A empresa entra em uma concorrência pública de uma grande obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e busca por mapas atualizados da região para verificar as condições locais. Como eles não existem ou são muito antigos, é preciso enviar uma equipe ao campo para executar um levantamento preliminar. Depois de ganhar a licitação, a companhia usa uma parte da verba destinada à obra para fazer a cartografia precisa. A poucos quilômetros dali, uma empresa diferente faz o mesmo para atender um cliente privado. Ambas não sabem que, há poucos meses, uma terceira empresa da área de geomática fez um aerolevantamento e está prestes a entregar um mapa do local.

O fato é fictício, mas situações semelhantes ou até mais complicadas acontecem em todo o Brasil devido à falta de uma base de dados atualizada sobre a produção cartográfica no país. As empresas nacionais de geoprocessamento já dispõem da mais alta tecnologia para mapeamento, e estão constantemente produzindo base cartográfica, porém a falta de uma política pública unificada para todo o território e de um repositório de mapas gera sobreposição de projetos e retrabalho, com prejuízo para toda a sociedade.

Com o decreto que instituiu a Infra-estrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), assinado no final de novembro, o governo sinalizou que está trabalhando para a padronização de dados e o compartilhamento de informações geoespaciais na esfera pública. Da mesma forma, a iniciativa privada tem agora um padrão que pode ser seguido para a produção, modelagem, armazenamento e distribuição dos dados cartográficos.

Em um passado não muito recente, a instituição responsável pela produção de cartografia no país era o Exército, através da Diretoria de Serviço Geográfico (DSG). Porém, devido às dimensões continentais do Brasil e o avanço cada vez mais rápido das tecnologias de mapeamento, estados, municípios e a própria iniciativa privada passaram a produzir suas próprias bases cartográficas, com diferentes tecnologias e processos. Organizar essa geléia geral é o desafio para os próximos anos.

Vamos mapear o Brasil?

O movimento “Vamos mapear o Brasil” começou no portal MundoGEO e nas revistas InfoGEO e InfoGNSS Geomática, com o objetivo de fomentar a discussão sobre a falta de mapas atualizados no país e os malefícios desse vazio cartográfico. O termo “vazio cartográfico” é usado constantemente quando se fala no mapa do Brasil, e a própria Comissão Nacional de Cartografia (Concar) informa em seu site que o país tem pouco mais que 1% do seu território mapeado na escala 1:25.000. No entanto, talvez o melhor termo fosse “caos cartográfico”, já que faltam dados atualizados e unificados sobre a produção de base no país. A pergunta que se faz é: onde estão os mapas?

Não há dúvida que muito mais do que 1% do país está mapeado em escala igual ou melhor do que 1:25.000. Estados, municípios e grandes empresas privadas têm feito, nos últimos anos, um grande esforço para mapear regiões e tocar seus projetos, mesmo que essa produção não seja padronizada e, na maioria das vezes, não seja feita a divulgação sobre a realização e a disponibilidade das bases cartográficas. As próprias empresas da área de geoprocessamento têm em seus acervos mapas vetoriais e imagens raster de várias porções do Brasil, com a possibilidade de atualização de mapas pré-existentes a um custo bem mais baixo do que começar tudo do zero.

Para Adriano Barreto Huguet, diretor da empresa HGT, a solução para o mapeamento do Brasil é “a obtenção e utilização em massa de cartografia básica de precisão constantemente atualizada, servindo como referência e base única para mapeamentos e investimentos sobre nosso território”. Segundo Antonio Cobo Neto, diretor da empresa Base Aerofotogrametria, “com aproximadamente 90 milhões de reais anuais poderíamos mapear o Brasil em menos de 10 anos, além de gerar e manter a cultura de atualização cartográfica”.

Como o Brasil tem realidades muito distintas, as tecnologias também podem variar ao longo do território. A Floresta Amazônica, por exemplo, não precisa de um nível de detalhamento igual ao mapeamento da Avenida Paulista. A forma de executar a coleta de dados também é completamente diferente nos dois casos. Veja a seguir algumas das tecnologias disponíveis para a produção de base cartográfica em larga escala.

Aerolevantamento

Essa é a forma mais tradicional de produção de base cartográfica, através do sobrevôo de uma grande área e posterior restituição em escritório. As aeronaves podem variar entre aviões, helicópteros, ultra-leves e balões, e até mesmo veículos não transportados já vêm sendo testados nessa tarefa.

Aerolevantamento

Nos Estados Unidos, essa tecnologia é usada pela iniciativa privada para mapear 20% do território a cada ano, sendo que a cada cinco anos todo o país está atualizado. Assim, parte da produção ociosa das empresas é aproveitada para o projeto de atualização cartográfica. Segundo Adriano Hughet, “a HGT trabalha atualmente com apenas 8% de sua capacidade instalada. A fim de resolver esse problema temos trabalhado junto a empresas de aerolevantamento e órgãos públicos de geociências no sentido de validar e executar grande volume de mapeamentos sistemáticos de precisão”.

A diferença tecnológica fica por conta do sensor embarcado na aeronave, que pode ser analógico, digital, radar ou laser. Os sensores analógicos e digitais são passivos, ou seja, captam a radiação do espectro eletromagnético e as registram em filmes fotográficos ou matrizes de pixels. Já os sensores radar e laser são ativos, pois emitem uma espécie de radiação e registram a informação que interage com a superfície e volta para o aparelho de coleta de dados.

Sensores analógicos e digitais podem ser usados em áreas urbanas e rurais, com nível de detalhamento que pode chegar a poucos centímetros. Já o radar é indicado para locais como a Floresta Amazônica, por exemplo, pois tem a capacidade de mapear a superfície mesmo com grande quantidade de nuvens e cobertura vegetal. O laser, que faz um escaneamento de uma área, cria “nuvens” tridimensionais de pontos, sendo ideal para áreas acidentadas ou no interior de cidades.

Segundo Wagner Pacífico, diretor da empresa Multispectral, “imagens aéreas periódicas, de acordo com o índice de desatualização de cada região, combinadas com levantamento de campo especializado, deve ser a melhor solução para atualizar ruas de cidades”. Já para Renato Asinelli Filho, diretor de aerolevantamentos da empresa Engefoto, “não se pode adotar uma solução técnica única para o mapeamento de todo o nosso território. Há de se levar em consideração as características de cada região, avaliando fatores como o tipo de ocupação, intensidade da atividade econômica e climatologia. Para a elaboração de produtos em escalas 1:25.000 ou maiores, as técnicas de aerolevantamentos são as que resultariam na melhor relação custo benefício. Para escalas menores as imagens orbitais apresentariam, em tese, maiores vantagens”.

Sensores Orbitais

Com a resolução espacial e a precisão no posicionamento cada vez melhores, os satélites de Observação da Terra passam a ser vistos com maior interesse, não só para aplicações ambientais ou de agronegócio, mas também para a produção de cartografia. A resolução espacial, que é o nível de detalhamento em solo, já rompeu a barreira do meio-metro por pixel e deve ser ainda melhor com os próximos lançamentos de satélites. A precisão, por outro lado, refere-se à qualidade da coordenada geográfica apresentada na imagem, que pode chegar a poucos metros mesmo sem pontos de controle em solo.

Imagem em alta resolução

Assim como os sensores aerotransportados, os satélites também carregam equipamentos de coleta de dados que podem ser ativos ou passivos. Os passivos recebem o espectro eletromagnético, dividido em bandas, e registram as informações em matrizes de pixels. Já os sensores ativos, como por exemplo o radar, enviam a radiação em direção à Terra e registram os dados provenientes da interação com a superfície. Os dados dos satélites de Observação da Terra são baixados por estações de recepção em solo, quando os mesmos passam sobre elas, e então enviados para os escritórios de processamento e distribuição de imagens.

Para João Moreira Neto, diretor da empresa Orbisat, a geração e atualização de mapas topográficos no Brasil poderia ser feita através de “mapeamento por radar aerotransportado para levantar os modelos digitais de terreno e de superfície, além das ortoimagens em bandas distintas, complementando com a reambulação para levantamento da toponímia e simbologia. A complementação seria feita com imagens óticas satelitais para as regiões rurais e florestais, com resolução de 5 metros para a região norte e 2,5 metros para a região sul. Todas as imagens satelitais teriam um ortorretifição utilizando a ortoimagem radar para a busca de pontos de controle e o modelo digital de superfície para a projeção no sistema cartográfico, com adição de objetos na base de dados já formada pelo radar”.

Neogeografia

Apesar de ser um conceito muito recente e ainda causar calafrios nos cartógrafos mais tradicionais, o termo “neogeografia” ganhou corpo na comunidade internacional. A Web 2.0 e o Google Earth criaram uma onda de colaboração e entusiasmo na área geoespacial, com usuários leigos produzindo informações e conteúdos georreferenciados. Esforços como o OpenStreetMap e a Wikimapia têm o ambicioso projeto de “descrever o mundo” contando com a ajuda da comunidade global.

Ainda há muito o que avançar nessa área. A produção de metadados – informações detalhadas sobre os dados cartográficos – e o controle de qualidade ainda estão longe de serem confiáveis, porém, assim como a Wikipedia é constantemente atualizada e corrigida pela comunidade, a GeoWeb cria um processo vivo de eterna produção/atualização/correção de conteúdo geográfico.

Qual o mapa que o Brasil precisa?

Este foi o tema de um debate que aconteceu no primeiro dia do GEO Summit Latin America – Congresso e Feira Internacional de Geoinformação, realizado em São Paulo neste ano. Representantes do IBGE, Incra, Inpe, governo federal e iniciativa privada estiveram juntos no principal auditório do congresso, em horário nobre, para discutir qual é o tipo de cartografia que o nosso país realmente precisa.

Moderado por Emerson Zanon Granemann, diretor e publisher da MundoGEO, o debate levantou questões espinhosas sobre os planos para organizar o mapeamento no Brasil, a necessidade ou não de cartografia sistemática convencional e, principalmente, a implantação da INDE. Não se chegou a um consenso sobre a questão, mas não houve dúvida quanto à necessidade e os benefícios de base cartográfica de qualidade, atualizada e amplamente acessível para o avanço da nação.

Sobre esse assunto, João Moreira Neto afirma que “poderíamos dividir o Brasil em duas partes: a região norte e a sul. A região norte seria mapeada na escala 1:50.000 e a sul na 1:25.000. Em termos de modelo de terreno, deveríamos ter uma precisão de altura de 2,5 metros para a região sul.Para as regiões urbanas deveríamos ter a escala de 1:5.000”.

A idéia de que a produção de base cartográfica é uma atribuição exclusiva do governo já é ultrapassada e totalmente incompatível com o momento e com o avanço tecnológico atual. O ritmo da máquina do Estado é diferente da iniciativa privada, que precisa de agilidade para cumprir prazos e realizar projetos. O papel do governo é criar o ambiente propício para o crescimento econômico, e conseqüentemente para o aumento de projetos e de empregos.

Segundo Wagner Pacífico, “os órgãos do governo estão querendo criar projetos de mapeamento quando já existe todo um mercado de empresas que atendem às demandas nacionais, sejam públicas ou privadas. Portanto, esses órgãos precisam concentrar seus esforços em facilitar a vida desse mercado, e não em criar um mercado paralelo”.

Nesse mesmo sentido, Renato Asinelli Filho afirma que “nos quesitos detectar demandas e planejamento, a Concar desempenha bem. Ações como a consolidação da Mapoteca Nacional Digital e a instituição de INDE são evidências desta assertiva. Por outro lado, penso que deveríamos avançar mais rapidamente no que se refere ao estabelecimento de especificações e validação de serviços. Acredito fortemente que tal estratégia ampliaria em muito a capacidade produtiva do parque nacional e que os produtos finais teriam um menor custo para a nação”.

Já para Adriano Hughet, “o momento atual do Brasil exige que sejamos ambiciosos, com a criação e utilização de bases únicas. O Governo Federal deveria ser responsável por manter uma cartografia básica (ortofotos e modelos altimétricos), constantemente atualizada em escala 1:25.000, sobre todo o seu território, para uso dos governos estaduais. Estes deveriam ser responsáveis pela atualização constante na escala 1:10.000 para uso dos governos municipais, os quais deveriam ser responsáveis por escalas melhores que 1:5.000 para uso próprio, de investidores e pequenos empresários”.

Parcerias público-privadas, como a firmada recentemente entre o governo do Rio Grande do Sul e a empresa Base para produção de cartografia de todo o Estado, são exemplos de como o aproveitamento da capacidade ociosa pode ser aliado com a necessidade de mapas para a atualização cartográfica de uma grande região.

Com a implementação da INDE, o poder público dá um grande passo para a padronização e para o compartilhamento de suas informações geoespaciais e, mais importante, define um norte para a iniciativa privada seguir, já que mostra como os dados devem ser coletados, modelados, armazenados e distribuídos, gerando economia e otimizando os recursos. A sociedade agradece.

Veja a íntegra das entrevistas com Wagner Pacífico, Renato Asinelli Filho, Antonio Cobbo Neto, João Moreira Neto e Adriano Hughet; e o texto do decreto que instituiu a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais.

Por Eduardo Freitas Oliveira e Gustavo Ribeiro