Tá na mão?
Os ajustes e desajustes da tecnologia atual
Minha filha considera a Internet como uma enciclopédia. Qualquer coisa que precisa saber ela me diz e vamos procurar na Internet. Na realidade, às vezes é pior que isto: vamos procurar no Google. A tecnologia da computação vai se tornando cada vez mais pervasiva. O hábito de folhear encilopédias está ficando cada vez mais raro. Eu sempre gostei delas. Me lembro da enciclopédia Trópico: havia alguns artigos lá que eu sempre ia ler. Gostava dos que abordavam outras civilizações, reis, e coisas assim. Será que isto pode se comparar a bookmarks em seu programa de navegar na Internet?
Continuando na onda de recordações, lembro me de outra coisa que gostava de fazer com meu irmão. Nós brincavamos de achar cidades nos mapas. Cada um pegava o mapa e escolhia a cidade mais desconhecida, com o nome mais estranho que pudesse encontrar. Depois assávamos o mapa para o outro que tinha um determinado tempo para localizá-la. E osmapas de papel? Será que eles também estão ameaçados pela tecnologia?
Em 2003, nos Estados Unidos, 550 mil pessoas compraram carros equipados com GPS. E não são jipes ou carros especiais para se dirigir no mato ou em lugares remotos. São veículos comuns em sua maioria. Eu tenho usado mapas da Internet para viajar, mas os imprimo e levo comigo. Geralmente imprimo mapas de mais de um lugar, do Mapquest (www.mapquest.com) ou o Yahoo maps (maps.yahoo.com), já que os resultados costumam variar um pouco. E sempre levo comigo também mapas tradicionais em papel.
A maioria das pessoas que trabalham com o Geo gostam de mapas impressos. Existe a beleza do mapa, o trabalho do artista que o criou. Existe também a facilidade de se manipular o papel sem se preocupar com botões de mouse, menus e outras coisas chatas que aparecem na nossa frente quando queremos fazer algo. Quando a gente incorpora a tecnologia ela desaparece, ou seja, a gente não a vê mais.
Certa vez, em um congresso de Geo, Gilberto Câmara falou sobre programas de Geo, mais especificamente do Spring. Ele lembrou aos presentes que existiam computadores antes do Windows da Microsoft, da tela preta do DOS ou a verde do IBM e ainda abordou as dificuldades da computação gráfica antes do advento dos computadores potentes e interfaces gráficas. Na época muita gente entendeu o recado e riu. Hoje, esta história vai ficando cada vez mais esquisita. O que quero dizer é que microcomputador em casa (ou no trabalho) já não é mais novidade: está ficando comum e a gente vai absorvendo toda essa tecnologia. Acabamos esquecendo da geração anterior a ela. Os usuários mais recentes não se lembram e muitas vezes nem acreditam como a tecnologia anterior podia ser tão burra. Então procurar no Google para a nova geração não é uma coisa complicada, mas é como as coisas são.
Para entender a problemática dos sistemas de informação como tecnologia em meu trabalho de pesquisa, tenho usado o de dois filósofos alemães: Heidegger e Gadamer. Eles estudaram a hermenêutica, a arte de interpretação de textos, e estenderam esta linha para tentar compreender como entendemos as coisas. Heidegger usa dois termos importantes que nos ajudam a entender a tecnologia: o presente-aoalcançe-da-mão e pronto-para-uso. Estas são traduções de termos do alemão, mas a idéia é que a coisa está sendo usada ou está sendo observada. Para explicar estes termos Heidegger usa um exemplo muito simples, o caso de alguém martelando um prego em um pedaço de madeira. Enquanto vamos descrevendo este exemplo sugiro pensarmos no mapa de papel, uma tecnologia milenar e também nas novas maneiras de se exibir dados geográficos, como por exemplo em programas de geo e telas de aparelhos GPS.
Quando alguém está martelando algo, o foco de atenção é o prego, não o martelo. Isto parece ser um detalhe óbvio, mas é a grande sacada de Heidegger. O martelo está incorporado aos planos e ao comportamento de quem está usando-o. É como se fosse parte de seu corpo. Na verdade o martelo não é apenas o instrumento usado para martelar o prego, mas ao mesmo tempo é um instrumento para avaliar a localização e movimento do prego. A cada martelada o martelador sente o quanto o prego já penetrou na madeira, se ele está torto ou certo. Vejam vocês, isto acontece em um instante, com toda a força do movimento. Desta forma o martelo enquanto pronto-para-uso é ao mesmo tempo instrumental (para executar a tarefa de martelar) e perceptual (para sentir o que está acontecendo com o prego). Agora vem uma nova idéia e muito importante também. Se durante o ato de martelar alguma coisa sai errado, se o martelador martela o dedo ou erra o prego, então o que acontece é o que Heidegger chama de interrupção (breakdown). Agora o martelador passa a perceber o martelo. O martelo não é mais como uma extensão de seu braço. O martelo agora está presente-ao-alcançe-da-mão. O martelador passa a analisar o martelo, suas caracteristicas, para entender o que o levou à interrupção.
Aplicando esta filosofia aos mapas podemos ver que aí reside a força dos de papel. Eles podem ser usados de forma transparente. Uma pessoa que está usando um mapa de forma natural o tem como pronto-para-uso. A tecnologia de manipular folhas de papel não é complicada para nós. Todos os dados embutidos no mapa são lidos sem interrupção. Não precisamos pensar para usar um mapa de papel. A tecnologia de manipulação deste está bem na sua frente e o usuário não a vê. Não tem de apertar o menu "Arquivo", "procurar" e digitar algo para executar uma tarefa. O mapa de papel está pronto-para-uso. Já as novas tecnologias de mapas embutidas em programas de Geo e GPS ainda estão no estágio de presente-ao-alcançe-da-mão. Nós vemos a tecnologia que usamos para executar uma tarefa. Então, antes de pensar na tarefa em si, temos de pensar na tecnologia. Na medida em que estas tecnologias vão evoluindo e vamos ajustando-nos a elas (ou elas a nós), estas poderão passar ao estado pronto-para-uso, como é o caso da minha filha com o Google.
Frederico Fonseca
Doutor em Ciência da Informação Espacial pela Universidade do Maine.
Professor na Escola da Ciência da Informação e Tecnologia da Penn State University nos Estados Unidos
fredfonseca@ist.psu.edu