Por Eduardo de Rezende Francisco
Deparei-me recentemente com o artigo “A Matemática e a Cartografia”, de Geraldo Ávila (Revista do Professor de Matemática, 65, de 2008), que traz um pouco da história da aproximação entre essas duas ciências. Reproduzo aqui parte desse artigo, estendendo-o para episódios históricos que abordam o advento das geotecnologias.
A Cartografia, arte de fazer mapas, tem uma história antiga, que remonta a milênios antes de Cristo. Nos tempos modernos, a partir de meados do século XV, a elaboração de mapas tornou-se uma atividade de interesse crescente, principalmente devido às grandes navegações, que exigiam mapas cada vez mais confiáveis. Desde a origem da Cartografia, a Matemática sempre constituiu a base para a formulação e construção do conteúdo desse campo do conhecimento, da representação gráfica da superfície terrestre e dos objetos geográficos. Escala, proporções, coordenadas geográficas, projeções cartográficas, fuso horário, e muitos outros, são conceitos matemáticos fundamentais para a leitura de mapas.
Mapas do mundo conhecido foram feitos desde tempos bem remotos. De todos esses mapas, o mapa-mundi de Cláudio Ptolomeu (83 – 161 d.C.) teve vida bem longa, servindo a seus contemporâneos ainda no tempo do Império Romano, passando pelos árabes e voltando à Europa ainda na Idade Média.
Esse mapa encontra-se em sua importante obra, Geographia (Geographiké Hyphegesis), que influenciou cartógrafos, navegadores e astrônomos do século XV e boa parte do século XVI.
Mapa de Ptolomeu
As navegações foram um grande estímulo para que se intensificassem os esforços na confecção de mapas cada vez mais informativos e confiáveis, dentre os quais o mapa (e a projeção) de Mercator, que ficou sendo o mais importante e famoso até os dias de hoje. Assim, com o tempo, o mapa de Ptolomeu foi perdendo importância prática.
Gerhard Kremmer (1512-1594) foi um geógrafo e cartógrafo natural de Flandres, que atualmente faz parte da Bélgica. Ele ficou conhecido pelo seu nome latinizado Gerardus Mercator (Kremmer significa mercador). Seu famoso mapa data de 1569, e revolucionou a Cartografia.
Sua principal característica era a de ter, em um mapa plano, as linhas de rumo retas fazendo ângulos constantes com os meridianos. Até esse advento, não havia mapas com essas características.
Aos poucos os navegadores foram percebendo a vantagem em precisão e facilidade de navegação que ele oferecia.
Durante toda essa época, e até meados do século XVIII, os cartógrafos procuravam descobrir uma maneira de fazer mapas de grandes regiões, ou mesmo de todo o globo terrestre, de forma a reproduzir as diferentes localidades da Terra preservando, com exatidão e na mesma escala, as várias distâncias entre elas. Isso perdurou até que o grande matemático Leonard Euler (1707-1783) demonstrou a impossibilidade desse intento.
Mapa de Mercator
Um ramo da Matemática, do qual Euler pode ser dito como um dos fundadores, é conhecido por Teoria dos Grafos, uma parte hoje adulta e independente da Topologia.
Esta é, grosseiramente, o estudo das formas das figuras geométricas e das propriedades qualitativas das transformações contínuas entre tais figuras. O século XVIII a conheceu como Geometria Situs e mais tarde a denominação Topologia Combinatória se disseminou até advir a enorme expansão do assunto no século XX.
A resolução do famoso problema das sete pontes de Königsberg por Euler, em 1736, é considerada como sendo um dos primeiros resultados topológicos (falaremos mais especificamente sobre esse assunto em um próximo artigo). Mais ainda, dentre as mais conhecidas descobertas de Euler está aquela contida na fórmula que relaciona o número de vértices, áreas e faces de um poliedro. Mais tarde, tal resultado serviu de base para a definição da “característica de Euler”, que foi utilizada por H. Poincaré (1854-1912) para a classificação das superfícies, um dos principais invariantes da moderna Topologia.
As relações topológicas entre elementos geográficos – continência, pertinência, conectividade e proximidade – são utilizadas amplamente na representação e análise dos objetos geográficos, vetoriais e raster, desde sua criação, na década de 1960, e sua vida profissional, a partir da década de 1980. Dentre elas estão a análise de rede e a roteirização, que se utilizam da conectividade entre elementos vetoriais, exemplos da apropriação da Teoria dos Grafos no geoprocessamento.
A determinação do melhor, ou menor, roteiro, funcionalidade extremamente útil para logística, despacho de veículos, planejamento de trânsito e apoio a aplicações urbanas com GPSs embarcados, teve uma contribuição importante do matemático e cientista da computação holandês Edsger Dijkstra (1930-2002), conhecido também por suas contribuições nas áreas de desenvolvimento de algoritmos, linguagens de programação, sistemas operacionais e processamento distribuído. O algoritmo para o problema do caminho mínimo em redes, desenvolvido em 1959 e popularmente conhecido por algoritmo de Dijkstra, está implementado em praticamente todas as ferramentas de geoprocessamento comerciais e livres.
Sem dúvida, esse passeio histórico merece ser enriquecido por muitos outros episódios. Poderíamos enveredar por toda a teoria que sustenta a localização GNSS, ou pelos desdobramentos dos modelos de representação da Terra, elipsóides, geóides e projeções cartográficas, ou mesmo buscar na Matemática Aplicada e na Computação outros fundamentos que são utilizados em sofisticadas minerações de dados, ou tratar da teoria computacional que sustenta o recente 3D-GIS e sua interface com a realidade virtual. Convido os leitores a ajudarem nesse processo.
Eduardo de Rezende Francisco é mestre e doutorando em administração de empresas pela FGV-EAESP, bacharel em ciência da computação pelo IME-USP, atua em GIS, business intelligence, pesquisas de mercado e estratégias de marketing na AES Eletropaulo, é consultor em integração Geomarketing & Data Mining e presidente da Gita Brasil (www.gita.org.br)
Bibliografia
Ávila, Geraldo. A Matemática e a Cartografia, Revista do Professor de Matemática, número 65, pg. 4-11, São Paulo, 2008.
De La Penha, G. M. Euler e a Topologia, Revista do Professor de Matemática, número 3, pg. 12-14, São Paulo, 1986.
Wikipedia. Ptolomeu, Euler, Dijkstra, Topologia. Disponível em www.wikipedia.org .
Davis, Clodoveu. Caminho Mínimo em Redes. Publicações Prodabel, Belo Horizonte, 2001.
Rocha, M. L. P. C. & Espírito Santo, A. O. Matemática e Cartografia: Como a Cartografia pode Contribuir no Processo Ensino-Aprendizagem da Matemática?, CEFET, Belém, Pará, 2003.
Bônus: a resolução do teorema de Euler
Em tempo, vamos explicar e demonstrar o resultado de Leonard Euler a respeito de projeções cartográficas.
Esse resultado data de 1775, de sorte que até esse ano os cartógrafos continuavam sua faina em busca de um mapa plano do globo terrestre ou de uma região do globo com a propriedade de que todas as distâncias entre diferentes lugares se mantivessem inalteradas. Mais especificamente, o que se busca provar: é possível construir um mapa plano do globo terrestre, ou de uma parte do globo, com uma escala fixa, ou seja, sem distorções? Dito de outra maneira, é possível construir um mapa plano para o qual a distância entre quaisquer dois de seus pontos é sempre igual a um múltiplo fixo da distância ao longo dos pontos correspondentes no globo, medida ao longo do círculo máximo por esses pontos?
A demonstração de que isso é impossível é tão simples que é de admirar que ninguém a tivesse descoberto bem antes de Euler.
Para provar essa impossibilidade, basta considerar uma pequena região ao redor de um ponto P do globo, este representado na figura abaixo por uma esfera de raio R. Para simplificar, vamos supor que R já tenha sido escolhido de forma que o mapa esférico e o mapa plano estejam na mesma escala. Assim, raciocinando por absurdo, um arco de comprimento r ao longo de um grande círculo da esfera seria transformado num segmento retilíneo de comprimento igual no mapa plano. Repare que os pontos Q na esfera, com PQ=r, formam uma circunferência de raio s<r, cuja imagem no mapa plano é uma circunferência de raio r, portanto, de comprimento 2πr. Ao mesmo tempo, o comprimento dessa circunferência deveria ser 2πs, pois ela é imagem de uma circunferência de raio s. Mas, como s<r, isso contradiz a afirmação anterior e conclui a demonstração.
Qualquer pessoa que tenha desfrutado o prazer de comer uma boa tangerina sabe que é impossível transformar sua casca, ou parte dela, num objeto plano. O mesmo é verdade de uma bola de borracha rasgada. E há de reconhecer, nessas experiências, a presença do resultado de Euler.