Fronteiras e desafios do sensoriamento ótico multibanda

A crescente relação de oferta e demanda por sensores óticos multibandas, operacionais especificamente nas regiões espectrais entre o visível (VIS) ao infravermelho de ondas curtas (IVOC) (400-2500 nm) com vias a aplicações diversas, como mapeamento e monitoramento da superfície terrestre, constitui hoje um dos principais nichos de interesse, tanto de pesquisa, como de desenvolvimento de aplicações geotecnológicas. Entretanto, uma fronteira na utilização de dados óticos é a necessidade cada vez maior de um pré-processamento adequado para o uso total de seu potencial, o qual deve considerar a necessidade de calibração radiométrica, com a transformação de dados brutos (em números digitais – DN – do inglês Digital Number) para valores de radiância (Lsen), e consequente correção dos efeitos da atmosfera e a conversão em reflectância de superfície (ρsup). Esse tipo de tratamento confere ao conjunto de dados características únicas, possibilitando o uso semi-quantitativo das imagens multibandas através da capacidade de identificação de valores biofísicos intrínsecos aos alvos, como pigmentos, lignina, celulose no caso da vegetação, ou óxidos e hidróxidos de ferro, no caso de solos, e nitrogênio em ambos os casos.

A correção atmosférica age ainda como normalizador do conjunto de dados, extraindo influências espúrias como efeitos de retroespalhamento da radiação eletromagnética ou presença de aerossóis. Como vantagem, permite o uso adequado de séries multitemporais de imagens em diferentes condições de tempo, a aplicação de cálculos para estimativa da quantidade de determinado componente bioquímico no alvo, bem como análises comparativas de diferentes cenas sobre extensas áreas em bases de dados isonômicos. Entre os principais fatores limitadores para a realização de tais procedimentos estão: a) o difícil acesso a parâmetros multitemporais para simulação da atmosfera em diferentes períodos; (b) a necessidade de conhecimento especializado de métodos de calibração e correção adequados para diferentes sensores e (c) o conhecimento necessário sobre o comportamento espectral de diferentes alvos para a validação da correção, em diferentes sensores. A ausência de um pré-processamento adequado tem como consequência uma subutilização de imagens óticas, as quais têm seu uso baseado muito mais em aspectos geométricos e de identificação visual através de composições coloridas da região do visível e de índices espectrais simples, nem sempre aplicados de maneira adequada. Exemplo disso fica mais evidente nos escassos resultados e produtos que relacionam características espectrais dos alvos a partir de sensores de altíssima resolução espacial, comumente utilizados por sua precisão planimétrica.

Trabalhar com dados calibrados e corrigidos confere uma nova gama de possibilidades de aplicação, alinhadas a novas demandas por resultados não apenas qualitativos, mas quantitativos. Tomando-se como referência o comportamento espectral típico da soja, estabelecido através de medidas espectrorradiométricas de campo utilizando espectrorradiômetro Fieldspec HiRes4, comparativamente com dados do sensor OLI (Operational Land Imager – Landsat 8), extraídos sobre áreas de soja em diferentes níveis de processamento – radiância do sensor (Lsen), reflectância do topo da atmosfera (ρtoa) e reflectância da superfície (ρsup) – fica nítida a melhor capacidade reprodutiva do comportamento espectral do alvo do último formato (Figura 1), mesmo considerando-se diferenças de exposição de dossel e condições de luz. Reiterando que os valores de ρsup são o resultado final de todo o procedimento de calibração radiométrica e correção atmosférica. As maiores diferenças entre os valores de bandas em Lsen e ρtoa, e o espectro de referência de campo, notoriamente nas bandas do Visível/Infravermelho Próximo (OLI 1-4), são demonstrativos de características não associadas aos alvos sob investigação, e sim a condições atmosféricas ou anomalias radiométricas, que conforme dito em epígrafe, inviabilizam processamentos semiquantitativos, por vezes, apresentando um efeito exponencial de erro quando submetidos a cálculos matemáticos típicos de processamento digital de imagens, como por exemplo, comumente cálculos de biomassa utilizando índices espectrais como o NDVI (Normalized Difference Vegetation Index). Demandas de mapeamento como as supracitadas já estão em curso, mesmo que em pequena escala, em países de forte tradição em sensoriamento remoto e geotecnologias através do desenvolvimento de sistemas de correção e calibração pronto uso para alguns poucos sensores, tais como: o ASTER (Advanced Spaceborne Thermal Emission and Reflection Radiometer) com 15 metros de resolução espacial), através de produtos do tipo AST07, já calibrados e corrigidos; o MODIS (Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer) com 250 metros de resolução espacial), com exemplo de produtos como os dados de reflectância da superfície (MOD09), índices de vegetação (MOD13) e albedo (MOD43); e mais recentemente a série Landsat 4, 5 Thematic Mapper; 7 Enhanced Thematic Mapper e Landsat 8 OLI com 30 metros de resolução espacial), através do programa LEDAPS (Landsat Ecosystem Disturbance Adaptive Processing System), que disponibiliza imagens da reflectância de superfície. Cabe destacar que tais sensores são todos de resolução espacial moderada/média. Entretanto, tais sistemas de calibração e correção inexistem no Brasil e, mesmo aplicações experimentais associadas a dados corrigidos são escassas e nenhuma delas fazendo uso de sensores de altíssima resolução espacial.

 

Figura 1: Espectros extraídos de imagens do sensor OLI (Landsat8) sobre áreas de soja, nas seguintes grandezas escalonadas (%): radiância do sensor (Lsen); reflectância do topo da atmosfera (ρtoa) e reflectância de superfície (ρsup). Como referência do comportamento espectral do alvo tem-se o espectro de soja medido em campo utilizando espectrorradiômetro Fieldspec HiRes4 (ρsup) (Labspec/Embrapa). Valores de ρsup das bandas do espectro de soja do sensor OLI (calibrados e corrigidos) apresentam comportamento espectral análogo à medida de campo (Fieldspec HiRes4).

SCCAM

Com base na necessidade premente de utilização de dados de alto nível de sensores óticos multibandas para aplicações semiquantitativas voltadas ao uso em soluções de última geração, a Embrapa Monitoramento por Satélite desenvolveu o Sistema de Calibração e Correção Atmosférica Multissensor (SCCAM) (Figura 2). Planejado inicialmente para atender projetos e demandas da Embrapa e instituições parceiras, o SCCAM possibilita a calibração e correção de dados de sensores remotos através de um fluxo de processos e algoritmos encadeados. Por meio da internet, o usuário pode acessar o acervo de imagens disponíveis no sistema na forma de repositório de dados já processados ou requisitar o procedimento junto à Embrapa Monitoramento por Satélite. Tanto o acesso ao acervo, quanto a requisição de processamento de imagens obedecem a normas de direito de uso e distribuição, bem como aos critérios prioritários envolvendo parcerias da Embrapa. O usuário pode acessar o sistema online de maneira interativa via WebGIS na página http://mapas.cnpm.embrapa.br/labspec/sccam/app.html.

Sensores de cunho estratégico e acesso gratuito, como as séries do satélite Landsat, são disponibilizados livremente mediante aceite de termos de citação. O sistema opera baseado em arquivos de conversão para radiância (L) com valores sempre atualizados junto às empresas e agências espaciais fabricantes dos sensores, sendo realizados testes de consistência na transformação dos dados brutos (DN). Para a correção atmosférica é utilizado o mais eficiente algoritmo de processamento baseado no Modelo de Transferência Radiativa (MODTRAN), cujos parâmetros das condições atmosféricas para sua implementação são obtidos através de consulta de coordenadas para todos os dias e locais do Brasil, utilizando algoritmo próprio, desenvolvido pela Embrapa Monitoramento por Satélite, que calcula variáveis como: visibilidade, coluna de água da atmosfera e aerossóis, a partir do sensor MODIS, operacional nos satélites TERRA e AQUA, abrangendo uma série histórica de mais de 15 anos.

Figura2: Interface gráfica do Sistema de Calibração e Correção Atmosférica Multissensor (SCCAM). Interface de busca por: satélite, data, sensor, órbita/ponto e display de visualização no mapa e em forma de lista (a). Lista de imagens escolhidas para avaliação visual, metadados e download (b). Mapa de visualização por órbita/ponto das imagens selecionadas (c).

Figura2: Interface gráfica do Sistema de Calibração e Correção Atmosférica Multissensor (SCCAM). Interface de busca por: satélite, data, sensor, órbita/ponto e display de visualização no mapa e em forma de lista (a). Lista de imagens escolhidas para avaliação visual, metadados e download (b). Mapa de visualização por órbita/ponto das imagens selecionadas (c).

Resultados

Entre os resultados alcançados a partir da implantação do SCCAM, destacam-se a inédita e plena capacidade de calibração e correção atmosférica de sensores de altíssima resolução espacial, como o WorldView2, o Geoeye e o RapidEye. Esse último é estratégico para o governo brasileiro, considerando a aquisição recente de várias coberturas anuais (2011/2012/2013) do território nacional. Destaque também para a capacidade de correção e calibração da série Landsat 5 TM e do recém-lançado (fevereiro de 2013) Landsat 8 OLI. No caso do OLI, outro produto associado é a calibração e correção de cenas de todo o território nacional para o ano de 2014, totalizando 375 órbitas ponto de 180 x 180 km, as quais obedecem ao calendário agrícola por Estado, constituindo um mosaico de imagens processadas ainda inédito para o Brasil. Tratam-se dos primeiros produtos de alta e altíssima resolução calibrados e corrigidos, sendo que em alguns casos mesmo o fabricante não possui tal implementação, o que representou um desafio para a equipe da Embrapa em termos de obtenção, organização e aplicação da base de metadados necessária aos procedimentos supracitados (cada sensor possui arquivos de calibração relacionados com suas características físicas e de funcionamento). Atualmente, apenas os fabricantes e agências espaciais governamentais possuem tal capacidade, muitas vezes voltada para um único sensor. A utilização do SCCAM abre a possibilidade desses tipos de aplicações em larga escala para grandes faixas do território, além de disponibilizar dados de altíssima qualidade para diferentes locais do Brasil, passíveis de serem aplicados em produtos da agricultura de precisão, sistemas de mapeamento/monitoramento agrícola, ambiental e de recursos naturais. A proposta da Embrapa Monitoramento por Satélite, com o SCCAM, é aprimorar e ampliar o uso de dados multissensor em alto nível, evoluindo e procurando auxiliar a comunidade de geotecnologias no alcance, cada vez mais, de melhores resultados.

Para mais informações, consulte a Biblioteca Espectral do Labspec: www.embrapa.br/monitoramento-por-satelite/labspec

Luiz Eduardo Vicente

Geógrafo, Doutor em Geografia, pesquisador, chefe-adjunto de Transferência de Tecnologia da Embrapa Monitoramento por Satélite

luiz.vicente@embrapa.br

 

 

Daniel Gomes

Geógrafo, Mestre em Geografia, Analista da área de Geoprocessamento da Embrapa Monitoramento por Satélite

daniel.gomes@embrapa.br

 

 

Daniel de Castro Victoria

Engenheiro Agrônomo, Doutor em Ciências, pesquisador, supervisor de Pesquisa & Desenvolvimento da Embrapa Monitoramento por Satélite

daniel.victoria@embrapa.br

 

 

Davi de Oliveira Custódio

Analista de Sistemas da Embrapa Monitoramento por Satélite

davi.custodio@embrapa.br