A pesquisadora Andréa Carneiro reflete sobre a viabilidade do próximo passo do setor de cadastro

Discutimos nos últimos anos a lei 10.267/2001, que estabelece o georreferenciamento de imóveis rurais e sua aplicabilidade. Em muitas ocasiões, o tema do georreferenciamento de imóveis urbanos foi lembrado, às vezes como uma necessidade, outras como uma possibilidade para a qual devemos nos preparar. As inúmeras discussões sobre as questões técnicas, administrativas e legais relacionadas ao novo cadastro de imóveis rurais, associadas a novas leis voltadas para o ambiente urbano, como a lei 10.257/2001, levaram à valorização do cadastro multifinalitário, trazendo à tona a importância das informações georreferenciadas para diversos processos de intervenção urbana. Este texto tem como objetivo destacar alguns pontos a serem considerados numa análise da viabilidade da exigência de georreferenciamento de imóveis urbanos.

Uma breve retrospectiva para contextualizar a abordagem do tema

Quando surgiram as primeiras ações visando a elaboração do projeto de lei que deu origem à lei 10.267/2001, havia restrições da parte de alguns pesquisadores que se dedicavam ao cadastro no Brasil, entre os quais me incluo. Iniciando estudos para doutoramento, cujo tema propunha a integração entre cadastro e registro de imóveis, parecia incoerente investir numa legislação que tratasse unicamente do cadastro de imóveis rurais. Uma análise mais cuidadosa da situação do cadastro no Brasil e de projetos de reforma cadastral em outros países, no entanto, mostrou que uma mudança tão radical não acontece da noite para o dia, modificando estruturas administrativas que parecem incompatíveis. E experiências internacionais indicavam que uma reforma progressiva do cadastro é o melhor caminho para o seu aperfeiçoamento, principalmente em países com pouca cultura cadastral – o caso do Brasil.

Sob esse ponto de vista, avaliou-se que o melhor caminho para o aperfeiçoamento do cadastro brasileiro seria a partir do cadastro rural, que já possuía legislação e administração em âmbito federal. Imaginou-se que, a partir da experiência da aplicação da legislação aos imóveis rurais, seria facilitado o tratamento dos imóveis urbanos.

E qual a situação do cadastro urbano? Sem uma legislação específica que estabeleça diretrizes para o seu estabelecimento e manutenção, o cadastro urbano desenvolve-se em cada prefeitura segundo as necessidades e interesses locais, muitas vezes de maneira improvisada, copiando-se modelos adotados por outros municípios.

Enquanto se discutia a aplicação da lei de georreferenciamento de imóveis rurais, evoluía a legislação voltada para áreas urbanas. A mais importante delas, a lei 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, regulamenta instrumentos urbanísticos e jurídicos para a regularização fundiária, além da exigência de plano diretor para os municípios com mais de 20 mil habitantes. O cadastro multifinalitário passa, assim, a ser valorizado como um instrumento importante para um planejamento eficiente, principalmente para a otimização da utilização de recursos sempre escassos.

Outras leis ou alterações de leis existentes, menos conhecidas no meio técnico cadastral, trouxeram novas possibilidades para o aperfeiçoamento da informação territorial. Pode-se citar a lei 10.931/2004, que permite a retificação administrativa da descrição de imóveis, sejam urbanos ou rurais, desde que apresentada planta georreferenciada assinada por profissional habilitado. E ainda a Ementa Constitucional n.42, que prevê o repasse do valor integral do Imposto Territorial Rural (ITR) para o município que se dispuser a implantar e administrar o cadastro rural. Sobre estas leis voltarei a falar mais adiante.

O cadastro multifinalitário como instrumento de planejamento urbano e seus elementos técnicos

Uma importante iniciativa realizada em 2005 deve ser destacada. Dentro do Programa Nacional de Capacitação das Cidades, promovido pelo Ministério das Cidades, Caixa Econômica Federal e Lincoln Institute for Land Policy, foram realizados seminários sobre cadastro multifinalitário dirigidos a gestores e técnicos de cadastro municipal. Foram abordados temas como os elementos de um cadastro multifinalitário, seus benefícios, estudos de caso e alternativas tecnológicas. Criou-se uma oportunidade única de divulgar diretamente para os envolvidos com cadastro os benefícios e possibilidades de uma boa informação cadastral, assim como as alternativas tecnológicas atuais, suas aplicações e limitações. E esse trabalho deve ser fortalecido em 2006. O cadastro multifinalitário é apresentado como um cadastro básico, que contém informações comuns aos diversos usuários da informação cadastral e possibilita a integração de cadastros temáticos variados como de logradouros, fiscal, de infra-estrutura (concessionárias, equipamentos urbanos) e legal (registros imobiliários). Observa-se que as aplicações do cadastro têm evoluído dos fins exclusivamente fiscais para diversas outras finalidades, principalmente de planejamento e ambientais. Por isso, é necessário que se estabeleça um alicerce sólido para que a estrutura cadastral seja robusta e suficientemente confiável para atender aos seus múltiplos usos.

Do ponto de vista técnico, dois elementos são fundamentais para a integração das informações de várias bases de dados: a identificação única dos imóveis e um sistema de referência de medição único. A identificação única permite que cada usuário possa reconhecer o mesmo imóvel nos bancos de dados específicos, e assim aproveitar os dados existentes, produzidos por possíveis parceiros. Por outro lado, se todos os levantamentos (plantas de loteamentos, projetos de intervenção urbana) forem realizadas utilizando o mesmo sistema de referência e atenderem ao mesmo padrão de precisão de levantamento, é possível aproveitar essas medições para manter atualizada a base cadastral, reduzindo assim os custos com a necessária atualização do cadastro.

E qual o relacionamento do cadastro multifinalitário com o georreferenciamento de imóveis? Se o georreferenciamento de imóveis rurais foi pensado para evitar a superposição de imóveis, este é um problema também em áreas urbanas. E não são poucos os casos de locação inadequada de loteamentos, que causam futura ilegalidade dos imóveis, ou impossibilidade de legalização devido à dificuldade de identificação entre o imóvel cadastrado e o registrado. E aí surge também a importância do intercâmbio entre cadastro e registro de imóveis.

Voltando agora à lei 10.931/2004, citada anteriormente. Através dessa lei, o registrador pode retificar administrativamente, ou seja, no próprio cartório, uma descrição de imóvel que esteja equivocada ou imprecisa, desde que seja por iniciativa do proprietário, com anuência dos confrontantes e apresentação da planta georreferenciada assinada por profissional habilitado. É um caminho importante para o georreferenciamento de imóveis urbanos, principalmente porque envolve o caráter legal do cadastro, mas é preciso definir normas para esse georreferenciamento. Para os imóveis rurais, existe a responsabilidade do INCRA para definir as normas e certificar que os imóveis foram medidos de acordo com essas normas. Para os imóveis urbanos não existe ainda essa estrutura técnica. A precisão do levantamento apóia-se exclusivamente na responsabilidade do profissional. E é importante lembrar outro ponto: a precisão da determinação dos limites de imóveis rurais é de 50 cm.

E para os imóveis urbanos? Terá que ser uma precisão maior, em torno de 6 a 10 cm, se adotada a mesma metodologia do caso dos imóveis rurais. É preciso pensar quais os impactos econômicos dos custos dos novos levantamentos sobre o mercado imobiliário. O fator custo é fundamental na definição da viabilidade.

Quanto à Emenda Constitucional n.42, com a possibilidade de implantação e gestão do cadastro rural pela própria prefeitura, pode-se finalmente construir o cadastro municipal – e muitos já estão convencidos dos seus benefícios. Afinal, a administração municipal é responsável pelo planejamento e gestão do município como um todo, e a carência de informações sobre as áreas rurais fica evidente neste momento em que muitos municípios estão obrigados a elaborar planos diretores até outubro de 2006. Mas isso não contraria a lei 10.267/2001, que delega ao INCRA e Receita Federal a administração de um cadastro único para as áreas rurais (o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais – CNIR)?

Finalmente, o georreferenciamento de imóveis urbanos é viável ou não?

São muitos os desafios, mas é possível indicar ações que permitam o amadurecimento da idéia. Quanto ao sistema de referência único necessário à integração dos levantamentos, desde 1998 temos a norma da ABNT NBR-14.166 para implantação de redes de referência cadastral. Trata-se de uma norma importante, que detalha os métodos de levantamento e padrões de precisão necessários. Ela traz, inclusive, um modelo de decreto municipal oficializando os marcos de referência e estabelecendo a exigência de georreferenciamento de todos os levantamentos topográficos e geodésicos a esta rede.

Com relação à projeção cartográfica, no entanto, a norma admite os sistemas transversos de Mercator (UTM, LTM, RTM) ou o plano topográfico. De uma maneira geral, as redes de referência têm sido implantadas na área urbana, algumas vezes usando o plano topográfico como referência. Nesse caso, haverá divergências com o cadastro rural, que adota o sistema UTM em conformidade com a norma do INCRA.

Quanto à precisão dos levantamentos, é importante que se desenvolvam estudos para definir o valor dessa precisão para imóveis urbanos, bem como as normas para a realização dos levantamentos. Estas e outras questões (por que não pensar numa lei nacional de cadastro?) servem de planejamento para o georreferenciamento de imóveis urbanos. E devem ser tema de discussão durante este ano de 2006, para que estejamos prontos para os novos desafios que com certeza virão.

Andréa F. T. Carneiro
aftc@ufpe.br
Professora e pesquisadora do departamento de engenharia cartográfica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)