Geociências e cultura regulatória
A realidade geocientífica tem se transformado rapidamente nos últimos anos. No centro desta preocupação estão as mudanças climáticas, que impõe novas práticas de ordenamento territorial; o crescimento econômico do Brasil, que impõe padrões inovadores de infraestrutura; bem como a revolução tecnológica, que possibilita o uso de novas ferramentas na construção dos sistemas técnicos. O Estado, por sua vez, tem intensificado o emprego destas técnicas como políticas públicas, abrindo um grande horizonte de desafios e oportunidades ao setor.
A Constituição Federal foi minuciosa ao elencar as competências geocientíficas do Brasil. Cabe à União, por exemplo, organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional (Art. 21, XV, CF), sendo privativo legislar sobre sistema estatístico, cartográfico e geológico (Art. 22, XVIII, CF) e sendo facultado articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico para reduzir desigualdades regionais (Art. 43, CF).
Com estes valores dispostos na Carta Maior do país, faz-se necessário regulamentá-los. As diretrizes e bases da cartografia brasileira, conforme previsto no Decreto-Lei 243, de 1967, constitui um rico sistema técnico de operacionalização do mapeamento. Todavia, as políticas públicas que se utilizam deste sistema encontram respaldo em outros sistemas jurídicos, e precisam ser igualmente observadas.
Há profundas alterações na governança pública que precisam ser acompanhadas de perto pela comunidade geocientífica. A criação da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (Inde), as mudanças na estrutura da Comissão Nacional de Cartografia (Concar), a propalada fusão da Agência Espacial Brasileira (AEB) com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o fortalecimento da função geográfica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as dificuldades de renovação da mão-de-obra setorial, e a defasagem tecnológica do país em relação aos países desenvolvidos são apenas algumas facetas desta “revolução” na governança setorial.
Ganha cada vez maior relevância os aspectos de regularização fundiária, na qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem uma importante função na elaboração de regras para o georreferenciamento da propriedade rural. Por sua vez, existe atualmente uma intensa discussão sobre o emprego do georreferenciamento no Estatuto da Cidade, de forma a regular técnicas geocientíficas na política urbana brasileira, fato que deve intensificar o emprego deste recurso pelos municípios.
Setores de infraestrutura têm empregado cada vez mais normas sobre georreferenciamento. Em energia, há duas agências reguladoras criando regras sobre o tema, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); três em transportes, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac); duas autarquias em geologia, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e o Serviço Geológico do Brasil (CPRM); e uma no setor de águas, a Agência Nacional de Águas (ANA). Isso para ficarmos apenas na esfera federal.
Por sua vez, o Projeto de Lei do novo Código Florestal traz aspectos relevantes para o aprimoramento dos conceitos ambientais, como é o caso de obrigar que a área de Reserva Legal seja averbada na matrícula do imóvel no Registro de Imóveis competente, com indicação de suas coordenadas georreferenciadas ou memorial descritivo contendo pelo menos um ponto de amarração georreferenciado. Todavia, ainda há muito que se avançar, principalmente pela necessidade de envolver o IBGE nesta regulamentação, enquanto órgão responsável pela definição dos biomas e das áreas de influência dos ecossistemas. Essa informação baliza a atuação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a aplicação de toda a legislação ambiental.
Estes exemplos tornam imperativo que os setores geocientíficos, aquecidos e em franco crescimento, passem cada vez mais a interagirem, de forma organizada e representativa, perante as esferas políticas. Como consequência, as empresas setoriais terão que adequar cada produto às imposições das diversas políticas públicas setoriais, fato que imporá a criação de uma estruturada militância em Brasília. É a cultura regulatória que se avizinha às geociências, necessidade já percebida em outros segmentos da indústria e que possibilita individualizar direitos e deveres do governo, das empresas e dos cidadãos.
Luiz Antonio Ugeda Sanches
Mestre em Direito e em Geografia pela PUC-SP. Diretor-Executivo do Instituto Geodireito
las@geodireito.com