O novo diretor do INPE fala com exclusividade à InfoGEO

O cearense Gilberto Câmara assumiu a diretoria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em dezembro com a proposta de trazer benefícios do âmbito espacial para a sociedade aqui embaixo.

Ele acredita que o programa espacial brasileiro precisa olhar para a Terra e os dados devem estar amplamente disponíveis para promover o bem-estar da população brasileira.

“Meu sonho é um cenário em que cada cidadão interessado possa conhecer, ao toque de seus dedos, a situação imediata, diária, de sua cidade e de seu bairro”, disse à InfoGEO, “quando os dados públicos são disponíveis de forma aberta, todos ganham”.

Fã de música clássica, Câmara trabalha no INPE desde 1980, onde exercia o cargo de coordenador geral de observação da Terra até ser escolhido por Sérgio Rezende, ministro da Ciência e Tecnologia, diretor da instituição.

Formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em engenharia eletrônica, Câmara fez mestrado e doutorado em computação no INPE e trabalhou no desenvolvimento de importantes softwares de sensoriamento remoto e processamento de imagens de satélites, como o SPRING, e das metodologias dos projetos DETER e PRODES, usados na detecção e monitoramento do desmatamento da Amazônia.

O pesquisador também foi responsável pelo estabelecimento de uma política de acesso livre aos dados do INPE sobre desmatamento e às imagens do satélite CBERS, ato que resultou na distribuição de 120 mil imagens do satélite sino-brasileiro entre maio de 2004 e julho de 2005.

Confira abaixo a entrevista exclusiva de Gilberto Câmara ao editor Emerson Granemann.

InfoGEO: Qual é a importância da área de observação da Terra para o governo brasileiro? Ela pode diminuir os contrastes entre ricos e pobres?
Gilberto Câmara: O objetivo das atividades científicas e tecnológicas é a produção de conhecimento e sua apropriação pela sociedade. Assim, qualquer atividade científica somente pode diminuir os contrastes entre ricos e pobres no médio prazo e se seus resultados contribuírem para gerar emprego e renda no Brasil.
No caso da observação da Terra, seu grande potencial de contribuição está na gestão e na ordenação do território brasileiro. Toda a nossa atividade de P&D em sensoriamento remoto e geoprocessamento objetiva permitir que “o Brasil conheça mais o Brasil”.
Nossos recursos naturais e nossas cidades precisam de gestão permanente, precisam de novas informações, e precisam que essas informações estejam ao alcance de todos. Assim, a missão da observação da Terra do INPE é aumentar a capacidade da sociedade brasileira em tomar conta de nosso vasto e maltratado território.

IG: Quais as novidades dessa área nos próximos quatro anos?
GC: Nos próximos quatro anos, teremos um aumento na disponibilidade de dados e tecnologias em diferentes resoluções de trabalho. Podemos distinguir três grandes áreas em sensoriamento remoto. Na área de baixa resolução espacial (50-300 m) e alta resolução temporal (1-5 dias) podemos esperar um aumento dos sensores disponíveis e de suas aplicações. Além do MODIS, teremos o WFI do CBERS e o AWIFS do IRS.
Esses sensores permitem novas aplicações associadas a monitoramento rápido, como o DETER (Detecção de Desmatamento em Tempo Real). Os sensores de média resolução espacial (10-50 m) e média resolução temporal (10-30 dias) continuarão a ser fundamentais para a mensuração de mudanças de cobertura do solo e para aplicações em agronegócios.
A disponibilidade de dados para esse segmento no Brasil é das grandes metas do programa CBERS. Para o segmento de alta resolução espacial (0.5 – 5 m), deverá haver um aumento da oferta nos próximos anos, com o lançamento da nova geração de satélites comerciais, que contam com grande apoio dos governos americanos e europeus. Satélites como o QUICKBIRD-2 e o NEXTVIEW (americanos) e o PLEIADES (europeu) irão ampliar a oferta de dados de alta resolução no mercado.

IG: Que dicas que você daria a um prefeito que deseja investir com sucesso em geotecnolgias com o objetivo de conhecer melhor seu município?
GC: Primeiro, estabelecer um setor especializado em geoinformação, cuja missão seja servir a toda a prefeitura e não apenas a uma área específica. Contratar dois bons profissionais para gerenciar a área e selecionar, da equipe existente, jovens com potencial para ser treinados e capacitados em geoinformação.
Segundo, estabelecer um programa de capacitação de sua equipe, associado a uma solução de software livre. Hoje, as soluções de software livre já permitem um nível de desempenho muito bom. Além de funcionar bem, esses programas podem ser instalados sem necessidade de licitação, o que reduz prazos e custos.
Há bons programas de capacitação e treinamento em software livre para prefeituras, que podem servir para treinar a equipe.
Terceiro, construir um banco de dados com base no que já existe na cidade. Todas as cidades brasileiras de porte têm dados e mapas. O problema é descobrir onde eles estão e recuperá-los para uso público.
Finalmente, reunir a equipe com cada uma das diferentes secretarias da Prefeitura. Identificar necessidades que podem ser atendidas com as geotecnologias e estabelecer um cronograma de implantação. Nessa fase, serão identificadas as necessidades de dados adicionais (como aerolevantamento, imagens de alta resolução e trabalho de campo).
Se a prefeitura tiver recursos para investimento, as fases (2), (3) e (4) podem ser realizadas em paralelo. Isto é, a capacitação da equipe pode ser feita ao mesmo tempo em que a aquisição de dados, que deve ser contratada a uma empresa especializada. Mas a fase (1) deve preceder tudo. Sem uma equipe qualificada e capaz de atender às diferentes áreas da Prefeitura, não haverá chance de sucesso.

IG: Por que temos tão poucas experiências de sucesso de sistemas de informações geográficas funcionando plenamente nos diversos níveis (e não só no setor de geo) como base para tomada de decisão no governo, principalmente nas prefeituras?
GC: Porque faltam equipes qualificadas, com salários adequados e estabilidade. Sem uma equipe de bom nível na instituição, não adianta contratar um excelente serviço nas empresas do mercado. Infelizmente, o Brasil não tem tradição de meritocracia, estabilidade e continuidade no serviço público. Na área de tecnologia, a qualidade é o único valor que conta. Sem gente de bom nível e independente do partido político no poder, não há serviço público que funcione direito.

IG: O CBERS pode ser utilizado pelas prefeituras para a geração de uma base de dados geográfica ?
GC: Hoje, ainda não. O CBERS-2 é um satélite com um sensor multiespectral (CCD) de 20 metros de resolução, que é voltado para aplicações agrícolas. Em 2007, estaremos lançando o CBERS-2B, que contará com um sensor pancromático de 2,5 metros, além da CCD de 20 metros. Os dados dessa câmera de alta resolução estarão livremente disponíveis e poderão ser usados pelas prefeituras para complementar seu cadastro urbano.

IG: O fato de o CBERS ser distribuído gratuitamente auxilia ou atrapalha o mercado de comercialização de imagens de satélite de empresas privadas ?
GC: As imagens grátis do CBERS são geradoras de emprego e renda. Permitem que pequenas e médias empresas passem a oferecer serviços de geoinformação mais acessíveis a seus clientes. Permitem que órgãos públicos sejam mais eficientes, com dados mais atualizados.
Tudo isto amplia o mercado de geoinformação, tanto de dados quanto de serviços. Ao ajudar a tornar a geoinformação mais acessível a todos, as imagens grátis do CBERS abrem novas perspectivas para as empresas do setor.

IG: Qual é o estágio atual e as novidades previstas na área de tecnologia de geoinformação no INPE para os próximos quatro anos?
GC: Hoje o INPE tem dois grandes investimentos em tecnologia de geoinformação. O primeiro é manter e aprimorar o SPRING, que é um sistema monousuário, mas com um enorme conjunto de funções para diferentes áreas de aplicação.
O SPRING tem uma enorme base instalada no Brasil e no exterior e o INPE tem o compromisso de atender os nossos usuários. Além da equipe do SPRING no INPE, temos hoje um contrato de manutenção e aprimoramento do software com a empresa K2 Sistemas. Ao ampliar a equipe de suporte do SPRING, estamos podendo responder melhor aos pedidos de nossos usuários.
A segunda linha de investimento são os sistemas de software livre TerraLib e TerraView. A TerraLib é uma biblioteca de desenvolvimento de software para a criação de aplicativos de geoinformação multi-usuário. Seu objetivo é dar suporte a sistemas de informação geográfica corporativo. Todos os dados geográficos ficam num banco de dados cliente-servidor, que é compartilhado pelos diferentes departamentos de uma instituição. A partir da TerraLib, já foram construídas diversas soluções corporativas, por nossos colaboradores.
Vejam alguns exemplos: a FUNCATE já desenvolveu diversas soluções para prefeituras, o TECGRAF/PUC-RIO usa a TerraLib para aplicações no setor de óleo e gás, a ENALTA realiza aplicações no setor de agricultura de precisão.
O TerraView é um aplicativo livre de visualização e processamento de dados geográficos, que se comunica com um banco TerraLib e suporta acesso a diferentes SGBD (Access, MySQL, PostgresSQL e Oracle).

IG: Existe algum plano de criação para as prefeituras de softwares grátis e fáceis de usar para processar imagens, visualizar mapas e fazer determinadas análises geográficas?
GC: Para uma prefeitura iniciante em geoinformação, a solução que o INPE propõe é o uso do TerraView, em conjunto com um gerenciador de dados livre (mySQL ou PostgreSQL). O TerraView é uma solução simples para implantar um ambiente de geoinformação. Os interessados devem primeiro escolher um gerenciador de dados livre (minha sugestão é usar o PostgreSQL). Depois, instalem o TerraView. Dá para começar a trabalhar de forma rápida e eficiente.
Deve-se lembrar que, além da solução TerraView/PostgreSQL, há outras alternativas de software livre disponíveis, como o MapServer, que também conta com um grupo de suporte ativo no Brasil.

IG: Quais paradigmas foram mudados nos últimos anos no setor de geoinformação?
GC: Nos últimos anos, houve uma mudança tecnológica fundamental. Hoje temos sistemas gerenciadores de bancos de dados capazes de armazenar tanto os atributos quanto as geometrias dos dados geográficos, e de permitir o acesso e compartilhamento eficiente de dados em ambiente multi-usuário. Chamo este cenário de “localização-é-mais-um-atributo-de-dados”.
As empresas de geotecnologias estão mudando. Antes, eram empresas de geração de mapas digitais. Hoje, elas têm de ser empresas de tecnologia de informação. Para ter sucesso nos anos vindouros, as empresas terão de ampliar muito sua capacidade de integrar informações de todos os tipos, e não apenas as vindas de mapas.
Para os usuários, o paradigma também mudou. Antes, sistemas de informação geográfica eram ambiente monousuário, de uso exclusivo de alguns. Hoje, esses sistemas têm de ser corporativos e suportar diferentes aplicações. Isto aumenta muito os benefícios potenciais da geoinformação para as empresas, mas tem um custo. Os profissionais de geoinformação precisam entender tanto de aspectos cartográficos e de análise espacial de dados, quanto de bancos de dados. Isto requer um grau de qualificação maior.

IG: A popularização do GPS e das imagens de satélite via Google e MSN trazem vantagens ou desvantagens para o desenvolvimento de uma cultura de geoinformação na sociedade? Há riscos nesta popularização?
GC: Não creio que existam riscos. Pelo contrário, neste caso, mais é melhor. Saber onde estamos e que país é este que vivemos traz grandes benefícios. Os sistemas baseados em localização já são sucesso em outros países. Se as futuras gerações crescerem sabendo que o acesso à geografia de seu país e sua cidade é algo natural e é um direito delas, sua percepção de responsabilidade aumenta muito.
Meu sonho é um cenário em que cada cidadão interessado possa conhecer, ao toque de seus dedos, a situação imediata, diária, de sua cidade e de seu bairro. Se cada vez que a especulação imobiliária ocupasse uma área ambientalmente sensível, uma parcela importante da população fosse avisada, quantos desastres já teriam sido evitados!

IG: Qual é a sua opinião sobre uma inteligente política pública de distribuição de dados geográficos por parte do governo, em todas as esferas?
GC: É simples: dados públicos são públicos e devem estar disponíveis sem custo e sem restrições na internet. Todos os estudos internacionais mostram que uma política aberta de dados públicos cria mais empregos e amplia o direito do cidadão. Quando os dados públicos são disponíveis de forma aberta, todos ganham. O governo, pois seu investimento em coleta de dados tem máximo retorno quando é usado pela sociedade de forma ampla. As empresas, que podem oferecer mais serviços com menor custo. As demais instituições públicas, que podem construir bases de dados melhores e mais abrangentes. O cidadão, que tem acesso a dados que lhe dizem respeito. A sociedade, que precisa de um governo eficiente.

IG: Gratuidade e rapidez de entrega (dez minutos) são uma marca das mais de 150 mil imagens CBERS já distribuídas no Brasil. Por que esse acesso não é tão fácil nos dados do IBGE, INCRA e outros órgãos?
GC: Espero que seja só uma questão de tempo. Trata-se da transição tecnológica a que me referi acima. Com os bancos de dados geográficos corporativos e o uso amplo da internet, geoinformação deixou de ser apenas um problema cartográfico e geográfico para ser também um problema de tecnologia de informação.
Algumas instituições estão fazendo essa transição mais rápido que outras. A médio prazo, espero que todas as instituições públicas no Brasil façam essa transição e se tornem grandes especialistas em tecnologia de informação. Aí o exemplo do CBERS será fácil de ser seguido.

IG: O Brasil carece há mais de trinta anos de maiores investimentos na área de mapeamento sistemático nas escalas 1:25.000 e 1:50.000. Quanto o País perde não tendo como conhecer melhor seu território? Por que governo após governo não dá a devida atenção a esse tema?
GC: Desconfio que o problema esteja na pergunta. Num mundo digital, o conceito de mapeamento sistemático precisa ser completamente revisto. O ideal seria adotar o conceito de resolução. Assim, teríamos de definir algumas resoluções nas quais precisaríamos cobrir o Brasil inteiro. Teríamos mapas digitais com 500m de resolução e outros com 50 m de resolução. Depois escolheríamos uma resolução para trabalhos regionais (algo com 10 m). Finalmente, haveria uma resolução para cadastro urbano (1 m ou menor).
Uma vez definida a estrutura de mapeamento digital do Brasil, e descartado o conceito de escala, poderíamos usar novas tecnologias para coleta de dados. Em áreas de difícil acesso, a tecnologia de radar (aerotransportado ou orbital) vem se mostrando uma solução eficiente para gerar dados de altimetria. A combinação de dados radar (como SRTM) com imagens de sensoriamento remoto permite uma atualização dos dados de geomorfologia e de vegetação.
A combinação de uma nova lógica de mapeamento digital (abandonando de vez o conceito de escala) e de novas tecnologias poderia gerar enormes ganhos para o Brasil. Assim, é tempo de esquecer as perguntas acima e fazer perguntas diferentes: como mapear o Brasil na era das tecnologias de geoinformação?

IG: Você arriscaria sugerir uma maneira de a sociedade se mobilizar e pressionar o governo para utilizar as novas tecnologias e acabar de uma vez por todas com esse vazio cartográfico?
GC: A sociedade, através de seus diferentes instrumentos (associações profissionais e científicas, fóruns de debate, congressos) pode ser um forte instrumento de pressão. A revista InfoGEO e o congresso GEOBrasil são importantes espaços de expressão da sociedade. Ao divulgar exemplos virtuosos, mostramos o que queremos que seja feito.

IG: O homem deu um salto do papel ao meio digital. De mapas impressos com sua beleza e limitações passamos a representar e analisar o mundo real dentro de um computador. Temos uma informação mais inteligente. Neste contexto, comente a importância do investimento racional em recursos humanos, equipamentos, softwares e dados.
GC: Gente, gente, gente. Gente boa escolhe bem o software que vai usar e a melhor tecnologia para coletar os dados que precisa. Hoje temos uma grande transição em curso no mundo. A geração de nossos pais tinha cérebros analógicos. A comunicação era por correio e quando muito pelo telefone. A produção de dados geográficos era feita por mapas em papel.
A geração de nossos filhos tem mentes digitais. Eles nasceram junto com a internet, o orkut e o telefone celular. Nossa geração vive uma transição do mundo analógico para o mundo digital.
O desafio para as instituições é renovar completamente seu quadro de pessoal. Veja o caso do Ordnance Survey (OS), o IBGE inglês. Dos mais de mil cartógrafos empregados pelo OS em meados dos anos 80, restam apenas 150 e as novas contratações privilegiam especialistas em bancos de dados geográficos. Meu conselho para as instituições que desejam investir em geoinformação é um só: forme uma boa equipe, o resto virá naturalmente.

IG: Que benefícios atuais e futuros a comunidade de geoinformação da América Latina pode esperar dos projetos do INPE ?
GC: A intenção do INPE é ampliar sua política de dados, capacitação e software para os demais países da América Latina. Hoje, temos muito orgulho em contar com a RUSHH – Rede de Usuários SPRING de Habla Hispanica. Trata-se de um conjunto de usuários que promove o SPRING para a América hispânica.
O próximo passo é abrir o acesso às imagens CBERS recebidas na estação de Cuiabá a todos os países da América Latina. Isso deverá acontecer ainda no primeiro semestre de 2006. O terceiro passo é ampliar nossas ações de capacitação em observação da Terra. Para isso, estamos trabalhando em um grande programa internacional, com o apoio da UNESCO e da Comunidade Européia.

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