superconsumidorLembro-me bem quando, ainda estudante de economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), meu professor de microeconomia me apresentou quais são as premissas comportamentais que, segundo a teoria do consumidor, são necessárias para garantir a eficiência e o equilíbrio das economias de mercado. Diante de um público crescentemente incrédulo, nosso mestre se esforçava em nos explicar que, naquele mundo simplificado e fantástico da teoria econômica, o consumidor é dotado de superpoderes que o capacitam a obter informações precisas e completas sobre todos os preços e produtos do mercado. Em sua decisão de compra, portanto, este consumidor consideraria todas as oportunidades disponíveis antes de tomar qualquer decisão. Tal comportamento levaria os vendedores a competirem selvagemente por sua preferência, ainda que para isso tivessem de eventualmente sacrificar, dentro do limite de suas sobrevivências, suas margens de lucro. É dispensável dizer que a história do superconsumidor não acometeu a maioria de nós como uma boa visão do mundo real e, como éramos jovens demais para apreciar a necessidade de simplificar o mundo que se procura explicar, contribuiu apenas para nos tornar mais céticos com relação à utilidade da teoria microeconômica para explicar a realidade em que vivíamos .

Alguns anos mais tarde, já cursando a pós-graduação em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), voltei a refletir sobre o tema da informação do consumidor, porém em uma situação bastante diferente. Era então aluno de George Akerlof, autor do famoso artigo “The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism”, e um dos principais precursores do desenvolvimento da teoria da assimetria de informação. Akerlof e dois outros colegas haviam, poucos anos antes, ganho o Prêmio Nobel por desvendar algumas das implicações teóricas do fato de que o consumidor não é mesmo perfeitamente informado sobre preços ou qualidade dos produtos que compra.

Já havia sido demonstrado que a desinformação do consumidor gera ineficiências, pois se trata essencialmente de um custo transacional, ou seja, algo que gera custo a qualquer transação de compra e venda. Mais tarde, vim perceber que este custo transacional se transforma muitas vezes em oportunidade, pois diversos varejistas se beneficiam diariamente do fato de que consumidores, por não terem acesso perfeito a informações, frequentemente aceitam pagar preços mais altos por um mesmo produto sem necessariamente receber na compra serviços agregados que pudessem justificar as diferenças de preços. É possível, portanto, enxergar o custo transacional mencionado como uma espécie de “bônus da desinformação do consumidor” pois, na prática, se convertia em valores que diversos varejistas haviam se acostumado a capturar.


NRF 2010

Estas lembranças me ocorreram diversas vezes durante os dias em que participei do encontro da National Retail Federation (NRF), o “BIG Show” que aconteceu de 7 a 16 de janeiro em Nova York e reuniu os principais varejistas do mundo, dando espaço à discussão das principais tendências do setor. Um dos temas mais marcantes e recorrentemente discutidos no evento diz respeito ao impacto que a disseminação de novas tecnologias de acesso à informação de preços e qualidade de produtos vem tendo no comportamento do consumidor. Com cada vez mais e melhores opções para obter informações pela internet, fora e mesmo dentro do PDV (através de aparelhos móveis conectados à internet), o consumidor da era digital passou a ter, recentemente, um nível de informações sobre preços e qualidade jamais accessível antes.

Este novo consumidor bem informado, vale notar, se assemelha bem mais ao “superconsumidor” da teoria microeconômica do que com o consumidor inseguro e menos informado do mundo analisado por Akerlof e seus colegas. Uma das consequências naturais do surgimento deste superconsumidor será a impossibilidade para varejistas de continuar capturando o “bônus da desinformação” nos níveis anteriores, o que deverá os forçar a competir mais intensamente pela preferência do consumidor. Uma estratégia que muitos devem adotar é a de acrescentar novos serviços aos seus produtos, sejam estes tangíveis ou não, que agreguem valor à experiência do consumidor e justifiquem a manutenção de uma margem mais vantajosa. Em seu livro “Neoconsumidor Digital, Multicanal & Global”, Marcos Gouvêa de Souza, um dos mais respeitados especialistas em assuntos do varejo no Brasil, desenvolve com a colaboração de colegas da GS&MD uma excelente discussão sobre o surgimento deste consumidor poderoso e as possíveis consequências para o varejo brasileiro e mundial. Durante o encontro da NRF, o grupo de Marcos apresentou resultados surpreendentes de uma pesquisa recente sobre o comportamento do consumidor digital no mundo, sugerindo que o consumidor brasileiro, com hábito de utilizar a internet, está entre os mais propensos a utilizar meios digitais para pesquisar preço e qualidade antes de comprar. Tudo indica, portanto, que o surgimento deste neoconsumidor® irá transformar significantemente as estratégias do varejo, provavelmente em dimensão e aspectos ainda não previsíveis.


E o geomarketing?

Mas o leitor desta coluna deve estar se perguntando o que tem o geomarketing a ver com tudo isso? Pois bem, leitor, o geomarketing tem e terá cada vez mais um papel fundamental nesta transformação. O varejo, como sugerido, deverá perder nos próximos anos grande parte daquilo que me referi por “bônus da desinformação” do consumidor e, para tentar compensar esta perda, investirá em estratégias que aumentem o valor agregado de seus serviços. A localização de cada ponto de vendas deverá ser pensada como fundamental para garantir a maior conveniência possível para o consumidor que prefere comprar perto de casa, do escritório, da escola das crianças, do caminho para a casa da praia ou onde lhe for mais atraente. O geomarketing deverá ser capaz de trazer a inteligência necessária para o desenvolvimento de estratégias de localização cada vez mais sagazes e precisas. Além disso, varejistas precisarão cada vez mais conhecer e estudar as características, potencial e hábitos de seus consumidores para desenhar políticas de relacionamento e atendimento mais eficazes. Hoje, são razoavelmente comuns lojas em que se pergunta o CEP de residência ao cliente no momento do pagamento. Outros utilizam programas mais elaborados de relacionamento que implicam em credenciamento do consumidor. Estes dados poderão enriquecer e serem enriquecidos através de ferramentas de geomarketing como, por exemplo, é o caso dos sistemas de classificação geodemográfica que possibilitam estimar o perfil de um cliente através de seu endereço ou CEP residencial.

Por fim, o geomarketing também poderá vir a usufruir ativamente da mesma tecnologia móvel que vem possibilitando a revolução comportamental do neoconsumidor®. Hoje, o chamado “mobile marketing”, que consiste em capacitar lojistas a perceber a proximidade física de seus consumidores através do rastreamento por GPS ou tecnologia Bluetooth para que os mesmos possam enviar, tipicamente por SMS, ofertas pertinentes a estes consumidores, ainda é pouco praticado no Brasil. Mas este tipo de tecnologia poderá dar vida a diversas novas táticas para agregar valor à experiência de consumo. Paradoxalmente, o mobile marketing representa uma forma para que varejistas possam se beneficiar e mesmo se defender, através da mesma tecnologia que vem aumentando o poder de seus consumidores, ou seja, a tecnologia que nos permite estar conectados uns aos outros em tempo real, 24 horas por dia e em qualquer lugar.

Ainda é cedo para saber como e com que velocidade o mercado brasileiro irá se transformar, principalmente se considerarmos que no Brasil, até o momento, apenas um modesto, ainda que crescente, percentual de consumidores tem acesso à tecnologia de internet móvel. Porém, se a facilidade com que se ouvia nosso idioma durante o encontro da NRF em Nova York puder servir como termômetro para a importância de nossos varejistas no cenário internacional, garanto-lhe, caro leitor, que o Brasil tem grandes chances de se consolidar, nos próximos anos, como um dos principais influenciadores da cultura de consumo e do varejo mundial. Os próximos capítulos prometem bastante emoção!

Reginaldo G. Gregori
Reinaldo G. Gregori, PHD.
UC Berkeley (demografia e economia), Georgetown (demografia aplicada) e UFMG (economia). Diretor da Cognatis (www.cognatis.com), empresa especializada em geomarketing e outros métodos analíticos para inteligência mercadológica
reinaldo@cognatis.com.br