Uma ameaça à engenharia!

O mercado brasileiro, não só o das geotecnologias, vem sofrendo constantes mudanças. Uma delas é provocada pela introdução da modalidade de contratação chamada Pregão, também conhecida por Leilão Reverso ou simplesmente – como muitos preferem – Leilão. Esta modalidade foi criada para simplificar e agilizar os processos de compra e contratação do governo. Desde sua criação vem ganhando cada vez mais destaque, adeptos e simpatizantes, a ponto de ser utilizada indiscriminadamente e sem nenhum critério, levando a consequências temerárias e em alguns casos desastrosas.

Não sou contra o Pregão, entretanto ele surgiu com a Medida Provisória 2026/2000 e foi regulamentado pelo Decreto 3555/2000 com a finalidade específica para a contratação de bens e serviços comuns. Embora na sua criação tenha ficado claro e explícito que: a licitação na modalidade de pregão não se aplica às contratações de obras e serviços de engenharia, muitos se vêem obrigados a criarem argumentos e justificativas para que o Pregão seja e continue a ser utilizado, se não errado, de forma a prejudicar, num primeiro momento, as prestadoras de serviços de engenharia, num segundo momento os contratantes e, por último, os profissionais envolvidos e o próprio mercado.

Os defensores do leilão ignoram o artigo 5° do Decreto 3555/2000, onde fica estabelecido que o pregão não se aplica a serviços de engenharia, e se fundamentam na Lei 10520/2002 que condiciona o uso do Pregão somente para bens e serviços comuns, assim definidos: “aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”. Estes consideram serviços de engenharia como serviços comuns e, portanto, passíveis de contratação pelo pregão. Seguindo esta linha de raciocínio, com muita semântica e boa vontade de quem assim o quer, qualquer serviço poderia ser bem definido e especificado e, desta forma, contratado por esta modalidade. Não seria surpresa se algum “jurista”, extrapolando esse conceito, concluísse que não só os Serviços de Engenharia, mas também os da Advocacia, da Medicina e muitos outros seriam também passíveis de serem leiloados.

Em 2005, o Decreto 5450 regulamentou o pregão na forma eletrônica no âmbito federal e estabeleceu que: não se pode aplicar esta modalidade – o pregão eletrônico – para contratações de obras de engenharia, silenciando-se quanto aos serviços de engenharia e, com isso, deu margem a diferentes interpretações – nisto reside o problema!

Uso indiscriminado

A utilização indiscriminada do pregão é uma tendência que precisa ser alterada. Os resultados e os prejuízos desta modalidade de compra, para serviços de engenharia, já começam a ser revelados e indicam uma necessária mudança. Diversos serviços do mercado não puderam ser utilizados devido a problemas de ordem técnica e tiveram de ser refeitos devido a uma má contratação. O pior dos Pregões é aquele em que se disputa primeiro o preço, sem nenhum critério técnico de seleção, e depois que os preços despencaram, julga-se a capacidade, quase sempre somente jurídica e fiscal do vencedor. Isto soa como um grande estímulo aos tão comuns “aventureiros do mercado”. Não se pode deixar de dizer que existem alguns exemplos de sucesso, mas raros são eles! Em síntese costumo dizer: na modalidade Pregão sem nenhum critério de admissibilidade, a probabilidade de se contratar serviços de engenharia por preço baixo é tão grande quanto à probabilidade de se contratar um mau serviço!

Existe uma pressão muito grande e uma crença, infundada para muitos, de que o pregão, na área de engenharia, é um processo mais transparente e que com ele se economizam recursos na contratação de serviços, – lamentavelmente também alguns “engenheiros” pensam assim. É também muito comum, por parte do serviço público, o desejo de que os processos de compra sejam o mais simples possível – evitando maiores complicações e trabalho. Uma interessante e bizarra ideia foi proferida por um colega do setor, quando me dizia que as últimas fases desse movimento seriam a punição dos culpados pela má contratação e que os empregos públicos também seriam leiloados, ou seja, seriam funcionários públicos aqueles que aceitassem o emprego pelo menor salário e, obviamente, sem a necessidade de concurso ou qualificação.

Alternativas

Em oposição ao pregão, os defensores das outras modalidades de contratação previstas na nossa legislação possuem argumentos fortes e aparentemente muito sólidos para serem contrários. As modalidades são: concorrência por menor preço, melhor técnica, ou a combinada de técnica e preço. Considero esta a mais indicada para a contratação dos serviços de engenharia. Todos nós, quando vamos comprar algo para nosso uso ou consumo, fazemos uma análise considerando o custo e o seu benefício. Este raciocínio lógico é usado quando vamos comprar carro, computador, telefone, eletrodoméstico, vinho, etc.. É quase sempre simples assim: buscamos o melhor que podemos comprar dentro do nosso orçamento ou a um preço justo. E porque não quando vamos comprar serviços de engenharia, mapeamento ou outro qualquer serviço de geotecnologia? Um parceiro comercial costuma sempre dizer: “escolher quem irá executar um levantamento de precisão por Pregão é tão absurdo como escolher, pelo mesmo processo, o médico que irá fazer a sua cirurgia cardíaca”!

Por pressão, medo do Ministério Público ou do Tribunal de Contas, muitos contratantes optam pelo Pregão, por imaginar que esta seja a modalidade mais simples, fácil e que menos daria margem à corrupção. Entretanto, forçar ou induzir o licitante a praticar preços irreais é ainda pior do que ter de se explicar ao Ministério Público. Qual deveria ser a punição para quem contrata mal? Ou para quem paga por um serviço errado ou fora do prazo? Especificamente sobre o mapeamento, é muito comum fazer parte do objeto da licitação a expressão “contratação de serviços técnicos e especializados de…”, mas mesmo sendo “técnicos e especializados”, na hora de escolher a modalidade estes mesmos serviços são considerados, por muitos, como serviços comuns, pois podem ser definidos de forma inequívoca. Ao se especificar um serviço de mapeamento ou de geotecnologia, quase sempre se recorre ao auxílio de um consultor, especialista ou cartógrafo com experiência. Ora, se precisamos de um especialista para definir, porque não seria necessário um especialista para executar, ou porque seria este um serviço comum, simples ou sem complexidade? Não parece lógico, ético, nem tão pouco correto este tipo de interpretação, cujo único objetivo seja a busca incansável e inconsequente do “menor” preço e não do “melhor” preço.

Prejuízo para todos

Esta implacável busca pelo baixo preço acaba resultando em perdas muito grandes ao mercado, pois se uma empresa é contratada por um preço que mal remunera o serviço, ela poderá, dependendo da sua ética ou objetivo, transferir estas perdas à qualidade do trabalho, pois o controle de qualidade, para muitos, é uma etapa que não impede a execução do serviço e acaba sendo negligenciada. Ou na utilização de recursos técnicos mais simples e baratos e, ainda, na substituição dos profissionais envolvidos por outros mais baratos e menos qualificados. É também comum empresas não considerarem adequadamente os encargos sociais e até mesmo as devidas taxas e impostos. Isso quando a prestadora de serviços já não fez todas estas considerações na formação do preço apresentado e, depois oferta, irresponsavelmente, lances de forma a reduzir ainda mais seu preço final. De uma forma ou outra o profissional envolvido, seja ele da parte contratante ou contratada, irá sempre perder, num primeiro momento em qualidade e depois em perdas salariais. O preço baixo de hoje se tornará a referência de preço amanhã e, assim, realimentando um vicioso ciclo em que as perdas irão se acumulando e se agigantando. As empresas vão se descapitalizando e diminuindo gradativamente os seus necessários investimentos, levando, a curto ou médio prazo, ao inevitável sucateamento. Nada poderia ser pior do que isso para a engenharia brasileira.

O Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), em 3 de dezembro de 12, aprovou por unanimidade, em sessão plenária, que os serviços de engenharia, dada a natureza intelectual, científica e técnica, jamais poderão ser considerados serviços comuns, portanto, não são passiveis de compra pela modalidade Pregão (decisão N. PL-2467/2012). De uma forma simples e direta, decide que: se para o serviço em questão é necessário Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), este não deve ser comprado sob a forma de pregão! As entidades Associação Brasileira de Consultores de Engenharia (ABCE), Sindicato da Arquitetura e Engenharia (Sinaenco), Associação Nacional das Empresas de Aerolevantamento (Anea) , entre outras, vêm se posicionando contra o pregão, e as demais, como Associação Brasileira de Engenheiros Cartógrafos (Abec) e Instituto Brasileiro de Empresas de Geomática e Soluções Geoespaciais (IBG) – e muitas outras – podem e devem fomentar e divulgar o quão danoso e prejudicial é o Pregão para a engenharia brasileira. Fica então a mensagem a todos os engenheiros, empresários, cartógrafos e simpatizantes: não deixe que a engenharia seja considerada um serviço comum e simples, pois não é, nem nunca foi! Não foram em vão todos os esforços para sua graduação, especialização, estudos, congressos, seminários e tudo mais que fez que, a partir de agora, por uma interpretação tendenciosa, passaria a ser considerado um serviço comum, sem nenhuma especialidade.

O preço baixo de hoje se tornará a referência de preço amanhã e, assim, realimentando um vicioso ciclo em que as perdas irão se acumulando e
se agigantando.

Valther Xavier Aguiar

Engenheiro cartógrafo, diretor técnico da empresa Esteio Engenharia e Aerolevantamentos e vice-presidente da Associação Nacional das Empresas de Aerolevantamento (Anea)

valther@esteio.com.br