O professor Tommaselli, da Universidade Estadual Paulista, traça um panorama dos processos atuais de fotogrametria digital.
Por Antonio Maria Garcia Tommaselli

Poucas pessoas poderiam imaginar, há 15 anos, as transformações pelas quais passariam as técnicas de mapeamento e, particularmente, a fotogrametria, afetadas pelos desenvolvimentos da informática. No Brasil, estas transformações nos processos fotogramétricos apenas recentemente vêm sendo notadas. A maioria das empresas produtoras da área já contam com recursos de Fotogrametria Digital e algumas estão executando todas as fases com recursos digitais.

Mas, afinal, o que significa esta mudança para o digital?
Os fotogrametristas procuram transformar fotos em mapas ou, sob um ponto de vista mais moderno, transformar imagens raster em vetores e atributos. Esta é a primeira mudança: os produtores não serão apenas prestadores de serviços, mas provedores de informação estruturada. Embora aos mais céticos pareça apenas uma mudança conceitual cosmética é importante enfatizar que isto implicará para as empresas em um compromisso de manter a informação atualizada. Trata-se não apenas de prover dados, mas de buscar tecnologias para mantê-los atualizados, dentro da realidade do usuário. Afinal, o grande marketing dos Sistemas de Informações Geográficas não é sua modernidade? Mas de que adianta sistemas modernos com dados de uma década atrás?

Câmera de aerolevantamento tradicional.

Estação fotogramétrica, com óculos para visão estereoscópica e mouse.

Parece incrível, mas grande parte de nossa Cartografia, especialmente a sistemática, está tão desatualizada que resulta às vezes inútil. Este é um dos grandes desafios dos próximos anos: colocar esta nova tecnologia digital para produzir e atualizar mais freqüentemente mapas e bases gráficas digitais.

A outra grande mudança diz respeito aos meios de produção. O que antes era feito em instrumentos analógicos, verdadeiros computadores mecânicos, hoje é feito em computadores pessoais. Mas não tão pessoais assim. As modernas estações fotogramétricas digitais, apesar de mais baratas que seus primos analógicos, são máquinas que requerem um grande poder de processamento e periféricos específicos, para garantir uma produtividade adequada. Os sistemas fotogramétricos digitais manipulam pares e blocos de imagens digitalizadas de centenas de megabytes e estas imagens devem ser manipuladas e restituídas com auxílio da visão estereoscópica. Nestas estações, além dos componentes básicos de uma estação gráfica são usados: um dispositivo para visualização estereoscópica no monitor, dispensando oculares e sistemas óticos complexos; placa gráfica para acelerar a manipulação da imagem; mouse 3D ou outra estratégia para permitir a manipulação de dois cursores ou de um cursor 3D.

Scanner fotogramétrico para digitalização de filme fotográfico.

Formas de se obter imagens digitais
Para funcionar em um ambiente digital, os dados de entrada devem ser digitais. Existem duas maneiras de obter imagens digitais: a primeira é converter as fotografias ou filmes analógicos através de digitalização em scanner; a segunda é coletá-la diretamente na forma digital usando sensores digitais. Atualmente, e durante ainda alguns anos (no Brasil uma estimativa otimista seria de 5 anos), a Fotogrametria Digital para mapeamento será feita usando as tradicionais câmaras aerofotogramétricas com filme e posterior digitalização. Isto porque os sensores digitais com resolução equivalente à fotografia aérea convencional estão ainda em fase de desenvolvimento. Além disto, o processo convencional de coleta e digitalização em scanner é suficientemente padronizado e confiável para o uso em Fotogrametria Digital. Exatamente por isto é que as organizações de aerolevantamento somente adotarão a nova tecnologia de coleta digital quando ela apresentar vantagens comparativas relevantes em relação ao processo atual.

Ao fazer referência ao processo de digitalização, foi mencionado o equipamento que realiza esta tarefa e, na falta de um termo em português, adotou-se seu nome original em inglês, scanner.

Câmera digital Kodak não métrica

É importante ressaltar que não é qualquer scanner que permite a digitalização de fotografias métricas com as características necessárias às imagens destinadas ao mapeamento. O leitor poderá achar loucura gastar mais de US$ 150.000,00 em um scanner quando na loja de informática ao lado, um equipamento de resolução semelhante está à venda por R$ 1.000,00. Embora as partes e o conceito de ambos sejam semelhantes, um scanner fotogramétrico é construído para garantir uma exatidão geométrica (de posicionamento) do pixel da ordem de 2 m. Isto não deve ser confundido com a resolução, que varia desde 3.300 dpi (tamanho do pixel de 7,5 m) até 800 dpi (tamanho do pixel de cerca de 30m), nos scanners fotogramétricos, dependendo da necessidade do projeto. Além das diferenças no que se refere à qualidade geométrica há, ainda, a questão da correta reprodução radiométrica, importante para o processo de correlação. Seria como comparar uma Ferrari a um Fusca: ambos são automóveis mas, convenhamos, as semelhanças param por aí.

O desenvolvimento do sensor digital, que pretende complementar e, no futuro, substituir o processo convencional apresenta uma série de problemas e o mais sério deles é o volume de dados a serem coletados e armazenados durante o vôo, além da resolução que é necessário atingir. Para obter o mesmo volume de informações e a mesma qualidade geométrica, os engenheiros e projetistas das empresas produtoras de câmaras estão buscando novas soluções ou adaptando outras já existentes. A Leica-Helava (LH Systems) está investindo no sensor trilinear, enquanto que a Zeiss-Intergraph (ZI) está apostando no sensor multiframe. Correndo por fora, outras empresas desenvolvem câmaras digitais de uso geral, sem os requisitos rígidos impostos pelo processo fotogramétrico, mas nas quais os fotogrametristas devem prestar atenção. Pode-se citar o sensor da Lockhead-Martin, com resolução de 9.200×9.200 pixels que seria equivalente a uma imagem 23x23cm com resolução de 25 m. A LH-Systems pretende disponibilizar um modelo em série de seu sensor a partir de julho deste ano e a resolução será de 24.000 pixels por linha de varredura.

Além destas novidades, apareceram opções de imagens orbitais de alta resolução que deverão mudar o panorama de mapeamento em escalas médias. O mais badalado destes sensores é o Ikonos, da Space Imaging, que oferece imagens pancromáticas com resolução de 1m no terreno e multiespectrais com resolução de 4m. Alguns usuários poderão pensar que esta alta resolução será a salvação da pátria e que o mapeamento em escalas grandes para fins cadastrais está definitivamente equacionado, com a disponibilidade de imagens de alta resolução, alta freqüência temporal e baixo custo. Em primeiro lugar, a resolução de 1m significa que podem ser identificados objetos isolados de aproximadamente 3m de diâmetro. Em segundo lugar, a exatidão posicional dos produtos precisos, após todo um tratamento fotogramétrico incluindo ortoretificação, será algo em torno de 3m – numa previsão otimista -, o que limita o uso destes dados digitais a escalas 1:10.000 e menores. Embora a Space Imaging forneça a opção de um produto Precision Plus, com erro médio quadrático de 0,9m (isto mesmo, menos de 1 pixel) e erro circular, com 90% de probabilidade, da ordem de 4,1m, é preciso estar um pouco cético com este produto, e ver para crer. Para obter a imagem ortoretificada deverá ser gerado um Modelo Digital do Terreno da área e devem ser coletados pontos de controle, o que, no Brasil, poderá ser feito pelo usuário ou empresas especializadas.

Para países como o Brasil, que não dispõem de Cartografia em escalas médias, esta opção pode significar a disponibilidade de dados de grandes áreas em tempo muito mais curto que o aerolevantamento, para aplicações como monitoramento ambiental, telecomunicações, planejamento urbano, etc… Mas não se iludam imaginando que está por vir a Cartografia em tempo real. A própria empresa anuncia um prazo padrão de três meses para a entrega do produto, quando a imagem não estiver em arquivo.

Variedade de produtos
Os sistemas fotogramétricos digitais aliados aos filmes coloridos de última geração permitiram dar competitividade a um produto cartográfico de mútliplas aplicações, que é a ortoimagem colorida. Os custos de produção deste tipo de documento foram bastante reduzidos e as informações nele contidas servem a uma ampla gama de usuários. Algumas empresas fornecem, a custo adicional, a restituição vetorial como níveis adicionais de informação o que é, realmente, a melhor solução: toda a informação já explicitada na forma de vetores e seus atributos interpretados e a riqueza semântica das imagens coloridas.

Com o advento dos satélites imageadores de alta resolução, a competição com o aerolevantamento para a produção de mapeamento em escalas médias e pequenas será acirrada. Contudo, a produção de cartas em escalas grandes será ainda dominada pelo aerolevantamento. Novas tecnologias estão sendo empregadas para levantamentos em escalas grandes, como o levantamento direto em campo com G.P.S. e a varredura a laser, mas ambos podem ser entendidos como complementares, pois não competem diretamente com o aerolevantamento convencional. Estas opções não trazem a riqueza de informações proporcionadas por um par estereoscópico. Quem já teve a oportunidade de analisar um par estereoscópico obtido com as câmaras aéreas de última geração não encontrará outra fonte de dados de mesma qualidade geométrica e semântica.

Por que, então, procuram-se tantas alternativas ao aerolevantamento? Basicamente devido aos custos e ao tempo de resposta desta técnica. Isto tem mudado drasticamente, já que o preço dos produtos aerofotogramétricos tem sido reduzido com as novas tecnologias digitais, bem como o ciclo de produção. Uma das conseqüências deste novo cenário de tecnologia digital é a mudança no perfil das empresas de aerolevantamento como as conhecemos. É possível que num futuro bem próximo tenhamos muitas pequenas empresas, uma vez que os custos de instalação estão muito menores do que há 10 anos, graças à redução nos custos dos equipamentos e à mudanças na legislação.
Outra grande mudança é que os produtos passarão a ter mais a cara do usuário, que é, afinal, quem paga a conta. Como o setor público tem investido pouco em mapeamento, vários setores privados se ressentem desta carência e têm que arcar com os custos da coleta da informação geográfica que lhes interessa. Um exemplo de usuário que tem requerido cartografia em escala grande atualizada (e raramente tem encontrado) é o de telecomunicações. Em todo o mundo, a telefonia móvel tem aquecido a demanda por serviços de "Geomática", embora estes usuários raramente estejam dispostos a pagar muito por estes serviços. Além disto, as empresas privadas, por razões óbvias, só coletarão as informações de seu interesse direto, nas áreas e com a qualidade que lhes convierem. Esta questão remete a um outro problema que é o da padronização. Se a cartografia passar a ser feita com a cara de cada usuário, não teríamos em breve uma torre de Babel? Mas este é um assunto bastante extenso e outros especialistas poderão melhor abordá-lo.

Finalmente, um outro ponto polêmico diz respeito aos recursos humanos necessários para operar esta transformação a que fiz referência no artigo. Não podemos nos esquecer que atrás de uma máquina de fazer mapas (me desculpem a simplificação) deve haver um cartógrafo. Ainda não inventaram (embora muita gente o tenha prometido para o ano 2.000) um software chamado "mapeador" com o qual bastasse digitar:imagens+dados_de_controle > mapeador > mapa.

Fotografia aérea métrica feita por câmera de aerolevantamento tradicional.

Fotografia aérea digital feita pela câmera Kodak.

Imagem de Nova York coletada pelo satélite de alta resolução IKONOS, dia 11/12/99.

A razão para esta dependência do operador é que o conhecimento necessário para interpretar imagens, e particularmente pares estereoscópicos, é muito complexo para ser reduzido a um sistema de inteligência artificial. Vamos depender, sim, por muito tempo, de operadores para identificar e traçar feições. Mas, além disso, desse operador passou a ser exigido um nível técnico muito maior do que era exigido dos antigos operadores de restituição que, via de regra, eram formados dentro da própria empresa. Exige-se hoje, um forte conhecimento de informática e domínio da língua inglesa, já que as versões dos programas se sucedem e é impossível esperar por manuais em Português ou por um curso a cada nova mudança. Mais do que isso, os "operadores" devem ter um bom conhecimento teórico dos processos fotogramétricos para saber interpretar resultados e detectar inconsistências.

Obviamente, este profissional deverá ter nível superior e esta tendência já foi detectada nos países mais adiantados, no que se refere à implantação da Fotogrametria Digital. A pergunta que se faz é: estarão as Universidades preparadas para formar tal profissional? E mais: para mantê-los constantemente atualizados? Se as empresas privadas, que têm recursos e agilidade, não acompanham todas as transformações, o que dizer das Universidades? Será necessário reengenhar nossos cursos para produzir o profissional da era digital.

Antonio Maria Garcia Tommaselli é engenheiro cartógrafo, mestre em Ciências Geodésicas e Doutor em Engenharia Elétrica. Ministra disciplinas da área de Fotogrametria na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. E-mail tomaseli@prudente.unesp.br, fone (18) 221-5388.