A América Latina apresenta os mais elevados índices de desigualdade do mundo e o Brasil ainda está entre os países mais desiguais da América Latina. Porém as desigualdades, em várias áreas, vêm diminuindo consistentemente. São reduções gradativas. Não houve nenhum grande salto de superação das desigualdades concentrado em um momento específico, mas o processo, como um todo, está fortemente associado à reconstrução da democracia.

Em 2010, 85% da população brasileira vivia em cidades (foto: Léo Ramos)

Esta é uma das conclusões do livro Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, organizado por Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.

“O livro é o primeiro grande balanço feito nas ciências sociais que considera o Brasil como um todo, em todas as dimensões tidas como relevantes, ao longo de 50 anos de trajetória”, disse Arretche à Agência FAPESP. Uma equipe composta por 23 pesquisadores, de diversas áreas das ciências sociais (demografia, economia, sociologia e ciência política), realizou a síntese, a partir da sistematização de dados censitários.

“Contamos com a participação de professores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da University of Illinois at Urbana-Champaign, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e do CEM”, informou a organizadora.

O trabalho desses pesquisadores beneficiou-se de seis edições dos Censos Demográficos, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1960 a 2010. Ao longo desse meio século, o país apresentou configurações econômicas e políticas muito distintas: transição rural-urbana; industrialização, crescimento econômico acelerado e retração econômica; inflação e estabilidade monetária; autoritarismo e democracia.

Conforme destacou Arretche na apresentação da obra, o Brasil dos anos 1960 era um país rural, com três quartos de sua população funcionalmente analfabeta e esmagadoramente católica e um mercado de trabalho com amplo predomínio masculino. Confinadas no lar e com suas atividades restritas ao trabalho doméstico, as mulheres tinham em média seis filhos. A desigualdade entre brancos e não brancos começava no acesso aos bancos do ensino fundamental.

Um país altamente urbanizado

Em 2010, o Brasil já era um país altamente urbanizado, com 85% de seus habitantes vivendo em cidades. Entre os jovens, a conclusão do ensino básico tornara-se praticamente universal e 70% deles completavam oito anos de estudo. O analfabetismo funcional, restrito então a 20% da população economicamente ativa, concentrava-se entre os mais velhos. Em uma sociedade cada vez mais plural em termos religiosos, ter filhos passara a ser uma escolha, as mulheres haviam-se tornado maioria no contingente universitário e deixara de haver diferenças entre profissões tipicamente masculinas ou femininas.

Entre um marco cronológico e outro, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos e a esperança de vida subiu de 62 para 73 anos. O acesso muito maior ao ensino médio e superior exerceu grande impacto no funcionamento do mercado de trabalho e na participação política.

Segundo cálculo realizado pelos autores do livro, com base nos dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), do IBGE, o pico da desigualdade de renda no Brasil ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando o piso da renda dos 5% mais ricos correspondia a 79 vezes o teto da renda dos 5% mais pobres. “Desde então, essa razão vem apresentando queda sistemática. Em 2012, ano em que a série atingiu seu patamar mais baixo, ela era de 36 vezes”, afirmou Arretche.

Desigualdade de renda

O estudo mostrou que as desigualdades de renda vêm caindo principalmente entre os 90% mais pobres. “A desigualdade entre os 10% mais ricos e os 90% mais pobres manteve-se praticamente estável. Mas, no conjunto dos 90% mais pobres, houve mudanças importantes. A extrema pobreza, definida por renda inferior a um quarto do salário mínimo, foi muitíssimo reduzida, basicamente por causa do programa Bolsa Família. Na década de 1990, os extremamente pobres compunham 38% da população. Hoje, são 5%. E, devido à política salarial, a pobreza também diminuiu”, contabilizou a pesquisadora.

Mas ela enfatizou que uma diferença de 36 vezes no patamar de renda ainda constitui uma desigualdade muito grande. Reconheceu, no entanto, que o desenho descendente da curva da desigualdade de renda no Brasil destoa da tendência observada no mundo desenvolvido. “Dados do The World Top Income Database indicam que, nos Estados Unidos, a participação dos 1% mais ricos na renda nacional (excluídos os ganhos de capital) cresceu de 12,2% para 19,3% entre 1991 e 2012. No mesmo período, esse indicador passou de 10% para 15,4% no Reino Unido, e de 5% para 7,1% na Suécia, considerada um exemplo de democracia avançada.”

Por importante que seja a variável renda, ela não é superdimensionada no livro. “Até agora, os balanços das desigualdades no Brasil concentravam-se demais nas diferenças de renda, destacando menos outras dimensões relevantes. Fizemos um balanço multidimensional, contemplando, além da renda, dimensões como mercado de trabalho, educação, acesso a serviços, desigualdades de gênero, desigualdades de cor, desigualdades territoriais, participação política etc. Foi um trabalho empiricamente muito robusto”, disse.

Nesse amplo leque de variáveis, o tratamento dos dados confirmou que há desigualdades muito mais persistentes do que outras. É o caso daquelas decorrentes da cor da pele. Em um país que muitos ainda acreditam ser uma “democracia racial”, a velocidade com que as mulheres diminuíram sua desigualdade em relação aos homens foi muito maior do que a velocidade com que os não brancos diminuíram sua desigualdade em relação aos brancos. “Se o mundo universitário na década de 1960 era um mundo branco e masculino, hoje ele é apenas branco. As mulheres superaram os homens, mas os brancos ainda compõem 75% da população universitária. Mais que isto, quando os não brancos entram no sistema de ensino superior, tendem a ingressar nas escolas que dão acesso às profissões de menor prestígio. A redução das desigualdades de cor no sistema escolar permaneceu restrita ao ensino fundamental”, comentou Arretche.

Políticas Públicas

De acordo com a pesquisadora, as políticas públicas têm desempenhado um papel central na redução das desigualdades. E não se trata da mera existência de políticas públicas, porque estas sempre existiram. Mas também de seu desenho. Um exemplo mencionado por ela é o da baixa desigualdade de participação política. Diferentemente de outros países, em que os pobres não participam do processo eleitoral, em que a participação eleitoral ocorre em desfavor dos pobres, no Brasil a participação dos pobres é alta. E a desigualdade entre as regiões no tocante à participação política é muito pequena.

“Poderíamos dizer, intuitivamente, que isso ocorre porque o voto inclui os analfabetos e é obrigatório. Mas estas não são as principais razões. As principais razões são algumas decisões dos tribunais eleitorais em relação às regras de participação”, afirmou. “Por exemplo, nos Estados Unidos e na Itália, o eleitor tem que se registrar para cada eleição. Além disso, as eleições ocorrem em dia de trabalho. No Brasil, o título de eleitor permite participar em várias eleições. E as eleições sempre ocorrem em domingos ou feriados. Parece pouco, mas esses fatores foram muito importantes para aumentar a participação. Mais do que as grandes decisões, são, às vezes, os pequenos detalhes que contribuem para a diminuição da desigualdade.”

Mas, se algumas melhorias são, por assim dizer, territórios conquistados ou ganhos estruturais, outras podem ser ainda abaladas por flutuações conjunturais. “A queda das desigualdades é resultado de muitos mecanismos, que se combinam no tempo”, explicou Arretche. “Um desses mecanismos diz respeito à demografia. Uma das razões importantes da histórica desigualdade no Brasil é que tínhamos abundância de mão de obra barata e de baixa qualificação. Isso mudou, porque a taxa de fertilidade mudou e o acesso à educação aumentou. Desses dois fatores, o primeiro pode ser considerado irreversível. Dificilmente voltaremos ao padrão de fertilidade que tivemos até a década de 1980. Mas não há garantia de que o acesso à educação continue aumentando. Nos Estados Unidos, por exemplo, aconteceu o contrário. Os estudos mostram que, lá, os patamares educacionais caíram de 1970 para cá.”

É claro que essa comparação precisa ser matizada, porque, nos Estados Unidos, o grande diferencial é o acesso ao ensino superior, ao passo que o Brasil apenas acabou de universalizar o ensino fundamental. “Mas, dependendo da conjuntura, existe o risco de ficarmos paralisados nisso. A trajetória de longo prazo das desigualdades no Brasil revela que não há determinismo – econômico ou político – nesse processo. Políticas importam! Mais que isso: deslocamentos nos padrões de desigualdade requerem políticas implementadas por um longo período de tempo”, concluiu.

O livro será lançado em seminário no Centro de Estudos da Metrópole, em 2 de junho de 2015, das 9 às 18 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Prédio da Filosofia e das Ciências Sociais, Sala 14, na Avenida Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária, São Paulo.

O evento é aberto a todos, sem necessidade de inscrição prévia.

Mais informações: www.fflch.usp.br/centrodametropole.

Fonte: Agência FAPESP