Desde quando o homem aprendeu a cultivar a terra e lhe devolver os nutrientes exportados com as colheitas, cerca de dez mil anos atrás, o conhecimento em solo vem se desenvolvendo e ganhando importância frente à humanidade. Várias civilizações tiveram sua prosperidade e declínio relacionados a eventos ligados ao uso do solo. Essas experiências devem ser convertidas em conhecimento aplicado (tecnologias) para que as questões modernas que envolvem o solo, como a produção de bioenergia e os problemas ambientais, sejam tratadas de forma adequada. Neste aspecto, a pedologia (estudo do solo) tem um papel fundamental no entendimento dos fatores de formação do solo e também da sua distribuição espacial.
Hoje, as demandas da sociedade pela informação sobre o recurso solo têm se modificado, fazendo emergir novas áreas de interesse e aplicação desse conhecimento, como preservação do ambiente, reconhecimento de processos de degradação, arenização e zoneamentos urbanos. Assim, as propriedades do solo que necessitam ser preditas não são mais apenas aquelas selecionadas pelo pedólogo, mas sim aquelas também demandadas por outros cientistas que necessitam suprir seus modelos (climatologistas, sociólogos, geógrafos, etc.). Com o aumento das preocupações ambientais, o mapeamento de solos tem tido um foco em modelagem quantitativa com o acompanhamento de questões envolvendo acurácia e incertezas.
Perfis de solo como fonte de informação sobre o solo e o ambiente de formação
O mapa de solos
Um mapa de solos é um documento bidimensional, apresentado em papel ou outras formas e representa uma simplificação da organização espacial do solo nos ambientes naturais. O mapa é uma transposição das entidades naturais relacionadas à geografia dos solos, sendo este um modelo reduzido, com abstrações de acordo com os objetivos. O produtor do mapa (pedólogo), através dos seus conhecimentos e experiências, utiliza-se das convenções para a representação cartográfica do solo, sendo então o mapa científico, cultural, estético e até mesmo emocional.
Apesar da aplicabilidade da informação solo, a comunicação dessa informação ainda é um desafio. Os mapas de solos convencionais são carregados de jargões técnicos, muitas vezes desatualizados e não trazendo consigo a exatidão da informação que neles está representada. Além disso, a resolução espacial dos mapas de solos, de várias partes do planeta, são muito pequenas para que possam ser utilizadas em casos reais de planejamento ambiental. Ao passo que outras ciências se tornaram mais quantitativas e aproveitaram o “bonde” da Tecnologia da Informação, os levantamentos de solos continuam a ser realizados por meio de critérios qualitativos, gerando mapas na forma de polígonos, com sérias limitações de resolução e sem a indicação da acurácia da informação.
Contudo, o que é de consenso entre os cientistas do solo é a importância do pedólogo e dos levantamentos de campo. A descrição dos perfis de solo é a maior fonte de informação sobre o solo e seu ambiente de formação. O pedólogo é o ator principal dos levantamentos de solos, sendo o profissional que detém o conhecimento do ambiente solo e aquele que irá tomar a decisão sobre as técnicas a serem empregadas para a execução de novos levantamentos.
Mapeamento digital
O Mapeamento Digital do Solo (MDS) pode ser definido como a criação e a disseminação de sistemas de informação espacial em solos por modelos numéricos, inferindo a variação espacial e temporal de propriedades e tipos de solos através da observação deste e das variáveis ambientais relacionadas. Iniciando-se por volta de 1970, a produção cientifica da área acelerou significativamente nas décadas seguintes, principalmente devido aos avanços na área de Tecnologia da Informação, sensoriamento remoto, estatística, modelagem, Sistema de Informações Geográficas (SIG), posicionamento por satélite, espectroradiometria, georadar e, mais atualmente, acesso online à informação espacial.
Um mapa digital de solos é essencialmente um banco de dados espacial de propriedades do solo, baseado em amostragem e modelagem estatístico/matemática da paisagem. A amostragem de campo é utilizada para determinar a distribuição espacial das propriedades do solo, as quais são quantificadas em laboratório. Então, esses dados são utilizados para predizer as propriedades do solo em áreas não amostradas. O MDS difere das metodologias convencionais de mapeamento do solo, baseado em polígonos cloropléticos, pois está baseado em pixels, podendo ser mais facilmente visualizado em médias e altas resoluções, atualmente sendo demandadas e utilizadas por ciências ambientais e sociais.
O MDS constitui-se, basicamente, em três fases. Na primeira, são produzidos os mapas base e reunidas as fontes de informação (covariáveis) que possam constar nos modelos preditores da distribuição do solo na paisagem. As covariáveis são os condicionantes ou, usando o jargão pedológico, fatores de formação do solo, os quais incluem o clima (temperatura, pluviosidade, radiação), uso da terra (NDVI, áreas agrícolas), relevo (altimetria, declividade, direção das vertentes), geologia (tipo de rocha matriz), organismos (vegetação, resíduos). Neste aspecto, as geotecnologias prestam uma grande contribuição, pois são inúmeras as tecnologias disponíveis para coletar essas informações, o que as torna prontamente disponíveis para que sejam empregadas nos modelos preditivos. Nessa fase do MDS podem ser utilizados os levantamentos pedológicos (mapas de solos) existentes, pois nesses mapas está contido o conhecimento do pedólogo sobre as relações entre o solo e a paisagem na sua forma cartográfica.
Na segunda fase do MDS é desenvolvido o modelo preditivo propriamente dito. Nesta fase são estimadas as propriedades do solo e expressas, dentre outras formas, como função de uma probabilidade de ocorrência. Estas são derivadas usando relações quantitativas entre as amostras de solo e as covariáveis que condicionam sua distribuição espacial. O resultado desta fase serão mapas de propriedades de solo como conteúdo de argila, matéria orgânica, pH, condutividade elétrica, densidade do solo, entre outras.
Na terceira e última fase do MDS, as propriedades do solo, preditas na fase anterior, são utilizadas para modelar o comportamento do solo frente aos usos. Assim, é possível prever cenários e planejar ações que, de outra maneira, seriam difíceis ou até impossíveis de serem visualizadas antes de sua ocorrência. Como exemplos temos a capacidade do solo em reter e disponibilizar água, a disponibilidade de nutrientes nas plantas, o sequestro de carbono, etc.. Essas funções do solo são vitais para os sistemas de produção e, até mesmo, para a garantia de vida no planeta, desenvolvendo funções primordiais em vários ciclos biogeoquímicos da Terra.
Fluxograma de um mapeamento digital do solo
Técnicas quantitativas devem ser validadas no campo, onde cientistas experientes parecem ser cada vez mais raros, sendo um grande desafio treinar pedólogos que unam bons trabalhos de campo às modernas técnicas de análise espacial. Possivelmente, a tarefa de formar jovens pedólogos com conhecimento em informática será bem menos complexa. A presença de jovens pesquisadores com bom conhecimento em Tecnologia da Informação e com grande vontade de enfrentar desafios é uma oportunidade para que novas técnicas sejam empregadas.
Perspectivas
A informação espacial solo é uma grande demanda de diversos setores no país e no mundo. O solo como destino para o carbono atmosférico já é explorado economicamente, buscando-se quantificar o real potencial de cada tipo de solo em estocar carbono. A substituição das fontes de energia não-renováveis por bioenergia motiva a identificação das melhores áreas para a produção de culturas que atendam este fim, e de como a produção de alimentos e de energia irão compartilhar áreas agrícolas sem fomentar a concorrência ou significar mais pressão sobre os biomas brasileiros. Além disso, a informação solo também tem grande demanda urbana, onde a deficiência em distribuir espacialmente os solos adequados à construção civil, aterros sanitários, distritos industriais, entre outros usos, já trouxe muita degradação, prejuízos ambientais e sociais, pois não consideraram as reais aptidões do recurso natural solo.
Um grande passo para a disponibilização de informação mais atualizada em escala mundial está sendo dado por um grupo de trabalho ligado à União Internacional de Ciência do Solo que, desde fevereiro deste ano, trabalha no GlobalSoilMap.net. Tal grupo usará o estado da arte em MDS e tecnologias disponíveis para a produção de um mapa de solos e predição de propriedades do solo em resoluções compatíveis com as demandas globais. Nesse sentido, os dados SRTM serão fundamentais para a geração de covariáveis aplicáveis à predição da informação solo para toda a superfície do planeta.
O desafio está na qualificação dos pedólogos, principalmente dos jovens, que precisam participar de levantamentos de solo para adquirir conhecimento das relações solo paisagem (tacit knowledge), assim como na incorporação de todos os ciclos do MDS, a saber, coleta (geotecnologias), modelagem (estatística/matemática) e geração de resultados (aplicação). Além disso, os pedólogos experientes precisam assimilar essas novas metodologias, assim como fizeram no passado com as fotografias aéreas e o radar. Adicionalmente, os gestores públicos devem ser conscientizados sobre os benefícios que o uso do MDS incorporado a um SIG pode propiciar. O SIG possibilita demonstrar os resultados da simulação de cenários de ações antrópicas sobre o ambiente, sendo uma ferramenta importante para a sensibilização da população e dos tomadores de decisão quanto ao efeito de suas ações, da alocação de recursos e implementação de novas regulamentações. A informação do recurso natural solo deve estar prontamente disponível para ser incorporada em ambientes SIG, com sua confiabilidade associada. O mapeamento digital do solo tem potencial para gerar, criar e disponibilizar essa informação.
Alexandre Ten Caten
Professor do Instituto Federal Farroupilha /Júlio de Castilhos.
Técnico em Geomática, agrônomo e doutorando em Ciência do Solo / UFSM
tencaten@jc.iffarroupilha.edu.br
João Henrique Quoos
Técnico em Geomática
Graduando em Geografia / UFSM
jhquoos@gmail.com