Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão com dimensão geográfica
Nas últimas décadas, o setor público no Brasil passou por um processo de amadurecimento da democracia com a ampliação e diversificação dos atores no processo de tomada de decisão. Sob este contexto, impõe-se a adoção de processos ágeis de tomada de decisão e maior eficiência e eficácia na entrega de produtos e serviços para a população. A visão moderna de governança pública adota métodos e princípios do planejamento estratégico e integra o binômio desenvolvimento socioeconômico/planejamento-gestão. Com isso, a adoção de geotecnologias passa a ter papel preponderante no escopo da estratégia de responder com maior rapidez e melhor qualidade as demandas, cada vez mais crescentes e diversas, das políticas públicas.
Se, por um lado, o uso de geotecnologias torna-se primordial no cotidiano da administração pública moderna, por outro, princípios de soft-
ware livre passam a estabelecer atitudes éticas perante o uso dos recursos públicos. Dessa forma, diversos movimentos, nas mais diversas frentes, estabelecem redes colaborativas de desenvolvimento de produtos e serviços “livres” como alternativas ao mercado. São exemplos os movimentos de software livre, de “copyleft”, creative commons e, mais recentemente, a rede colaborativa de tecnologias geoespaciais, conhecida como Open Geospatial Consortium (OGC).
O Brasil, alinhado com as tendências internacionais, adotou marcos legais que pautam o uso e a produção de produtos e serviços relacionados a softwares livres. Destaca-se a Portaria SLTI/MP N°05/2005 (e-pinG), a criação do portal de software público em 2007 e a Instrução Normativa n°04/2012 (Inda). No campo das geotecnologias há o Decreto Presidencial n°6.666/2008, que institui a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (Inde). Contudo, não basta ao poder público demonstrar capacidade de planejamento e regulamentação. Trata-se de uma fronteira que articula os processos de planejamento com aqueles referentes à gestão sob preceitos e olhares geográficos. Consolida-se a forte vinculação, para a gestão pública moderna, do uso de dados referenciados sobre o espaço: Onde? O que? Quais as características de sua distribuição? Estas são perguntas básicas para o processo de tomada de decisão, e todas elas passam pela necessidade de dados geográficos estruturados e confiáveis.
Sob esta realidade, o Instituto do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tem realizado diversos esforços na tentativa de introduzir, em seus processos, a dimensão geográfica. Isto significa dizer que o “negócio” da instituição passa a ter – nas atividades de identificação, reconhecimento, conservação, salvaguarda e fiscalização – a dimensão geográfica como uma de suas unidades de entrada e saída de produtos e serviços. Para isto, em especial nas duas últimas décadas, o Instituto tem procurado trazer as geo-
tecnologias para o seu cotidiano. Num primeiro momento através de iniciativas de constituição de bancos de dados de bens culturais (década de 80, projeto não realizado), da construção de banco de dados cadastrais intraurbanos (década de 90, chamado de INBI-SU, realizado parcialmente) e do desenvolvimento de metodologia, padrões de produção e software que integram todas as bases de forma georreferenciada, intitulado como Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG).
Cadastro com Inteligência Geográfica
O SICG é o primeiro sistema de cadastro integrado com inteligência geográfica do Iphan. Pode-se dizer que o sistema informatizado cumpre o seu papel de avançar na fronteira do conhecimento em termos de desenvolvimento com soft-
ware livre e propiciar dados abertos para todos os demais sistemas de informação.
O projeto SICG iniciou-se em 2006 com a análise crítica dos procedimentos de identificação, reconhecimento e gestão dos bens culturais protegidos pelo Iphan. Os resultados apontaram para uma realidade institucional marcada pela ausência de automação dos processos de cadastramento, normatização, tombamento e fiscalização do patrimônio cultural. Isto acarretava elevada demora na produção de conhecimento e no uso para a gestão dos bens culturais, seja por meio de indicadores ou outros índices passíveis de monitoramento. Soma-se a este cenário a completa ausência de inteligência geográfica nos requisitos negociais do Iphan. Sob este contexto, o projeto SICG teve por objetivo geral abordar o patrimônio cultural de forma integrada e sistêmica, e ofertar ferramentas de planejamento estratégico para a Instituição. O alcance deste objetivo considerou inovação dos meios para o desenvolvimento de software e a adoção da inteligência geográfica como parte do negócio do Iphan. Estrutura-se em três módulos complementares: 1) conhecimento – vocacionado para estudos amplos, com dados históricos, iconográficos, econômicos e geográficos; 2) cadastro básico e complementar dos bens – vocacionado para dados gerais e refinados dos objetos e; 3) gestão – voltado para automatização de processos, tais como rotinas de fiscalização, normatização e fluxo de investimentos. Estes últimos fazem parte de outros sistemas corporativos que serão compartilhados por meio de webservices, permitindo a integração de dados das mais diversas naturezas em uma mesma plataforma com inteligência geográfica.
Uma das principais características do SICG é o alcance no atendimento aos seus preceitos de sistema integrado voltado para a gestão do bem cultural. Destacamos o fato de termos a articulação, no território, do cadastro dos bens culturais materiais e imateriais, fato inédito na Instituição, o que permite um olhar diferenciado para a gestão dos bens culturais.
Em termos federativos, o sistema permite que governos locais e universidades possam fazer uso da base de dados e compartilhar seus bens. Desta forma, o SICG passa a se constituir como uma base de dados estruturados organizados por categorias e termos que permitem análises, por meio de relatórios geográficos e relacionais, das condicionantes, como por exemplo de projetos de desenvolvimento territorial, como é o caso da implantação de novas infraestruturas econômicas ou até mesmo na mudança na lei de uso e ocupação do solo de um distrito urbano.
Arquitetura do Sistema
Trata-se de um sistema baseado em tecnologias livres de acordo com os preceitos constitucionais previstos nos artigos 218 e 219 e com as leis federais de interoperabilidade e acessibilidade. O SICG foi desenvolvido utilizando geotecnologias de acordo com padrões de interoperabilidade sugeridos no Programa de Governo Eletrônico, mantido pelo Ministério do Planejamento. Além disso, as diretivas suportadas pelo OGC foram observadas. A implementação utilizou as tecnologias JAVA, Javascript, GeoJSON, Openlayers, GeoServer, PostgreSQL com extensão PostGIS e Hibernate Spatial. Adotamos o conceito de arquitetura em três camadas, sendo a camada de apresentação baseada no padrão MVC, camada de negócio e camada de persistência. Foram utilizados dados geográficos de outras entidades como base para o sistema, como é o caso da Base Cartográfica Contínua do Brasil ao Milionésimo (BCIM) produzida pelo IBGE, poligonais das terras indígenas produzidas pela Funai, rede hidrológica da Agência Nacional de Águas (ANA), unidades de conservação do SNUC/MMA, entre outras. Para o cadastro geográfico dos bens culturais, foram criadas camadas próprias do Iphan, como é o caso do cadastro de bens de natureza material e imaterial, além das ações, instituições do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) e uma tipologia de setores diferenciados de acordo com os marcos legais e função nos processos do Iphan para identificação, proteção e normatização.
Principais funcionalidades
O sistema teve vários desafios tecnológicos em sua construção, dentre eles destaca-se a funcionalidade denominada “visualizador geral do bem”, que é uma visualização geográfica e relacional de todos os bens, ações e instituições do PNPI e dos bens materiais (tombados, chancelados, valorados, cadastrados) em um mesmo mapa, utilizando o conceito de “clusterização”, formando agrupamentos ou “clusters” dos bens, de acordo com o nível de zoom utilizado pelo usuário. Essa funcionalidade foi um grande desafio, pois as estruturas das principais entidades de negócio, que em determinado zoom são vistas de forma agrupada, são diferentes quanto à natureza e tipo do bem cadastrado. Soma-se a isto outro fator bastante complexo no desenvolvimento dessa funcionalidade, que é a visão sincronizada dos bens no mapa e seus dados relacionais listados no canto direito da tela. Para dar conta deste desafio, utilizou-se de relacionamentos geográficos entre os quadrantes disponíveis para visualização na interface do mapa e a lista de bens ali visualizados a partir de um scroll infinito que dispara requisições assíncronas à medida que se faz necessário, limitando o número de registros obtidos para não sobrecarregar o sistema.
Outra funcionalidade importante do sistema é a criação do Contexto Geral e Contexto Imediato. Com esta funcionalidade é possível associar bens materiais a contextos históricos e geográficos do Brasil, entretanto somente podem-se vincular os bens que estão contidos geograficamente dentro do contexto geográfico definido, utilizando regras topológicas para auxiliar as regras negociais do sistema, ou seja, o Iphan agora tem uma maior validação e garantia que os bens vinculados ao contexto geográfico realmente estão inseridos no mesmo devido à sua inteligência geográfica.
Uma funcionalidade também importante e desafiadora do sistema é o visualizador dos setores de proteção e normatização (VGPN). Para entender a funcionalidade, é preciso conhecer os conceitos do SICG em relação aos seus processos: identificação e normatização. Para o processo de identificação/reconhecimento, um bem material é cadastrado de acordo com sua natureza e tipo (bem imóvel tipo conjunto urbano, por exemplo). Em virtude do seu objetivo de cadastrar bens culturais de governo nacional (federal) e subnacional (distrital, estadual, municipal), o sistema dispõe de um cadastro georreferenciado denominado “cadastro de proteção”, com o qual se pode cadastrar bens e suas respectivas poligonais de identificação e proteção, valendo também para os bens inscritos nas listas de patrimônio mundial e da humanidade em virtude dos protocolos internacionais assinados pelo governo brasileiro. Em virtude desta regra negocial, cada bem pode possuir mais de uma proteção, por exemplo, pode ter uma proteção federal que abrange uma área específica e uma proteção estadual que abrange outra área que não necessariamente é a mesma. Cada cadastro de proteção tem poligonais distintas, seja área protegida e entorno. No que se refere ao processo de normatização, o sistema permite a construção de um mosaico georreferenciado de unidades de gestão, voltadas para a preservação no interior das áreas de proteção.
O desafio principal do VGPN foi conseguir trazer ao usuário visão geral das proteções de qualquer bem que ele quiser de uma forma que a legibilidade do fator geográfico pudesse ser facilmente apreendida. A partir destas regras negociais, a funcionalidade do visualizador do setor permite ao usuário selecionar um ou vários bens em uma “treeview”, que mostra suas proteções e os setores respectivos de cada uma. A partir desta ferramenta, o usuário pode ir habilitando ou não os layers específicos de bem, proteção e setores, além de ofertar um roll de janelas com dados sobre as características do bem, os bens ali cadastrados, as ações governamentais em andamento e uma informação básica sobre as diretrizes urbanísticas, paisagísticas e edilícias para o setor visualizado.
Inovação: webservices geográficos
Uma inovação para o Iphan é a utilização de webservices geográficos. A arquitetura de dados do SICG foi pensada e baseada em serviços e orientada a objeto, o que possibilita integrações futuras com outros sistemas. O SICG, em sua primeira versão, tem interface de comunicação com o sistema de fiscalização e autorização dos bens culturais (fiscalis). A integração prevista compreende o cadastro e pesquisa de bens diretamente do fiscalis no SICG e a possibilidade de atualização e sincronização de dados dos bens, tais como estado de conservação e preservação a partir do preenchimento do laudo de vistoria e/ou avaliação do estado de conservação. Há a previsão de integração, para o ano de 2015, com o Sistema de Informações Gerenciais, conhecido como SIG-IPHAN, que trata dos dados orçamentários e do monitoramento de obras.
Destaca-se também a iniciativa de desenvolver um sistema georreferenciado totalmente alinhado com as diretrizes da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais, possibilitando que o Iphan e, no futuro, os governos subnacionais, possam fazer parte, como nó de informação da rede desenhada pela Inde.
Outra inovação, para o campo do patrimônio cultural, é a integração, em uma única base geográfica e interface, do cadastro de todos os bens culturais operacionalizados pela política de patrimônio cultural. Soma-se a esta integração a oferta de um serviço que contempla o cadastro unificado de todos os bens culturais protegidos, independentemente de sua natureza federativa. Com isso, pode-se dizer que se trata da ferramenta de cadastro do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural que, no escopo do Sistema Nacional de Cultura, possibilitará a sinergia de ações e investimentos no campo do patrimônio cultural.
Eficiência na gestão do patrimônio
O Iphan considera o SICG como fronteira entre a realidade marcada pelo processo de trabalho baseado, em sua maioria, em meios analógicos e sem inteligência geográfica, para processos e produtos baseados na produção e recuperação das informações com características geográficas e automatizadas. Para o Instituto, o SICG representa uma novidade em termos de conceito e ferramentas na gestão do patrimônio nacional e subnacional. Das análises de benchmarking realizadas pelos gestores do sistema não se conhece, no campo do patrimônio cultural nas Américas, nenhuma iniciativa com os conceitos e suporte tecnológico utilizados.
Um dos principais beneficiados com o SICG é a população brasileira, que tem hoje uma ferramenta amigável, de acesso 24×7 e com conteúdos antes indisponíveis ou de difícil acesso. O sistema ofertará, além do acesso aos bens em diversas escalas e níveis de informação diferenciados, o serviço de “pesquisa avançada de bens materiais e imateriais”, que consiste numa funcionalidade de consultas relacionais e/ou geográficas (feições linha, ponto, polígono aliado a buffer zone). Com isto, podem-se acessar os conteúdos presentes no sistema por meio de listagens, relatórios e mapas temáticos. De forma a facilitar as análises dos impactos dos empreendimentos de infraestrutura, no âmbito do patrimônio cultural, nos processos de licenciamento ambiental, foi acrescida a esta funcionalidade a ação de upload de feição geográfica no formato shapefile (shp), para fins de consulta geográfica ao banco de dados.
O caráter estratégico assumido pelo SICG, ao longo dos últimos anos, se reflete no alinhamento com as estratégias institucionais. No âmbito do Plano Nacional de Cultura (PNC), o SICG contribuirá para o atendimento das Metas 03, 04, 05 e 06. Em 2013, o SICG foi escolhido pelo Iphan como Iniciativa do Objetivo Estratégico n°6, de fortalecer a gestão da preservação do patrimônio cultural e que tem como meta consolidar, até o ano de 2015, o SICG como a ferramenta de cadastro e gestão de 60% das superintendências estaduais e escritórios técnicos do Iphan, e em 30% nos governos subnacionais participantes do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural.
Como valores agregados ao serviço público, podemos destacar o aumento na celeridade e qualidade do processo decisório da alta direção da Instituição, além de uma considerável redução do tempo e esforço para compilação, organização e disponibilização das informações aos técnicos do Iphan, aos parceiros institucionais e, em especial, à população brasileira. Em linhas gerais, a solução informatizada com inteligência geográfica cumpre o papel de agregar valor ao serviço prestado à população brasileira. O projeto destaca-se pelo pioneirismo e coragem, pois possibilita a execução de vários processos do Iphan (cadastramento, normatização, fiscalização e planejamento) de maneira integrada, garantindo agilidade na produção e uso da informação geográfica para o cumprimento da missão institucional com maior eficiência, eficácia e transparência.
Arquiteto e urbanista pela UnB. Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão em exercício no Iphan. Product Owner – Projeto SICG
george.daguia@Iphan.gov.br
Bacharel em Ciência da Computação pelo Centro Universitário de Brasília. Experiência de 12 anos em projetos de software utilizando geotecnologias Web, Desktop e Mobile. o Especialista de Geoprocessamento da EGL Engenharia para o Projeto SICG
vieira.eliezer@gmail.com
Humberto Mattos
Bacharel em Ciência da Computação. Analista em Tec. da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 2010. Responsável pelo desenvolvimento de Sistema de Informação no IPHAN
humberto.carvalho@Iphan.gov.br
Bacharel em Ciência da Computação pela UCB. Scrum Master no projeto SICG. Atua na gestão de projetos pela EGL Engenharia.
jamil.neto@egl.eng.br