura, quando uma propriedade particular é declarada como sendo um bem da União. O proprietário do terreno perde todo o direito pleno sobre aquele bem que lhe pertenceu.

O domínio pleno do bem imobiliário passa a pertencer ao governo federal que, achando pouco a apropriação que fez, ainda faz uma espécie de chantagem ao ex-proprietário, oferecendo ao mesmo a opção caso tenha interesse, de requerer a ocupação do uso do território onde tem benfeitorias, ou se pretende construir será dada a concessão, desde que se sujeite a pagar anualmente, e em caráter perpétuo, a correspondente taxa de ocupação (2% sobre o valor da terra nua, se a ocupação ocorreu antes de 1988 e 5% se após) e os laudêmios (5% sobre o valor total dos bens). Mesmo assim tal ocupação é precária, podendo a União cancelar a concessão em qualquer momento posterior.

Caso o ex-proprietário não concorde com a concessão de ocupação proposta, aquele bem será leiloado à quem interessar. Contudo, caso concorde e venha a deixar de pagar as taxas de ocupação/aforamento estipuladas por três (3) anos sucessivos ou quatro (4) intercalados, igualmente perderá a concessão e os bens serão leiloados.

Este sim é o dano maior e que precisa ser revertido. Uma vez revertido o direito do domínio pleno do bem imóvel ao seu legítimo dono, cessam, consequentemente, os pagamentos de taxas de aforamentos/ocupações e laudêmios. E o único caminho para reverter a situação é pela via judiciária.

Todo e qualquer cidadão, brasileiro e/ou estrangeiro, que se julgar prejudicado em seus direitos à propriedade particular tem o direito de protestar no sentido de reaver aquilo que foi apropriado pelo governo de modo inconveniente, inoportuno ou ilegítimo.

Diante dos obstáculos postos pela SPU na avaliação de recursos administrativos apresentados, não resta alternativa ao recorrente senão a da via judiciária, por meio de uma Petição instrumentada por um competente Laudo Pericial Técnico-Científico, que deverá servir para auxiliar a decisão do Magistrado no julgamento do caso, demonstrando e provando todas as irregularidades contidas nas demarcações específicas efetuadas por aquele órgão gestor dos bens da União.

Referências Bibliográficas

Lima,O.P. Localização geodésica da linha da preamar média de 1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e de seus acrescidos. Florianópolis, SC, 2002. xx, 251p. Tese (Doutorado em Engenharia) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, UFSC, 2002.

Mattos,V.R. A presunção de veracidade do conteúdo dos documentos públicos como prova no processo. IN: Revista Jus Vigilantibus, Segunda-feira, 27 de outubro de 2003.

Meirelles,H.L. Direito Administrativo Brasileiro. 25a Ed., São Paulo: Malheiros, 2000.

 

Prof. Dr. Roberval Felippe Pereira de Lima – Geógrafo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
Centro de Ensino Superior do Seridó – CERES/CAICÓ
Departamento de Geografia – DGEO
Rua Joaquim Gregório S/N – CEP 59300-970
Bairro: Penedo – Caicó/RN
E-mail: robervalfelippelima@hotmail.com

Dr. Obéde Pereira de Lima – Eng. Cartógrafo
CTM – Consultoria Técnico-Científica em Terrenos de Marinha
Microempresa Individual – ME
Rua Rio de Janeiro, 201
Bairro: Cassino, CEP 96205-230
Rio Grande, RS
E-mail: obede@vetorialnet.com.br