por Márcia Mendes Ribeiro
Até l996 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, contava apenas com a declaração dos proprietários rurais para aferir o tamanho e o uso das terras no país. A base do cadastro de propriedades rurais era constituída pelo depoimentos dos fazendeiros que, por desconhecimento ou má fé, levavam ao registro de dados equivocados. Estes erros provocavam a cobrança de imposto (ITR) incompatível com a verdadeira área e impediam que terras devolutas fossem entregues ao programa de reforma agrária.
A confirmação destas declarações, mesmo em casos de visíveis erros, era dificultada por um sistema de medição lento e relativamente impreciso. Topógrafos, munidos de teodolitos e trenas, não tinham instrumentos ágeis para o trabalho e nem tecnologia capaz de flagrar algumas fraudes primárias. A simples passagem de um trator no campo ou algumas cabeças de gado soltas no pasto eram suficientes para enganar a fiscalização, aparentando produtividade.
Hoje o Incra começa a mudar todo o processo de cadastramento no país. Com a ajuda de 400 receptores GPS, tarefas de fiscalização e identificação de uso do solo ganham suporte de satélites e ficam mais confiáveis. Em lugar de morosos e pouco eficientes teodolitos e trenas, técnicos do Incra chegam nas divisas das fazendas e tomam pontos com os receptores. Confrontam essas informações com imagens Landsat, verificam se a terra é cultivada, tem pastagens ou não. É um tiro certeiro nas declarações falsas.
Impulso
A grande estréia do GPS para efeitos de fiscalização aconteceu em uma das regiões mais polêmicas do país. No segundo semestre do ano passado, em ação cercada de grande expectativa, técnicos do Incra foram ao Pontal do Paranapanema, oeste do estado de São Paulo, e descobriram que a área reservada para desapropriação e destinada à reforma agrária era duas vezes maior que a declarada em cadastros.
Este levantamento no Pontal animou autoridades que administram a questão agrária no país não apenas por ter acabado com discussões mas sobretudo por seu rendimento. Medições feitas com uso de equipamentos de GPS tiveram uma performance sem igual. As 191 propriedades vistoriadas por 120 técnicos em apenas 3 meses, com o uso de teodolitos e trenas seriam cobertas em 5 meses.
O trabalho efetuado no Pontal, de grande repercussão dentro e fora do Incra, não correu isoladamente e em diversos estados brasileiros eram iniciadas medições para serem incluídas no novo sistema. No Paraná, por exemplo, em julho passado 12 topógrafos começaram a vistoriar 700 propriedades (de aproximadamente 300 hectares cada) no noroeste da estado. Com 2 receptares geodésicos, 12 topográficos, 14 de navegação e 6 estações totais, foram visitadas 320 fazendas, ou 200 mil hectares, em 4 meses. "Se o trabalho em campo fosse feito com teodolitos e trenas, a equipe teria que ser 6 vezes maior", diz o chefe da seção da Cartografia do Incra (PR), Rossini Barbosa Lima.
O resultado do levantamento no noroeste paranaense, se não revelou discrepâncias como o do Pontal, deixou evidente um problema nacional: o desconhecimento da tecnologia mesmo por pessoas que deveriam estar acostumadas a elas. Alguns fazendeiros, assustados com os números da nova medição, contrataram agrônomos para levantamentos paralelos e buscaram recursos judiciais para anular o trabalho feito através de GPS. E pior, "muitos alegaram que esta técnica não é precisa, o que é facilmente refutável por nosso departamento jurídico", afirma Barbosa Lima.
Motivo para estes fazendeiros se sentirem ameaçados não faltam. Pela nova lei do ITR, propriedades com mais de 65% de terras devolutas sofrem maiores taxações e quem não tiver recolhido impostos nos últimos cinco anos fica sem acesso aos programas oficiais. Segundo o cartógrafo do Incra-PR "os proprietários não devem se assustar. No levantamento que fizemos no noroeste do estado, encontramos poucas diferenças com o cadastro declarado."
Apenas 20% do total levantado apresentou diferença quanto a área declarada e para Barbosa Lima isto não deve ser repetir em outras regiões do estado, onde a ocupação não aconteceu de forma tão organizada. Em compensação, o uso da terra teve que ser determinado com a ajuda de métodos tradicionais já que no noroeste do Paraná a pecuária é mais forte que a agricultura. "É bem mais difícil as imagens de satélite registrarem variações em pastagens", explica Barbosa Lima. Por isso quando os técnicos visitam as propriedades recolhem notas de compra e venda, de armazenagem, documentos que ainda não foram repassados ao Ibama e à Receita Federal e que poderiam ser usados para comprovar uso da terra.
Geo no Incra
Uma das atribuições do Incra é proceder, a cada 5 anos, um recadastramento nacional de propriedades rurais. Este trabalho, agora facilitado com o georreferenciamento, visa atualizar informações do cadastro de propriedades rurais para demarcação de áreas, loteamentos para distribuição de terras e também como subsídio a projetos de fracionamento de uso do solo. Os dados levantados ficam disponíveis inclusive para a Receita Federal.
A modernização do processo ainda tem um longo caminho a percorrer. Os técnicos jamais usam o termo geoprocessamento, mas sim georreferenciamento. Isto se deve a uma questão simples. Hoje o Incra tem condições de fazer os levantamentos dos dados com a ajuda dos equipamentos de GPS mas não pode ainda, ao menos não em todo o país, processar estes dados. "O Incra hoje está definindo que tipo de computadores vai usar e como vai ser a rede de ligações entre eles para formar o sistema de informações geográficas. Os primeiros testes devem começar em julho", diz Rossini Barbosa Lima.
As informações coletadas atualmente são arquivadas de forma bruta em cadastros de mapas e imagens em ambientes separadas, não são processadas. Para fazer a ligação de cadastros alfa e gráficos, a sede em Brasília já conta com estações gráficas em PC e soluções da Intergraph, plotters e scanners. As superintendências regionais, no entanto, só contam com as estações em PC.
O projeto do Governo Federal visa unificar registros de vários órgãos em um cadastro único nacional. Em abril um grande passo foi dado para que Incra e Ibama abram seus registros para a Receita. Este cadastro gigante deve distribuir informações comuns para o Incra, Ibama, Receita Federal, Funai, CPRM (Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais) e outros órgãos públicos.
Navegação: baixa, média e alta precisão
Os levantamentos do Incra hoje contam com aproximadamente 400 receptores GPS em todo país. Destes, 200 são de navegação, com precisão média. Há regras para que as fiscalizações sejam feitas e uma delas obriga os fiscais a notificarem o proprietário antes da visita. Os mapas de papel ainda não foram de todo abandonados pois como o georreferenciamento apenas engatinha, chegar às propriedades só com ajuda da cartografia tradicional.
Mas a partir daí o GPS é soberano. É com ele que os técnicos iniciam e concluem a medição. No centro da propriedade, das áreas de cultura, um ponto é marcado para ser sobreposto à imagem de satélite. Este arquivo inicial, com erro devido à precisão do equipamento de navegação, define padrões de campo e coordenadas geográficas aproximadas.
A próxima etapa é a definição da forma e tamanho da propriedade, o que é feito com o uso de receptores topográficos. Os equipamentos geodésicos, finalmente, delimitam os pontos de referência para a rede de pontos de amarração dos dados. Após o levantamento dos dados, o proprietário continua recebendo a classificação fundiária da terra, com um mapa topográfico e mapa de uso, em papel.
Além do projeto do Cadastro Único, o Incra tem seus pró-prios objetivos. Ainda neste ano deve ser autorizada a estruturação de bases fixas no país inteiro com a Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo. "Com a RBMC, sobre-tudo o centro-oeste e o norte, não será mais preciso ir às bases descarregar dados", diz o cartógrafo Edaldo Gomes, da Divisão de Medição e Demarcação do Incra (Brasília). Segundo o cartógrafo, os levantamentos feitos para o recadastramento de propriedades de 300 a 800 hectares (15 módulos rurais) no Brasil inteiro, estão trazendo mais qualidade ao cadastro rural e precisam ser aprimorados.
Aprimorar estes serviços passa, no entanto, pela solução de um impasse. Hoje existem recursos para investimentos em tecnologia mas faltam técnicos. "O Incra hoje não está repondo as vagas criadas por aposentadorias, por exemplo", diz Gomes. Considerando-se que foram necessários 840 técnicos para a vistoria de 2300 fazendas em seis meses, quantos seriam necessários para cobrir a programação de recadastrar as 90 mil maiores fazendas até 2002?
Para viabilizar isto, segundo Rossini Barbosa, "seria preciso incorporar muito mais tecnologia ou pessoal". Em todo o país, são 1.000 técnicos em campo e embora o rendimento com as geotecnologias tenha aumentado, poderia ser bem maior. Outro problema ainda é a heterogeneidade de conhecimentos. "Não conseguimos padronizar grau de domínio da tecnologia em todo país, apesar dos treinamentos", diz Gomes.
Para estes problemas existem 3 soluções para o Incra: comprar mais equipamentos, contratar mais técnicos ou terceirizar a fiscalização. A segunda e a terceira opções por ora estão descartadas porque o governo está fechado a concursos e em tese não pode delegar tarefas de fiscalização a terceiros.