Como está a situação da lei às vésperas da aplicação para todos os imóveis rurais?

Tenho acompanhado diretamente a evolução do processo que levou à elaboração da Lei 10.267/2001 desde o seu embrião, o Projeto n.3242/2000. Desde a elaboração do projeto, participei de inúmeros eventos, dirigidos aos atores envolvidos direta ou indiretamente na sua aplicação: profissionais de levantamento, registradores, notários, juízes, proprietários rurais. Publiquei artigos que documentam todo o processo, contendo propostas encaminhadas aos responsáveis por profissionais e pesquisadores, algumas aproveitadas, outras não. Neste momento, é importante analisar a situação atual, em termos de avanços e desafios para a efetiva implementação do instrumento que representa o alicerce de um sistema cadastral sólido para o Brasil.

A importância da Lei 10.267/01 para o ordenamento territorial brasileiro

A lei 10.267/01 surgiu com a promessa de acabar com a grilagem de terras. O material produzido para a divulgação da lei anunciava que “grilagem de terra e latifúndio agora são coisas do passado.” A nova legislação surgiu em conseqüência de uma demanda há muito reprimida. A pressão social por instrumentos que contribuíssem para a agilização de ações fundiárias fez com que se tornasse premente a elaboração do instituto legal ao qual nos referimos, bem como os regulamentos que se seguiram. Trata-se de uma oportunidade única de dotar o país de um instrumento poderoso para um gerenciamento territorial eficaz. Além do georreferenciamento dos imóveis rurais, a lei trata de outros pontos importantíssimos: o intercâmbio de informações com o registro de imóveis, fundamental em ações ambientais e de regularização, e a criação do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais – CNIR, um cadastro único de informações sobre os imóveis rurais do país.

Por tratar de questões novas e complexas, envolvendo uma abordagem profissional até então pouco exigida, além da integração entre instituições distintas, era de se esperar dificuldades na sua aplicação. Passados quatro anos da publicação da lei, muitos obstáculos ainda se fazem presentes. É necessário, portanto, encarar os problemas de frente e buscar as soluções que permitirão a efetiva aplicação da lei. As dificuldades implicam na necessidade de ajustes, que devem ser levados a termo com urgência.

O adiamento dos prazos de aplicação da lei estabelecido pelo Decreto 5.570/2005

Discutiu-se nos últimos meses propostas de prorrogação dos prazos para o georreferenciamento, estabelecidos através do Decreto 4.449/2002. A Carta de Araraquara, documento que resultou do 19º Encontro Regional do Instituto de Registro de Imóveis do Brasil – IRIB, discute com clareza vários pontos que representam dificuldades na aplicação da lei e apresenta propostas objetivas de solução dos vários problemas identificados. Muitas das sugestões contidas na Carta de Araraquara foram implementadas através do Decreto 5.570, publicado em 31/10/05.

A primeira questão abordada no documento produzido pelos registradores diz respeito aos prazos estabelecidos no Decreto. Argumenta-se que a contagem dos prazos não poderia ter início antes da publicação de todos os documentos normativos sem os quais não se fazia possível a sua aplicação, como as normas técnicas, as portarias definidoras da precisão, comitês de certificação e procedimentos de fluxo de informações com os registros. É justa a argumentação. Antes da publicação destes instrumentos normativos, não havia padronização dos procedimentos, ficando estes atos à mercê da interpretação de cada profissional de levantamento, responsável pela certificação ou registrador. O documento propôs uma prorrogação dos prazos até 2013 e recebeu o apoio de instituições que representam os produtores rurais. Uma prorrogação desta, a meu ver, corresponderia a um retrocesso, um sério risco de termos que reiniciar todo o processo daqui a alguns anos.

A estrutura geodésica para o georreferenciamento O georreferenciamento dos imóveis pressupõe a existência de pontos de referência suficientes para que esses levantamentos possam ser realizados dentro da precisão exigida pela lei, considerada por alguns profissionais como excessivamente branda. A tecnologia disponível permite uma precisão maior, no entanto, precisão implica em custos e pretende-se que a aplicação da lei não seja inviabilizada pelo alto custo dos levantamentos. A minimização dos custos, por outro lado, depende da existência de uma rede geodésica densa, para que o georreferenciamento a distâncias menores permita a redução dos custos dos levantamentos. Um pré-requisito para o atendimento a essa necessidade era a homologação, pelo IBGE, da rede de monitoramento contínuo do INCRA, a RIBAC – Rede Incra de Bases Comunitárias. Acredito que dificuldades técnicas, administrativas e financeiras (e talvez também políticas) impediram que os esforços dos técnicos do INCRA e do IBGE, nesse sentido, se concretizassem.

Uma boa notícia é que, de acordo com informações recentes do próprio INCRA, todos os receptores de uma freqüência da RIBAC estão sendo substituídos por receptores de dupla freqüência, permitindo o rastreio em atendimento às exigências técnicas do IBGE para a referida homologação. Além disso, o IBGE tem homologado pontos estabelecidos por instituições públicas e empresas privadas. Soma-se a esse esforço a notável expansão das redes estaduais, estando as regiões Sul e Sudeste totalmente atendidas e as regiões Norte, Centro Oeste e Nordeste parcialmente implantadas e em fase de expansão, nos estados que ainda não foram contemplados.

A questão profissional e a determinação dos limites

A exigência do georreferenciamento dos imóveis em atendimento a uma determinada precisão e para fins legais é uma novidade no Brasil. Os profissionais que atuavam em levantamentos de imóveis rurais, em sua maioria, não estavam preparados para estas novas exigências. A opção do INCRA pelo credenciamento dos profissionais e a necessidade de definição, pelo CONFEA, dos profissionais que estariam habilitados a realizar tais levantamentos, gerou uma tensão entre aqueles que já atuavam na área, aqueles que ainda não atuavam, porém são capacitados para atuar, e aqueles que não atuavam, não estavam capacitados para atuar, mas enxergaram a oportunidade que surgia. Tornou-se aparente um conflito de atribuições que existia, porém não se evidenciava porque o mercado não era atrativo.

Em vários países da Europa (França, Alemanha, Suíça, Áustria, Dinamarca) profissionais que são credenciados para atuar em cadastro para fins legais possuem uma formação muito próxima da graduação dos engenheiros cartógrafos e agrimensores brasileiros. Além disso, exige-se uma experiência prática em atividades de cadastro e cursos adicionais envolvendo temas de administração, economia e legislação. No Brasil, os cursos de engenharia passam por um processo de adaptação dos seus currículos às novas diretrizes curriculares exigidas pelo MEC. Nessa oportunidade, os currículos foram ou estão sendo adaptados para o atendimento a estas novas exigências do mercado. Profissionais se mobilizaram e organizaram eventos e listas de discussão para trocar experiências e tirar dúvidas relacionadas às questões legais e técnicas envolvidas. O site do INCRA relaciona atualmente 3201 profissionais credenciados, distribuídos de forma desigual entre os estados. Este número é suficiente para o atendimento da demanda? Uma análise superficial da lista de credenciados indica que os estados do Sudeste e Sul, que possuem uma dinâmica imobiliária mais acentuada, possuem mais credenciados. Outra pergunta: estão todos estes credenciados preparados para a realização dos levantamentos de acordo com as normas estabelecidas? A resposta dependeria de um dado que o INCRA deve dispor. Qual o percentual de levantamentos devolvidos sem certificação?

Quanto à norma técnica para o georreferenciamento, é consenso que necessita ser aperfeiçoada. Discussões realizadas em eventos e listas virtuais indicam a pertinência de sua alteração, para atendimento a questões que a prática do levantamento trouxe à tona. Universidades têm se debruçado sobre o tema, divulgando os resultados de pesquisas realizadas sobre o assunto. Profissionais que têm se dedicado aos levantamentos georreferenciados também têm se manifestado. É necessário, portanto, que as sugestões sejam encaminhadas de forma organizada ao INCRA, para que sejam efetivadas as mudanças necessárias.

A certificação dos levantamentos pelo INCRA

O INCRA é, sem dúvida, o principal responsável pela efetiva aplicação da lei. O sucesso ou o fracasso da sua aplicação, portanto, depende em grande parte da eficiência e da estrutura do órgão na execução das atividades que estão sob sua responsabilidade.

A Portaria 1102, de novembro de 2003, estabelece as diretrizes para a formação do Comitê Nacional de Certificação e Credenciamento e dos Comitês Regionais de Certificação. Passados dois anos, das 30 superintendências regionais, 22 possuem comitês de certificação e apenas 15 funcionam efetivamente. Coincidência ou não, os 1.768 imóveis certificados (em 13/10/05, segundo www.incra.gov.br) encontram-se situados em 15 estados. Os números permitem questionar o que estaria acontecendo nos estados que não possuem comitês de certificação. Existem profissionais credenciados em todos os estados. Por que em alguns desses estados não existe um único imóvel certificado?

É importante destacar o esforço da equipe do INCRA no desenvolvimento do programa utilizado no processo de certificação para a verificação de possíveis superposições, bem como o valor da disponibilidade desta ferramenta para a uniformidade dos procedimentos. A utilização do programa, no entanto, é uma etapa do processo de retificação. Não se tem notícias, por exemplo, de que o INCRA tenha realizado algum treinamento dos funcionários dos comitês de certificação, de forma que todos tenham uma mesma interpretação da normas. É importante, ainda, que se crie uma espécie de banco de “jurisprudência” referente aos casos que não ainda não estão contemplados na norma, para que as decisões sejam homogêneas.

Os dados apresentados indicam problemas evidentes na certificação, o que nos remete, mais uma vez, à formação do profissional de cadastro. Os membros dos comitês de certificação devem ter, no mínimo, uma qualificação igual à dos profissionais que realizam o levantamento. O mais grave é que o INCRA parece não ter percebido ainda o tamanho do problema: que profissional tem capacitação para analisar todos os relatórios de levantamento e ajustamento de coordenadas exigidos pela norma técnica? Os únicos que estudam ajustamento de observações, no Brasil, são engenheiros cartógrafos e agrimensores. No entanto, foi realizado um concurso em 2004 onde não foram previstas vagas para estes profissionais. Acaba de ser publicado o edital de mais um concurso, com a previsão de 35 vagas para profissionais da área específica de agrimensura/cartografia. Serão suficientes estas vagas, perante a tarefa que o instituto tem pela frente?

Para concluir

Depois dos problemas expostos, parece difícil acreditar no sucesso da efetiva aplicação da lei. Mas continuo achando que temos o papel de contribuir para a remoção destes entraves e de outros que possam existir e que não foram citados. Assim, aqueles que têm se manifestado a favor da efetiva aplicação da lei têm também a obrigação de apoiar aqueles que são responsáveis diretos pela sua aplicação. Ações concretas se fazem necessárias, como a colaboração para o aperfeiçoamento da norma técnica e a atuação em parceria de forma positiva, como vêm fazendo o IBGE e os registradores, através do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB. Também não devemos nos furtar de apontar as deficiências, as dificuldades ao fluxo natural do processo. O fracasso do INCRA no cumprimento das obrigações que lhe cabem, com respeito à aplicação da lei, significa o fracasso da estruturação do cadastro, como bem defendemos no início deste manifesto.

Andrea F. T. Carneiro
Professora e pesquisadora do Departamento de Engenharia Cartográfica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
aftc@ufpe.br