Será que, do ponto de vista da geoinformação, estamos virando uma Argentina ou uma Rússia de hoje, com o colapso completo das instituições públicas do setor?, pergunta Gilberto Câmara
Na Paris do século XVI, um dos grandes prazeres das festividades do dia de São João (24 de junho) consistia em queimar vivos uma ou duas dúzias de gatos. A população se reunia, música solene era tocada e, sob uma espécie de forca, erguia-se uma pira enorme. Em seguida, um saco contendo os gatos era pendurado na forca. O saco começava a queimar, os gatos caíam na pira e queimavam até a morte, enquanto a multidão se regozijava em meio a enorme algazarra. Geralmente, o rei e a rainha compareciam e concedia-se ao rei a honra de acender a pira.
Esta história foi extraída do livro O processo civilizador, clássico da sociologia, onde Norbert Elias apresenta discussões saborosas sobre a evolução dos costumes; ele nos mostra como, a partir de aspectos aparentemente simples como a evolução do uso do garfo à mesa, pode-se traçar um histórico da civilização.
O que há de tão singular na história dos gatos de Paris? Trata-se de um momento fundamental na evolução da humanidade, quando a agressividade e a violência medievais, decorrentes de uma sociedade desagregada, estão em processo de ser substituídas por um Estado organizado. Como se sabe, o grande avanço civilizador na formação do Estado moderno decorre do fato da sociedade transferir para um poder centralizado alguns direitos originalmente individuais: a força, a lei, os impostos e a gestão do território. A cerimônia de queima dos gatos, repugnante à consciência moderna, é representativa do processo de ritualização da violência, no qual a catarse organizada e o respeito às instituições ajudam a controlar nossos instintos.
Na história da humanidade, as nações que alcançaram mais alto grau de civilização são aquelas em que o Estado está organizado de maneira adequada para coletar impostos e distribuir dividendos, produzir leis justas e garantir segurança a seus cidadãos. Infelizmente, nos anos recentes, temos vários exemplos de colapso de sociedades organizadas, como na Argentina. Embora os argentinos possuam elevado grau de educação e forte consciência cívica, suas instituições públicas atravessam séria crise, com redução do poder regulador do Estado e conseqüente caos social. Esperamos que esta situação seja passageira e que nossos amigos argentinos em breve recomponham sua bela pátria.
Aqui, o leitor pode perguntar: o que os gatos de Paris e a Argentina tem a ver com geoinformação? Ora, um dos monopólios cruciais dos Estados modernos é justamente o direito soberano de gerir seu território, que inclui o poder concedente do uso do solo, subsolo e serviços públicos, e o mandato para ordenar a ocupação do espaço. Não preciso repetir neste espaço o quanto a tecnologia de geoinformação é fundamental para um país se quer desenvolvido e o quanto sua eficiente aplicação pelas instituições públicas é uma marca de governos eficientes.
Nas décadas de 80 e 90, o Brasil enfrentou uma enorme crise em seu setor público, com redução de orçamentos e de pessoal, com reflexos imediatos em sua capacidade de gestão do território. A privatização dos serviços públicos deixou várias cidades brasileiras sem elementos fundamentais para gerir seus espaços urbanos, uma vez que muitas bases de dados eram de propriedade das antigas estatais. Nos anos 90, quem investiu em levantamento de dados foram as empresas privadas, com destaque para o setor de telecomunicações, e como resultado, em muitos locais o setor privado possui melhores dados georeferenciados que as correspondentes instituições públicas.
Será que, do ponto de vista da geoinformação, estamos virando uma Argentina ou uma Rússia de hoje, com o colapso completo das instituições públicas do setor? Gostaria de argumentar que não, graças ao aparecimento de uma nova geração de gestores públicos. Esta nova geração aprendeu que a tecnologia de geoprocessamento não é hardware nem software, mas sim a capacidade de gestão da informação. Não se trata de uma tecnologia que pode ser comprada no mercado, mas de uma competência que tem de ser conquistada na prática diária. Felizmente, os exemplos de boa "geogovernança" vêm aumentando muito nos últimos anos, e aqui poderemos apenas citar alguns exemplos.
Um dos melhores paradigmas é o Zoneamento de Risco Climático para Agricultura, conduzido por Luiz Rosetti, do Ministério da Agricultura, e cuja equipe técnica é liderada por Eduardo Assad (EMBRAPA). O objetivo é avaliar o impacto do clima em diferentes culturas, para minimizar as perdas na produção agrícola. Como resultado, são produzidas informações detalhadas por município, cultura, tipo de solo, tipo de grão e época de plantio, utilizadas rotineiramente para concessão de seguro agrícola. Estima-se que o projeto permitiu ao Brasil economizar mais de 150 milhões de reais por ano nos últimos 5 anos. A montagem da rede nacional de agrometeorologia, composta por 26 instituições públicas permitiu colocar na Internet uma base de dados inédita no País, disponível em www.agricultura.gov.br. Trata-se de exemplar cumprimento do dispositivo constitucional sobre o amplo acesso a dados públicos, tantas vezes desrespeitado pelos que usam bens coletivos como instrumentos de barganha e de poder.
Outro esforço fundamental é o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil (ZEE), que é a base para todo o ordenamento territorial em larga escala do País. Em dois anos, a equipe do Ministério do Meio Ambiente, liderada por Sérgio Braga, Luiz Miranda, Kátia Matteo e Estevam del Prete organizou um consórcio multiinstitucional, composto pelo MMA, IBGE, CPRM, EMBRAPA e INPE, que viabilizará a execução do ZEE em escala nacional. Este consórcio foi oficializado por decreto presidencial no final de 2001 e em fevereiro próximo, entrará no ar o site www.zeebrasil.org.br, que conterá todos os estudos e levantamentos de interesse para a ordenação territorial de nosso território. No dizer de Sérgio Braga, do MMA, "Informação escondida é informação perdida. O verdadeiro poder consiste em usar a informação pública de forma qualificada".
Cumpre ainda registrar que, em algumas municipalidades, técnicos qualificados como Clodoveu Davis e Karla Borges (Belo Horizonte), Cristina Xavier (Salvador) e Flávio Yuaça (Goiânia) estão conseguindo produzir pequenas revoluções, ao mostrar como é possível a gestão pública eficiente da geoinformação. A ênfase comum é a redução de custos no levantamento e acesso aos geodados e a ampla disseminação dos bancos de dados georeferenciados.
Em resumo, a vitalidade, dedicação e competência desta nova geração de técnicos e gestores públicos em geoinformação, e sua luta incansável pela ampla disseminação dos dados para a sociedade, são notícias muito alvissareiras para este início de década. Enquanto escrevo esta crônica, contemplo as maravilhosas falésias da Praia das Fontes, em Beberibe, Ceará, descortinando-se em volta de meu laptop. Que melhor maneira de desejar Feliz Ano Novo aos leitores da infoGEO, senão agradecendo a todos aqueles que insistem em acreditar no papel do Estado brasileiro como gestor desta maravilhosa terra?
Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING www.dpi.inpe.br/gilberto