De Ratos e Homens

"Na cidade de São Paulo há 6 ratos por habitante."

Era o que, algum tempo atrás, ensinava uma matéria de jornal, citando detalhes minuciosos sobre as características destes roedores: período de gestação de 19 a 22 dias; até 5 ninhadas por ano; até 10 filhotes por ninhada.

A descrição de como o piscinão do Pacaembu, sob a Praça Charles Muller virou um ninho gigante, com os ratos dominando a praça durante a noite, era de deixar qualquer um impressionado.

A gente lê uma matéria dessas e vira a folha balançando a cabeça, desanimado com a situação de abandono da cidade… Ôpa ! Mas, espere aí ! Quem disse que são seis ratos por habitante? Com base em quê? Com que margem de confiança? Isso a matéria não explicava.

Os dados para uma ratazana em particular não são tão difíceis de obter: é só mantê-la em laboratório e observá-la, torcendo para ela se comportar em cativeiro da mesma maneira que solta no ambiente. Mas contar ratos livres? Para a tarefa ser extremamente difícil não precisaríamos nem da complicação adicional de que ratos andam… sorrateiramente. Basta o fato de que estão circulando e não são exatamente cooperativos. Onde contá-los? Como relacioná-los a uma área de ocorrência? Como saber se o mesmo indivíduo não está reaparecendo várias vezes na amostra? Como generalizar os resultados para áreas não estudadas, que podem ter características muito heterogêneas?

Pela recorrência, este temário algo repulsivo dá indícios de sua popularidade. Para ficar em só mais um exemplo: recentemente um jornal respeitado trouxe a manchete de que "São Paulo tem 200 baratas para cada habitante". Argh.

A matéria tinha um tom bastante científico. Fazia referência a uma "pesquisa em andamento" no Instituto Nacional de Pesquisas Biológicas, mas citava dados de "um estudo preliminar" de 97, em que foram instaladas quatro armadilhas em mil residências, encontrando-se, em média, seis baratas em cada casa. Vou poupar o leitor de outros detalhes fornecidos por especialistas de empresas de dedetização, citados na mesma matéria, que estimavam em 60 o número de baratas alojadas em cada sifão de pia, e em 35 mil o número de descendentes deixados por um único e feliz casal de baratas de cozinha, ao longo dos seus seis meses de vida.

Mentir com estatística
Uma maneira instrutiva de ler artigos sobre a disseminação de pragas pouco tem a ver com informar-se sobre seu conteúdo… pragmático, mas com um treino na identificação do método pelo qual conclusões totalmente "chutadas" são apresentadas como rigorosamente derivadas de estudos científicos. Nestes casos, é comum o encadeamento de longas séries de estatísticas apenas para dar uma aparência de credibilidade à argumentação, que não necessariamente faz sentido.

Mesmo admitindo que a pesquisa tenha sido séria, gostaria de entender, por exemplo, como se passa da afirmação de que foram capturadas em média seis baratas em cada residência estudada, para a afirmação que de que há 200 baratas por habitante na cidade (não há baratas em empresas? terrenos baldios? bueiros e esgotos? as condições de saneamento são similares em todos os bairros? etc, etc, etc). Como já dizia Huff em 1954, num livrinho clássico e irritante chamado "Como Mentir com Estatística" (e atualmente disponível pela Ediouro), se você não sabe provar uma coisa, prove outra: ninguém vai perceber a diferença.

Acesso ao Ponto Comercial
Um importante fator de sucesso para um ponto comercial é sua acessibilidade, que ocorre em três níveis: à comunidade, à área de influência e ao ponto em si.

Acesso à comunidade diz respeito ao sistema viário da região metropolitana, que possibilita o deslocamento da população de uma zona da cidade a outra. Acesso à área de influência diz respeito à facilidade com que os seus residentes se deslocam pelas proximidades de suas casas, indo ou vindo para o ponto comercial. Finalmente, o acesso físico ao ponto diz respeito à localização de suas entradas e saídas e às direções a partir de onde é fácil atingi-lo.

No primeiro caso, isto é, no estudo do acesso à comunidade, é importante conhecer o fluxo de veículos pelas artérias primárias e secundárias da cidade; no estudo do acesso à área de influência e ao ponto propriamente dito, utilizam-se informações sobre o fluxo de veículos e sobre o fluxo de pedestres nas imediações do ponto.

O problema consiste em que contar veículos ou pessoas é só um pouco mais fácil que contar ratos ou baratas. Transeuntes e ratos têm em comum o fato de serem muitos, estarem em movimento o tempo todo e serem pouco cooperativos. Com a desvantagem que não podemos capturar amostras de pedestres em armadilhas ou prender-lhes uma fita metálica no tornozelo e recapturá-los em períodos seguintes.

São muito comuns no mercado brasileiro estudos de localização em que, além de mal definidos, os fluxos de veículos e pedestres são insuficientemente medidos: uma contagem de cinco minutos na quarta-feira à tarde e outra no sábado de manhã estão longe de fornecer um quadro minimamente confiável. Mesmo levantamentos mais completos acabam produzindo apenas uma média diária que, ao contrário dos usos e costumes do varejo, não representam uma medida adequada da atividade de veículos e transeuntes nas imediações de um ponto comercial.

Mais do que o volume, é o horário do fluxo que importa. Portanto, dados sobre fluxos horários são indispensáveis para a avaliação do tipo de fluxo, quando ele realmente ocorre e como os momentos de tráfego intenso afetarão os resultados de um estabelecimento comercial.

Calmantes e placebos
Mas quem se importa? No atual estágio do mercado para estudos de localização no Brasil, poucos usuários preocupam-se em avaliar se a metodologia utilizada é adequada e as conclusões, confiáveis. No mais das vezes, o contratante do serviço deseja obter conforto psicológico de que seu empreendimento terá sucesso; ou quer encontrar novos argumentos para fundamentar decisões previamente tomadas; ou garantir-se de que, em caso de desempenho negativo do ponto, estava amparado pelas recomendações de um especialista.

Quando o que se procura é o que já se sabia de saída, qualquer argumento minimamente verossímil serve. Assim, se antes de ler os artigos sobre ratos e baratas já achamos que São Paulo está mesmo abandonada, todos os números arrolados para comprovar esta tese, quaisquer que sejam, fazem sentido.

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Francisco Aranha é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), e consultor em Marketing Geográfico pela Paredro Administração (SP).
Email:faranha@ibm.net.