Nos EUA, as empresas comerciais serão os principais fornecedores de imagens de satélite para o governo
Um dos ensaios mais importantes para entendermos a evolução da sociedade moderna é o estudo de Max Weber, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Nele, o autor, sociólogo alemão, apresenta uma explicação sui-generis para um fato que sempre fascinou os historiadores: Por que alguns países evoluem mais rápido que outros? Porque o capitalismo floresceu e se desenvolveu muito mais fortemente em países como Inglaterra e Estados Unidos do que no Brasil e na Itália? Porque, apesar de todo o ouro de suas colônias do Novo Mundo, a outrora poderosa Espanha foi largamente superada pela pequena Holanda em riqueza e qualidade de vida? Uma parte essencial da resposta, segundo Weber, está relacionada com os condicionantes culturais impostos pela religião. Nos países católicos tradicionais (como Espanha, Itália e Brasil), por muitos séculos só quem concedia empréstimos com juros era a Igreja; de vez em quando e sempre por tempo limitado, toleravam-se as operações bancárias dos judeus. Nesses países, enriquecer era (e ainda não deixou de ser) um sinônimo de pecado; é impossível ficar rico sem um pacto com o demônio. Por contraste, nos países da Reforma Protestante (como Holanda e Inglaterra), firmou-se a crença luterana que cada um será julgado pelo conjunto de seus atos no dia do Juízo Final. Acabou-se a chance de absolvição pelo padre; cada fiel se relaciona diretamente com Deus. Nesses países, quebrou-se o monopólio da Igreja Católica sobre o empréstimo com juros compostos. Enriquecer deixou de ser pecado e virou uma virtude, desde que o rico pratique o bem com seu dinheiro. Ao permitir a disponibilidade de crédito e a crença na virtude dos ricos, a ética protestante foi essencial para o desenvolvimento da sociedade capitalista.
O interessante no ensaio de Max Weber é que nos permite entender situações extremamente paradoxais, se vistas pelos olhos deste cínico profissional que é o brasileiro, com nossa mistura incrível de misticismo português, alegria de viver yorubá e liberalidade sexual indígena. Como entender que o presidente George W. Bush pede a todo tempo a proteção de Deus para atacar Bin Laden e Saddam Hussein? Porque os ricos americanos, como Henry Ford e Bill Gates, doam grande parte de sua fortuna para fundações beneméritas, ao contrário dos nossos? Porque será que os americanos adoram filmes de julgamento? Após ler Max Weber, nosso entendimento dos gringos nunca será mais o mesmo.
Todo este contexto veio-me à mente nestes últimos meses, ao tomar conhecimento da nova política americana para o setor de sensoriamento remoto. Para começar, lá em Washington este assunto é levado muito a sério; quem decide sobre isto é o próprio presidente. Em abril de 2003, os EUA anunciaram esta nova política, num documento básico disponível em www.whitehouse.gov/ostp (Office for Science and Technology of the President). E qual a nova estratégia? Durante as últimas décadas, os americanos tiveram três políticas distintas em sensoriamento remoto: a militar, com a contratação de satélites-espiões; a científica, com programas de cooperação internacional como o LandSat; e a comercial, com satélites de alta resolução como Ikonos e QuickBird. A nova estratégia unifica estes setores; a partir de agora, as empresas comerciais de sensoriamento remoto serão os principais fornecedores de imagens de satélite para o governo americano, para todos os fins. Quanto a programas de cooperação internacional como o LandSat, o documento é cristalino: "Em geral, o governo dos EUA não irá participar de programas de cooperação internacional em sensoriamento remoto se tais parcerias vierem a competir com o setor privado".
As implicações deste ato são enormes. O programa LandSat irá ser repassado para uma empresa privada, com o governo comprando as imagens que lhe interessam para uso interno. A próxima geração de satélites de alta resolução, com 30 cm de visada no solo, poderá atender a boa parte das aplicações militares. A política reforça enormemente o papel de empresas como Space Imaging e Digital Globe e funciona na prática como um enorme subsídio público, ao usar o poder de compra do estado para financiar sua indústria. Só tem um pequeno problema. Pelas convenções das Nações Unidas sobre o uso do espaço, o acesso aos dados de sensoriamento remoto deveria ser livre e não-discriminatório. Como evitar que Bin Laden compre imagens de Washington? Nada que o atual unilateralismo americano não resolva facilmente. Num completo rompimento com as convenções internacionais, diz a nova política: "O governo dos EUA tem o direito de condicionar a operação dos sistemas de sensoriamento remoto comerciais americanos, tomando medidas apropriadas para proteger os interesses de segurança e de política externa dos EUA". Simples, não? Como se escrito para Deus ler. Sorry, United Nations. Como diz um grande amigo meu, "só existe uma regra de ouro: quem tem ouro faz as regras".
As repercussões desta política são enormes. No caso brasileiro, ela nos dá duas alternativas: ou o Brasil desenvolve um programa de sensoriamento remoto consistente e de qualidade, ou passará a depender de empresas comerciais controladas pelo governo americano para monitorar seu enorme território. Esta não é uma escolha técnica, mas sim uma decisão política coletiva de extremo significado para nossa soberania. Será preciso vencer o desafio de não apenas construir satélites como o sino-brasileiro CBERS, mas fazê-lo com tal qualidade que permita atender a nossos principais objetivos estratégicos. O ganho político de uma estratégia ousada na política espacial brasileira será o reconhecimento das futuras gerações.
Gilberto Câmara diretor do Centro de Observação da Terra (OBT), é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto).