Qual seria um conjunto mínimo de dados capaz de suportar as primeiras aplicações de um GIS?

Diversas vezes, ao longo dos últimos anos, me perguntaram qual seria um conjunto mínimo de dados geográficos com os quais seria possível construir um GIS. A pergunta, na maioria das vezes, vinha de alguém meio chocado com a variedade e a amplitude dos dados geográficos com os quais estamos acostumados a lidar, e que têm grande impacto visual sobre quem nunca teve contato com a tecnologia. Há casos em que a pergunta é colocada com um certo grau de desconfiança, como quem não considera possível que seja necessário ter tanta coisa para que se possa trabalhar.

Bem, se por um lado é certo que um GIS não funciona em um vácuo, ou seja, na ausência total de dados, também é certo dizer que não é sempre que as aplicações de GIS necessitam de dados extremamente detalhados, divididos em centenas de classes de objetos. Se há quem queira ter o banco de dados mais completo, para atender às necessidades de diversas aplicações simultaneamente, há quem prefira construir algo de forma incremental, pensando em poucas aplicações prioritárias.

O tema fica mais interessante quando se pensa em algo que possa se constituir em uma infra-estrutura de informação geográfica. Em países desenvolvidos, órgãos governamentais produzem sistematicamente e tornam disponíveis amplamente alguns dados que podem ser decisivos para a constituição de um GIS. Por exemplo, nos Estados Unidos são famosos os arquivos TIGER/Line, uma grande rede de eixos de logradouros dotada de faixas de numeração de endereços que cobre todo o país. O órgão que gera esses arquivos é o U.S. Census Bureau, que os usa principalmente em seu esforço censitário decenal, e teve a clarividência de não deixá-los restritos ao uso interno. Em torno desses arquivos, formou-se toda uma indústria no setor privado, dedicada a melhorar a sua qualidade, a torná-los mais fáceis de usar, ou a desenvolver produtos úteis em torno deles. Já se vão sete anos desde uma coluna passada em que reportei a disponibilidade de um receptor GPS, que era vendido junto com um software de navegação rodoviária com cobertura de todo o país, por US$ 150. Vi, também nos Estados Unidos, uma prefeitura distribuindo gratuitamente dados geográficos municipais prontos para uso, com o argumento de que, quem quer que fosse o interessado nesses dados, estaria trabalhando na economia local, e portanto o simples uso dos dados disponíveis gratuitamente ajudaria a compensar o investimento feito neles.

Em nosso país, por outro lado, vivemos em uma aparente pobreza de dados. Digo aparente porque esforços recentes de mapeamento urbano por parte das recém-privatizadas ou recém-criadas empresas concessionárias de serviços públicos, muitas vezes com redundância de esforços, produziram muitos dados digitais urbanos – que, na maioria dos casos, estão trancados a sete chaves nessas organizações. Faltou, no processo de privatização, quem pensasse em preservar para uso público os dados geográficos urbanos já disponíveis nessas empresas, e em promover a cooperação entre os concorrentes para sua atualização e expansão. Parece que o país rico é aqui.

Mas, deixando de lado a digressão, voltemos para o tema deste artigo. Qual seria um conjunto mínimo de dados capaz de suportar as primeiras aplicações de um GIS? Considerando o universo das aplicações urbanas, sobre as quais tenho maior conhecimento, esse conjunto mínimo teria três grupos básicos: arruamento, endereçamento e informações demográfico-censitárias. Desses três grupos pode-se considerar a expansão para diversos outros, sem impedir o desenvolvimento de aplicações tecnicamente importantes e de boa visibilidade política. Um quarto elemento nesse banco de dados geográfico urbano seria um bom conjunto de imagens de alta resolução. Vejamos cada grupo separadamente.

O arruamento é necessário para que seja possível perceber a organização espacial do tecido urbano, o que nos ajuda a perceber como os eventos e fenômenos se distribuem, onde estão as principais vias, onde fica o centro e as áreas economicamente mais ativas. Pode ser desenvolvido digitalizando-se as quadras, ou os eixos de logradouro, ou mesmo ambos. Uma alternativa interessante é digitalizar as quadras, e delas derivar uma rede de eixos de logradouro posteriormente.

Com o endereçamento podemos espacializar rapidamente bancos de dados convencionais porventura existentes, incluindo cadastros de atividades econômicas, cadastros sociais, e qualquer tipo de listagem de endereços, como, por exemplo, uma lista de equipamentos urbanos (escolas, centros de saúde, hospitais, etc.). O endereço, como digo freqüentemente, é a forma que o cidadão comum tem de se localizar no espaço urbano. É o que devemos usar como chave de acesso se quisermos incluir ao máximo as pessoas nos nossos sistemas. Pode-se criar um conjunto de pontos, cada qual associado a um endereço individual, ou criar faixas de numeração associadas aos eixos de vias, no estilo TIGER/Line, se a numeração for regular. Fazem também parte do sistema de endereçamento dados complementares, tais como limites de bairros e distritos, apelidos populares para logradouros, CEPs e pontos de referência, se disponíveis. A partir do endereçamento pode-se implementar uma série de aplicações sociais, como o apoio a um programa de saúde da família, o mapeamento de ocorrências criminais, e o cadastramento escolar georreferenciado. Todas essas aplicações já foram aqui descritas ou mencionadas em colunas passadas.

Os dados demográfico-censitários são fundamentais para quem quer realizar análises e comparações baseadas na população. Como sabemos que a população não se distribui uniformemente pelo espaço urbano, a melhor aproximação de que dispomos é a divisão da cidade em setores censitários, cada qual contendo centenas de itens de informação sobre o grupo populacional que reside naquela área. Quanto mais coerência existe entre a divisão de setores censitários e a lógica de funcionamento da cidade, melhor. Os dados demográficos constituem um excelente denominador para aquelas aplicações que pretendem verificar a distribuição espacial ou a variação temporal de fenômenos sócioeconômicos.

Por fim, estão cada vez mais acessíveis as imagens de alta resolução. Com a concorrência estabelecida, mesmo que ainda em bases turbulentas, entre empresas de aerofotogrametria e fornecedores de imagens orbitais de alta resolução, quem se beneficia é o usuário. Os preços estão cada vez mais razoáveis, e prenuncia-se uma guerra no território dos serviços associados: ajustes de posicionamento, correção geométrica posicionamento, correção geométrica e radiométrica, comparação com imagens existentes. Imagens como essas são muito importantes, embora seja possível viver sem elas, porque permitem uma interação homem-máquina baseada mais fortemente em nossos processos de aquisição visual de conhecimento. Vendo uma imagem detalhada e colorida na tela, fica muito mais fácil para um usuário leigo aprender rapidamente uma série de detalhes sobre a região contida na imagem, algo como uma fotointerpretação intuitiva.

A partir desses elementos fundamentais, havendo disponibilidade de tempo, equipamento, pessoal e recursos financeiros, pode-se começar a cogitar expansões e complementações no banco de dados. Grande parte delas pode ser realizada dentro de casa, usando dados já disponíveis, porém não espacializados. O importante é perceber que, ao escolher alguma classe de informação para compor o banco de dados, deve-se ter plena consciência da necessidade de manutenção que se está assumindo. Se não for possível determinar se e como uma determinada informação será mantida atualizada, então não haverá justificativa plausível para adquiri-la e incorporá-la ao banco de dados, salvo no caso em que a informação vem pronta de um parceiro comprometido com a manutenção.

Enfim, cabe ainda uma observação. Este ponto de vista minimalista não se apóia apenas na redução de custos para geração dos dados; a racionalização do esforço de manutenção é também muito importante. Em ambos os casos existem grandes oportunidades para economia de esforços e de recursos aguardando aqueles que buscarem o caminho do entendimento e conseguirem estabelecer acordos para o compartilhamento do banco de dados. E o melhor compartilhamento é aquele que inclui toda a sociedade brasileira.

Clodoveu Davis
clodoveu.davis@terra.com.br
Engenheiro Civil, Doutor em Ciência da Computação
Pesquisador da Prodabel Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte
Professor da PUC-MG.