Sem a confiança sobre os dados geográficos, eles são descartados

Peço a licença ao leitor de interromper a sequência de textos técnicos sobre banco de dados geográficos para escrever sobre um tema que me angustia como profissional há tempos (na próxima edição desta revista retomaremos a sequência).

O aprendizado no campo das Geotecnologias é muito baseado no ato de agir: quando há uma demanda e motivação para um objetivo, o conhecimento necessário muitas vezes é construído durante a busca por este objetivo. Não raramente, o conhecimento construído possui lacunas, que já jogaram a área das Geotecnologias no Brasil no que eu entendo ser uma crise.

Deixe-me definir a crise: informações geográficas já existentes estão sendo deixadas de escanteio pelos seus potenciais usuários. O autor do livro How to Lie With Maps, Mark Monmonier, na década de 90 se referenciava ao termo “cartofobia” para definir um ceticismo no uso de mapas, que é oriundo da ignorância de como os mapas são gerados ou por experiências anteriores ruins. Talvez, para os dias de hoje, a palavra ceticismo não seja a melhor, uma vez que as pessoas geralmente ficam maravilhadas com adereços tecnológicos como mapas digitais coloridos. Todavia, se alastra um conjunto de experiências ruins que, no mínimo, atrasa o progresso da incorporação das informações do espaço geográfico nos processos produtivos e educacionais.

Para ilustrar a crise que me refiro, cito dois exemplos. Uma empresa forneceu imagens de satélite e mapeamentos de uso e cobertura de uma enorme região ao poder público, porém a qualidade da ortorretificação dos produtos ficou a desejar. O órgão ambiental responsável não quer divulgar os dados atualizados de área total de cobertura vegetal, pois entende que a área calculada estaria distorcida devido ao problema da ortorretificação. Outro exemplo é uma prefeitura que realiza processos de licenciamento ambiental utilizando poucos e desatualizados dados geográficos, entretanto há um mapeamento recente disponível por outro órgão governamental. A justificativa da prefeitura em não utilizar a base nova é que foram encontrados alguns erros sobre este novo mapeamento.

Se o leitor – nos exemplos citados – entendeu que a fonte do problema é o erro dos dados, está equivocado. Como já defendi nesta revista em um artigo anterior, não há informação geográfica sem erro. O problema está na falta de confiança sobre a informação, que nos faz descartar ou diminuir a importância na aplicação desses dados. Só que a responsabilidade em instaurar e manter essa confiança é de quem constrói, de quem contrata a construção e de quem utiliza o dado geográfico.

Pragmaticamente, começamos a colecionar fontes de dados e a construir legados de informações geográficas dentro dos setores de geotecnologias que se espalham nas estruturas organizacionais.
O problema é que não são realizadas métricas para aferição da qualidade da informação geográfica e ainda são muito aquém do necessário a documentação com o detalhamento técnico, os metadados. Ressalta-se que, como a noção de qualidade é subjetiva a quem utiliza os dados, não cabe apenas ao produtor criar essas métricas, pois o consumidor também é corresponsável.

Infelizmente a literatura sobre o tema qualidade de dados geográficos no Brasil é muito reduzida. Recomendo leitura de textos relacionados ou das próprias normas ISO 19113, ISO 19114 e ISO 19115 e também dos capítulos iniciais do Plano de Ação para Implantação da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (Inde), disponíveis no site da Comissão Nacional de Cartografia (Concar).

Como eu brinco em sala de aula: quando utilizamos ou mesmo produzimos um dado geográfico sem realizar uma avaliação da qualidade, estamos cometendo um ato de fé. Nós simplesmente acreditamos que o dado possui acurácia posicional, completude e outras características necessárias para gerar resultados com a qualidade que precisamos. Não adianta apenas se preocupar com a qualidade, temos que efetivamente medi-la e divulgá-la. Caso contrário, continuaremos descartando as informações que se espalham por aí. É uma crise de confiabilidade.

 

“Deixe-me definir a crise: informações geográficas já existentes estão sendo deixadas de escanteio pelos seus potenciais usuários.”

José Augusto Sapienza Ramos
Coordenador Acadêmico do Sistema Labgis. Professor do Departamento de Geologia Aplicada da Faculdade de Geologia da UERJ. Formação na área de Engenharia e Ciência da Computação, atua há mais de 12 anos na área de Geotecnologias com pesquisa, ensino e consultoria.
sapienza@labgis.uerj.br