Por Rogerio Galindo

Suponha a seguinte situação:

Para a implantação de um grande projeto, um órgão do governo precisa de mapas de uma determinada região em escala 1:2.000. Contrata para isso, através de licitação, uma empresa de mapeamento que sobrevoa o local, tira as fotos aéreas, faz a restituição fotogramética e em alguns meses entrega o mapa.

Depois de algum tempo, o projeto já estando totalmente implantado, um outro usuário (do próprio governo, prefeitura ou uma empresa privada de telefonia ou monitoramento de veículos, por exemplo) precisa da mesma cartografia para realizar um outro projeto. A questão é: o órgão que contratou o mapeamento tem o direito de ceder esse mapa gratuitamente? Ou, se for cobrar, quanto deve cobrar? O preço de custo da cópia ou de um novo trabalho. Ou, por outro lado: a empresa que realizou o mapeamento tem o direito de cobrar por esse segundo uso?

Outro exemplo. Uma prefeitura gasta milhares de dólares para construir o mapa da cidade. A atualização constante também tem um custo bastante alto. Pergunta-se: como deve ser feita a distribuição dessa cartografia para as empresas e os cidadãos interessados? Deve-se cobrar pela cópia do mapa um preço baixo que somente recupere o custo da gravação em CD, ou o melhor é cobrar muito caro por cada cópia, para tentar recuperar o investimento feito?

A situação da cartografia brasileira já seria grave pela falta de mapeamento sistemático, pela ausência de verbas para o setor e pela inoperância dos órgãos fiscalizadores. Mas o quadro chega ainda mais perto do caos em função de dois outros problemas: a ausência de uma legislação eficiente sobre direitos autorais e a falta de consenso sobre formas de comercialização dos dados geográficos existentes.

Ou seja: quem tem dados confiáveis e atualizados no Brasil não sabe em que condições pode vendê-los. E depois de ceder a base cartográfica, não sabe se poderá cobrar por seu uso e se a propriedade de sua autoria estará protegida por alguma legislação.

Tentando contribuir para essas discussões, a Espaço GEO promoveu em novembro do ano passado um debate sobre Comercialização e Distribuição de Dados Geográficos e comentários sobre direitos autorais, no expoGEO Brasil Central’98, em Brasília. Como parte do Fórum Brasil de Mapeamento, o debate (que foi mediado pelo geógrafo Lindon Fonseca, do Ibama) reuniu pessoas envolvidas diretamente com estes problemas, que apontaram caminhos para que esta situação possa ser melhor esclarecida em breve. Vale lembrar que além dos debatedores presentes foram convidados representantes de IBGE e Concar, que não compareceram.

Leia a seguir um resumo do que foi apresentado e discutido no debate.

Flávio Yuaça
Abrindo a discussão, o coordenador de geoprocessamento da Comdata (Companhia de Desenvolvimento de Goiânia) falou sobre o Mapa Urbano Básico (MUB) do município e sua distribuição. Na opinião de Yuaça, o MUB deve ser visto pelas prefeituras como um capital social: não deve ser vendido, mas cedido a todos aqueles que tiverem interesse em ter o mapeamento oficial da cidade.

O benefício principal seria o aumento da possibilidade de intercâmbio entre os usuários. "Todos usando os mesmos mapas, seria muito mais simples fazer troca de dados", diz Flávio. Yuaça propõe até que seja criado um selo em cada cidade, que marcaria os mapas feitos a partir dos dados oficiais da prefeitura. Dois usuários que tivessem este selo, poderiam trocar informações entre si, sem medo de estarem acrescentando informação incompatível com sua base cartográfica.

Além disso, a atualização do mapa para a prefeitura ficaria mais barata. Como os usuários do MUB acrescentariam informações seguindo padrões pré-determinados, a prefeitura poderia periodicamente incluir estes dados no seu banco sem custos.

Enéas Brum
Se uma base de dados for produzida por uma instituição e digitalizada por outra, a quem pertencem os direitos autorais? Enéas Brum, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Geotecnologias (AGTEC) tentou responder em sua apresentação a essa pergunta. Segundo Enéas Brum, a digitalização não deve ser considerada como uma reprodução, mas sim como uma extração de medições. "A reprodução é um processo automático. A digitalização é feita manualmente, e envolve trabalho de técnicos especializados". Assim sendo, dados digitalizados devem ser considerados como um novo trabalho, e poderiam ser revendidos como sendo de autoria de quem os digitalizou.

Enéas comentou ainda a postura de instituições produtoras de cartografia no Brasil, que consideram que o direito sobre dados digitalizados por terceiros ainda é de propriedade de quem levantou os dados inicialmente. "Não existe uso de bases cartográficas não digitalizadas em engenharia hoje, e se você impedir que digitalizem suas bases, ninguém vai comprar. Ninguém quer comprar coisas inúteis", disse Enéas.

Ten. Cel. Paulo César Rodrigues Borges
O representante da Diretoria de Serviços Geográficos do Exército (DSG) apresentou os resultados de uma reunião a que assistiu em 1.997, e que contava com a presença de diretores de serviços geográficos militares de toda a América do Sul, Espanha e Portugal. Na ocasião, foi apresentada uma série de alternativas que poderiam ser adotadas para evitar o plágio e cópias desautorizadas de dados cartográficos.

A primeira alternativa seria definir contrato de licença de uso entre o comprador e a organização produtora do bem. A segunda, seria o organismo produtor empregar chaves bloqueadoras na mídia digital que contenha os dados. Essa não é uma solução ideal porque encarece o produto, e incentiva a tentativa de obtenção de cópias ilegais. A terceira alternativa seria a manutenção permanente da atualização dos dados digitais. "Essa política aumentaria a probabilidade de que o público prefira adquirir produtos atualizados e legítimos a custos compensadores frente a cópias ilegais e com informação caduca", disse o representante da DSG. Como complemento, Rodrigues disse que, em sua opinião, o Brasil está mais atrasado em normalização de direitos autorais do que países como Chile e Argentina.

Antônio Luiz de Freitas
Antônio Luiz de Freitas, representante da Associação Nacional de Empresas de Aerolevantamentos (ANEA), ressaltou a importância de se discutir direitos autorais no Brasil hoje, "quando a utilização intensiva dos mapas começa a acontecer".

Freitas mostrou vários aspectos da Lei 9.610, que atualmente é o principal instrumento legal sobre direitos autorais no país.

"O art. 7º da Lei em questão, define e lista quais são as obras intelectuais protegidas. Em suas alíneas IX e X citam:

IX – as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;
X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência."

Depois, Freitas falou sobre algumas das implicações desta legislação na atividade cartográfica.

Como primeiro ponto, o representante da ANEA citou que a reprodução parcial ou total, edição, distribuição, inclusão em base de dados, armazenamento em computador, microfilmagem e demais formas de arquivamento do gênero, entre outros atos, depende de autorização prévia e expressa do autor. Segundo Antônio Luiz, a escanerização ou digitalização de mapas e a inclusão de dados em um GIS devem estar incluídos neste caso.

Outro ponto: a Lei prevê a possibilidade de cessão de direitos de autor, por um prazo máximo de cinco anos, sobre obras futuras. "Parece-nos claro ser este o caso em que se encontrariam as contratações para elaboração de material cartográfico", comenta Antônio Luiz.

Guilherme Pinho
O diretor da Digimapas, empresa que produz e comercializa dados cartográficos no Brasil e em outros países, comentou a diferença do debate realizado em Brasília para um outro de que tinha participado nos Estados Unidos. Segundo ele, a preocupação dos empresários norte-americanos era bem diferente. Eles não se preocupavam com a legislação. A preocupação era toda voltada ao aspecto financeiro.

Uma das preocupações apresentadas na palestra de Guilherme foi a falta de uniformização das leis brasileiras de direito autoral. "Seria muito agradável poder ouvir todos aqui citarem as mesmas leis. Na Digimapas respeitamos a origem dos dados, e queríamos ver a Lei fazendo o mesmo pelos nossos produtos".

Guilherme terminou sua apresentação dizendo que "não adianta legislar a favor ou contra órgãos ou empresas. É preciso atender os anseios e necessidades da sociedade brasileira".

Mauro Pereira de Mello
O representante da Sociedade Brasileira de Cartografia (SBC) falou de um outro lado importante da autoria: para ter direitos sobre sua obra, o autor também precisa ter responsabilidades sobre ela. "Esse é um lado que é convenientemente esquecido na maioria das vezes", comentou.Mello.

De acordo com a Lei 5.194, de 1.966 é necessário anunciar o profissional responsável pela circulação, realização e divulgação de uma obra de engenharia (incluídas as bases cartográficas). A resolução 283, de 1.982, do Confea, reforça essa necessidade ao exigir que constem de todos os trabalhos gráficos o instituto profissional e número da carteira do responsável pela obra.

Outro aspecto discutido por Mello foi o da compilação de dados. Segundo ele, a compilação de diferentes dados é uma obra transformada, e deve ter seus direitos atribuídos aos autores da compilação.

O representante da SBC terminou sua apresentação dizendo que é preciso ampliar a conscientização da necessidade do licenciamento obrigatório e de remuneração para utilização de dados cartográficos.

Cel. Erbas Soares de Medeiros
Só existe um documento legal sobre direitos autorais que pode ser claramente aplicado a dados cartográficos no Brasil: o decreto Lei 243, de 1.967. Esta é a opinião do Cel. Erbas Soares de Medeiros, que diz que todas as demais leis existentes sobre o tema no país mencionam apenas indiretamente, ou nem mesmo mencionam, obras de engenharia cartográfica como sendo passíveis de proteção. "A Lei 9.610, por exemplo, fala de "cartas geográficas e outras obras de mesma natureza". Isso inclui cartas topográficas, temáticas ou digitais?", pergunta o Coronel.

No entanto, mesmo para fazer valer o decreto 243, seria necessário que a Comissão coordenadora de Cartografia no país agisse, regulamentando e normalizando o decreto.

Conclusões (por Emerson Zanon Granemann)
Foi praticamente impossível concluir algo do debate, devido à disparidade de opiniões entre os debatedores e os que formularam perguntas na platéia. Como este tema nunca foi discutido abertamente, ficou clara a falta de diálogo entre as instituições, principalmente em relação ao segmento do mercado que só agora vem sendo chamado para participar das discussões: o usuário.
Apesar dos dois temas (comercialização e direitos autorais) estarem intimamente ligados, temos que dividi-los para facilitar o andamento das discussões.
A questão da política de comercialização passa pela discussão da origem da contratação dos dados. Na área pública o tema é um pouco mais complexo. Que a instituição pública deve disponibilizar os dados parece uma unanimidade. A dúvida seria quanto ao custo. Gratuitamente, a preço de custo ou com um valor maior, para amortizar o alto investimento da aquisição dos dados?
A questão de direitos autorais, apesar de gerar opiniões contrárias, tem uma evidência clara. A atual legislação, além de ser incompleta, não é específica para a área, pois não leva em consideração os avanços tecnológicos e a multidisciplinaridade de uso dos dados geográficos.
Definitivamente, não podemos tratar numa mesma lei, direitos autorais de obras de engenharia e de obras artísticas.
Estes serão alguns dos temas discutidos em maio próximo, durante o expoGEO Brasil 99, objetivando caminharmos para soluções que permitam diminuir os conflitos e desenvolver melhor o mercado.


Situação da Concar em suspenso

A Reforma Administrativa da Presidência da República realizada em janeiro trouxe uma conseqüência direta para a Cartografia Brasileira. A Comissão Nacional de Cartografia (Concar) foi automaticamente desativada com a extinção do Ministério do Planejamento e Orçamento, ao qual estava subordinada. Atualmente, estão sendo feitos esforços para que a Comissão seja reativada como órgão colegiado da Secretaria de Planejamento e Avaliação, à qual está subordinado agora o IBGE. No entanto, como está previsto para o mês de abril o fim de uma segunda etapa de reformas na Presidência, ainda não se pode saber qual vai ser o destino da Concar.