Depois de ter passado um mês como pesquisador visitante na Universidade do Maine e participar do GIScience 2000, o colunista Gilberto Câmara traz uma visão brasileira do tecnicismo norte-americano.

Talvez não tenha havido, na história da humanidade, civilização com maior crença nos poderes da tecnologia que a atual geração de americanos. Os avanços tecnológicos dos últimos 20 anos elevaram os Estados Unidos a uma situação inédita de hegemonia mundial, tanto no aspecto econômico quanto no poder bélico. Em conseqüência, os americanos (inclusive parte de sua inteligentzia) mostram uma capacidade até certo ponto surpreendente de acreditar nos poderes mágicos da tecnologia. Para um observador externo é sempre dificil separar a realidade concreta do "misticismo tecnológico", pois a mesma sociedade que produziu a Internet também acredita que a Yahoo (sem nunca ter dado lucro) vale mais na bolsa que todas as fábricas da Ford.

Essas considerações vêm à mente deste articulista depois de um mês como pesquisador visitante num dos principais centros de pesquisa em Geotecnologias dos EUA: o departamento de "Spatial Information Science and Engineering" da Universidade do Maine (www.spatial.maine.edu) e depois de participar da maior conferência acadêmica já realizada sobre o tema de ciência da informação espacial, a "GIScience 2000" (www.giscience.org). Nessa conferência, além de trabalhos dos principais centros acadêmicos na área (inclusive vários brasileiros), tivemos a presença da indústria, com a participação da ESRI, ORACLE, OpenGIS, ERDAS, SRI e Microsoft. Dada a variedade e a diversidade das contribuições, nem sempre é fácil destacar que trabalhos e perspectivas são os mais relevantes para o futuro do GIS. Em todo o caso, aqui vai uma tentativa.

Primeiro, a tecnologia enquanto mágica. Numa palestra muito concorrida, Stephen Smyth, da Microsoft Research, delineou sua visão de futuro sobre as Geotecnologias: imagine um mundo onde todos os componentes relevantes (pessoas e coisas) possuam uma identidade se quiserem, e possam tornar sua localização acessível a qualquer momento. Algo como um aparelho de GPS com um código de identificação pessoal acoplado a seu relógio de pulso. Neste cenário, você poderá estar num corredor de supermercado e ouvir de um pacote de cereais a excitante pergunta: "Sr. X, não vais me comprar esta semana? Não estás esquecendo nada?" (para uma descrição mais detalhada da visão da Microsoft, veja-se www.w3.org/Mobile/posdep/microsoft.html).

Exageros à parte, o que há por trás desta visão quase messiânica é um fato concreto: com a evolução dos dispositivos de conexão sem fio ("wireless"), o grande mercado das Geotecnologias não será mais o de produção de mapas, mas o advento dos serviços baseados em localizações. A idéia de "location-based services" engloba desde atendimentos de emergência em estradas até monitoramento de filhos adolescentes, passando por comunicação eficiente entre equipes de campo. Enquanto David Maguire, da ESRI (www.esri.com), afirmou que o mercado atual de GIS contabiliza 2 milhões de usuários, Cliff Kottman, do consórcio OpenGIS (www.opengis.org), estimou que o mercado para serviços remotos, baseados em posicionamento, chegará a pelo menos 10 vezes o mercado atual de GIS em poucos anos. Minha previsão pessoal é que este mercado é real, mas talvez quem venha a ocupá-lo não sejam os fabricantes de software "tradicionais" de GIS, mas um novo tipo de indústria, capaz de unir conhecimento na área de telecomunicações e GPS com a inevitável demanda por fornecimento de dados inerente a um ambiente móvel. Para ter uma idéia dos novos tipos de empresa que poderão surgir, veja www.mobilegis.com.

Por enquanto, quem saiu na frente com uma proposta inovadora foi a SRI International. Esse instituto de pesquisa com vocação para aplicações comerciais está propondo nada mais nada menos que a criação de um novo domínio de alto nível na Internet (".geo"), que ficaria no mesmo nível dos ".com" e ".org". A idéia é criar uma árvore única de busca para todos os endereços no globo, que seria subdivida por países ou regiões, e que isto incentivaria a criação de serviços públicos e comerciais competitivos, mas compatíveis. Imagine-se, por exemplo, a existência de um subdomínio "brazil.geo", estabelecido num servidor em nosso país. Uma empresa de serviços XX poderia criar um subdomínio xx.brazil.geo, acessível a partir do domínio de maior nível, no qual forneça serviços associados a dados Georeferenciados. A proposta da criação do domínio ".geo" foi submetida ao ICANN (comitê que coordena a Internet mundial), e a resposta sai até o final do ano. Para maiores detalhes, navege até www.dotgeo.org.

E a ciência, como está respondendo a todos esses desafios? Com grande empenho e muita pesquisa. Como se pode imaginar, uma das palavras menos ouvidas nas palestras da conferência "GIScience 2000" foi o termo "mapa" ("cartografia" eu não ouvi uma única vez). Os temas que dominaram as palestras foram: ontologia, incerteza e modelos espaço-temporais. Traduzindo os jargões: o termo ontologia vem do grego e diz respeito aos problemas de representar o conhecimento geográfico no computador. Não se trata mais de escolher entre vetores e matrizes, mas de buscar responder a perguntas como: "se o meu banco de dados geográfico fala em rios primários, rios secundários e rios terciários e o seu GIS fala em rios, riachos e córregos, como estabeler uma correspendência entre nossos ambientes?". Em lugar de simples conversão sintática de arquivos com geometrias, estamos falando de equivalência semântica de conceitos. A idéia de GIS dirigidos por ontologias é um das mais interessantes desafios científicos dos anos recentes, e um dos pioneiros no tema é nosso Frederico Fonseca, colunista da InfoGeo (ver página 18). Vejam o site ncgia.spatial.maine.edu/~fred para ler trabalhos recentes sobre o tema.

Com relação ao tema incerteza, já o venho abordando em várias colunas recentes da InfoGeo (como na revista 15). Apenas tenho espaço nesta coluna para afirmar que a maior parte dos trabalhos da conferência baseava-se no uso do paradigma de estatística espacial para representação e propagação de incertezas.

Quanto aos modelos espaço-temporais, trata-se de um desafio substancial. Afinal, os fenômenos acontecem não apenas em algum lugar, mas também num determinado instante. O grande desafio aqui é nos aproximarmos cada vez mais da realidade dinâmica que vivenciamos, e nos libertar da visão estática dos mapas dos GIS de hoje. Nossa percepção da realidade é inexata e nossas ações estão continuamente modificando o mundo à nossa volta. Fenômenos como o desmatamento da Amazônia não podem ser reduzidos apenas a uma série temporal de imagens LANDSAT, sem uma conexão com as forças motrizes que o produziram.

Para dar ao leitor uma pequena visão de resultados de pesquisa na área de modelos espaço-temporais, veja-se o "spatial query by sketch" (consulta espacial por rascunho), projeto inovador desenvolvido na Universidade do Maine (ncgia.spatial.maine.edu/~abl/SQBS). A idéia é simular, através de um esboço, a maneira como indicamos endereços ("siga pela avenida, dobre na 3ª rua à direita, e ache a casa no meio do quarteirão"). Um exemplo de um esboço está mostrado na figura 1, cuja tradução topológica (figura 2) poderá nos permitir o casamento com um banco de dados com as localizações exatas dos objetos geográficos. Imaginem um engenheiro de campo com um computador de mão, esboçando as feições de interesse e recebendo de sua central uma descrição detalhada de todos os elementos que selecionou.

Figura 1 – Consulta espacial baseada em rascunho ("spatial query by-sketch")

Figura 2 – Modelo topológico equivalente à figura 1

Em resumo, as perspectivas científicas e tecnológicas na área de informação espacial são extremamente estimulantes e desafiadoras. Terá sucesso nesses novos paradigmas quem souber (e puder) incluir, em sua visão do mundo geográfico, uma abordagem baseada na localização e na dinâmica das ações humanas. Em outras palavras, quem pensa que a Geoinformação se reduz a mapas terá muitas surpresas nos próximos anos.

Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto)