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Geomemória social e urbana

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Quando a cidade era mais gentil

Voltamos à revista MundoGEO, desta vez em dupla com o amigo Martin Jayo, para tirar o leitor da zona de conforto e discutir um pouco a (falta de) memória coletiva do brasileiro. Será que as geotecnologias podem ajudar de alguma forma?

“O brasileiro não tem memória”: quem não conhece a expressão, em geral dita em tom de queixa ou lamento? É provável que você se lembre (e não há um trocadilho aqui) de tê-la ouvido inúmeras vezes, repetida pelos mais diversos motivos, justificados ou não.

E você já deve ter notado, também, que a expressão só faz sentido para um tipo particular de memória: a coletiva ou social. Entre os brasileiros há evidentemente muitas pessoas com excelente memória, assim como outras mais avoadas ou esquecidas. Certamente não é a esta faculdade que nos referimos ao dizermos, por vezes, que o brasileiro é um povo sem memória.

A noção de memória pode ser entendida de pelo menos duas formas. Em seu sentido mais simples e tradicional, que encabeça os verbetes dos dicionários, memória é a capacidade individual de reter informações ou lembrar acontecimentos, e como tal é objeto de estudos da medicina, da psicologia e da neurociência, entre outras disciplinas. Já a memória social ou coletiva é entendida em uma dimensão que ultrapassa o indivíduo, e seu conceito se desenvolveu na sociologia, sobretudo a partir do trabalho do sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945).

Para Halbwachs, nossas memórias se formam condicionadas por enquadramentos sociais, relacionados a fatores como o espaço e o tempo em que vivemos e os grupos sociais em que estamos inseridos. Desta forma, o autor acredita não ser possível uma memória individual pura: os indivíduos não recordam sozinhos, e o que eles lembram é na verdade um emaranhado de recordações comuns, que se influenciam mutuamente. “A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão, enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo”, acrescenta a psicóloga social e professora da USP Ecléa Bosi (1994, p.54), uma das principais pesquisadoras brasileiras da matéria. Embora não seja nosso objetivo fazê-lo aqui, é sob esta ótica que poderíamos discutir ou questionar a desgastada afirmação que inicia este artigo, segundo a qual o brasileiro seria um povo sem memória.

Outro pesquisador brasileiro, Maurício de Almeida Abreu, geógrafo e professor da UFRJ, dedicou-se a estudar uma forma específica de memória social: a memória das cidades. Para Abreu, o que distingue esta categoria de muitas outras formas de memória social é o fato de ela ter, necessariamente, existência material. A memória de uma cidade, para Abreu, é formada por um estoque de vestígios físicos do passado que, reapropriados pelas gerações presentes, permitem estabelecer uma relação de pertencimento ou de identidade com o território. Daí a importância de atitudes e políticas voltadas à preservação de certas edificações, equipamentos, monumentos e demais elementos materiais presentes na paisagem das cidades, que possam ser considerados bens repositórios de memória.

Sob esta ótica, talvez seja possível concordar com a afirmação de que os brasileiros sofrem de alguma falta de memória. De fato as nossas cidades, mesmo as mais antigas, não mantêm nas suas paisagens construídas quase nada com mais de 60 ou 70 anos de idade. O exemplo de São Paulo (apontado também por Benedito Lima de Toledo em seu livro São Paulo, três cidades em um século) é talvez o mais representativo: a cidade que conhecemos hoje foi construída na segunda metade do século 20, no espaço deixado por uma outra que, por sua vez, também tinha sido construída no século 20, num processo de construção e reconstrução que deixou pouquíssima margem à preservação de memória urbana material. As grandes cidades brasileiras de forma geral também cresceram por esse processo, e de fato têm “pouca memória”: não permitem às suas gerações atuais conhecer o espaço em que viveram seus avós ou seus pais, dificultando a criação de laços, de pertencimento ao território.

Contudo, um fenômeno relativamente incipiente parece sugerir que a internet e as redes sociais possuem o poder de compensar, ainda que parcialmente, nossa escassez de memória urbana material. Nos últimos dois ou três anos, chama a atenção o florescimento de dezenas, ou talvez centenas, de iniciativas na internet que parecem ter a capacidade de superar essa falta. O estoque de memória destruído de cidades e lugares encontra nelas um ambiente para ser reconstruído virtualmente – por meio de fotos antigas, textos e material documental – cumprindo um papel ainda não estudado, porém aparentemente importante, no resgate e na transmissão de memória e na criação de territorialidade. Por meio dessas iniciativas virtuais – blogs e sites na web, além de páginas nas redes sociais – um público bastante grande, ainda que difícil de quantificar, tem descoberto e valorizado o passado de suas cidades e territórios reais.

Na cidade de São Paulo, um dos exemplos é o “quando a cidade era mais gentil” (quandoacidade.wordpress.com), um blog mantido desde 2012 por um dos autores deste artigo, que conta hoje com cerca de 1500 acessos (page views) diários e cerca de 10 mil seguidores em sua página no Facebook. Outras iniciativas congêneres, com visitação certamente maior, são o Sampa Histórica (sampahistorica.wordpress.com) e o site São Paulo Antiga
(saopauloantiga.com.br), cada qual explorando por sua ótica a memória da cidade de São Paulo, além de muitas outras nas principais cidades do país, todas com bastante popularidade e um público em rápida ascensão.

Registrar memória, mantendo-a vinculada a seu tempo e seu espaço, é também papel das geotecnologias. O advento do Google Street View, de certa forma, sistematizou um registro fotográfico – apesar de seu propósito completamente diverso do que estamos discutindo. Até “voltar no tempo” já é um recurso disponível no Google Earth, permitindo que retornemos em alguns poucos anos para imagens armazenadas. De toda sorte, já é um começo auspicioso.

Alguns projetos ligados a “Spatial History”, em especial na Universidade de Stanford, têm procurado promover a colaboração da comunidade acadêmica em iniciativas criativas de análise de informação, textual, visual e espacial, envolvendo diversos registros históricos de ocupações, construções e muitas dinâmicas sociais e urbanas das mais diversas regiões do mundo. Alguns estudos interessantes do Rio de Janeiro do século 19 estão presentes.

Maurício de Almeida Abreu, principal estudioso brasileiro de memória das cidades, faleceu em 2011 e talvez não tenha chegado a observar estas novas – e potencialmente fascinante – formas de compartilhamento e transmissão de memória urbana. Talvez devamos a ele uma pesquisa mais aprofundada, que permita entender melhor o que está acontecendo: quem é público atraído por este fenômeno memorialístico na internet, quais são suas motivações, e de que forma o fenômeno pode compensar a reconhecida escassez de memória urbana material nas cidades brasileiras. Cabe a nós, mais do que nunca, reverter a máxima de falta de memória do brasileiro. Que a (geo)tecnologia nos ajude!

Museu do Ipiranga, em São Paulo, na década de 1950 (Quando a cidade era mais gentil)
Tenement House in Rio de Janeiro

 

Referências bibliográficas

ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a memória das cidades. In: Carlos, A.F.; Souza, M. L.; Sposito, M. E.. (Org.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. São Paulo: Contexto, 2011, p.19-39

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Barcelona: Anthropos, 2004. Tradução de: Les cadres sociaux de la mémoire.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. Tradução de: La mémoire collective.

JAYO, Martin. Memória urbana e esquecimentos paulistanos. GV-executivo, São Paulo, v.12 n.2, 2013, p.42-45.

TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo, três cidades em um século. São Paulo: Cossac Naify, 2004.

Eduardo de Rezende Francisco
PhD em Administração de Empresas pela FGV-EAESP, Bacharel em Ciência da Computação pelo IME-USP, atua em GIS, Business Intelligence, Pesquisas de Mercado e Satisfação de Clientes. É professor de Métodos Quantitativos, Analytics e Big Data na FGV-EAESP e de Sistemas de Informação na ESPM, Consultor em Geomarketing, Estatística Espacial e Microcrédito e sócio-fundador do GisBI e do Meia Bandeirada. erfrancisco@gmail.com

 

 

Martin Jayo
PhD em Administração de Empresas pela FGV-EAESP, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e bacharel em Economia pela FEA-USP. É professor da EACH-USP, onde é responsável por aulas de Administração de TI, eGov e ICT4D para os cursos de graduação e mestrado em Gestão de Políticas Públicas. É também líder de tema da área de Administração de Informação na ANPAD – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração.
martin.jayo@usp.br

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