John Snow, Caio Prado Jr., Oxera e a (R)evolução Geoespacial

Pensar sob a perspectiva geográfica é de uma obviedade atroz, afinal de contas se você, caro leitor, dedicou parte de sua atenção a começar a ler este artigo é porque minimamente se interessa pelos temas ventilados pela revista MundoGEO, certo? Mas isso não é bem assim no sentido amplo. A história pregressa nos mostra que essa perspectiva é ainda incipiente para a grande maioria das pessoas, principalmente no contexto de decisão empresarial.

O fato é que vivemos em um mundo em que a percepção geográfica começa a invadir as empresas e, ao mesmo tempo, passa por uma revolução em suas diversas facetas. Vamos começar uma discussão sobre o assunto, que esperamos se estenda para além deste artigo. Para começar, o que John Snow e Caio Prado Jr. têm em comum?
Em primeiro lugar, nenhum dos dois jamais postou um selfie no Instagram. Afora isso, têm muito em comum. John Snow, em 1855, publicou a segunda edição de seu artigo (de 1849) com a análise empírica de que a transmissão do cólera não se dava “pelo ar viciado”, mas sim pela água. Para chegar a esta conclusão (antes que a teoria microbiana houvesse sido desenvolvida), basicamente se utilizou do cruzamento de dados da população afetada e não afetada, distribuindo as ocorrências em uma base cartográfica da Londres de 1854 (então vítima de uma epidemia do cólera). Com a ajuda do Reverendo Henry Whitehead, acabou por identificar que a fonte do surto localizava-se na bomba de água pública na Broad Street.

Em outras palavras, mais contemporâneas, fez uso (pioneiro?) de recursos de “análise espacial” na solução de um problema de saúde pública. Veja a famosa figura que ilustra este artigo, tida como seminal no uso de geoinformação nas Ciências Sociais em geral.

Caio Prado Jr, para quem não se lembra, além de ter sido um dos grandes pensadores que “inventaram o Brasil”, com estudos econômicos e históricos, foi um geógrafo reconhecido, participando da fundação da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Em 1935, publicou um ensaio, “O Fator Geográfico na Formação e no Desenvolvimento da Cidade de São Paulo”, em que basicamente desconstrói a hipótese de que “a região de São Paulo não oferece à primeira vista atrativos capazes de explicar a localização de um grande centro de mais de 2 milhões de habitantes”, oferecendo uma análise em 46 densas páginas da correlação geográfica como o fator, sob o ponto de vista econômico e social, que determinou que a cidade de São Paulo, apesar de indicações em contrário, se tornasse o local privilegiado em que se transformou a partir da segunda metade do Século XIX.

Snow e Caio Prado não tinham a sua disposição os recursos do Google Earth ou ArcGIS, mas isso não os impediu de se tornarem exemplos “avant la lettre” no uso do pensamento geográfico na solução de problemas objetivos e reais ou na compreensão de fenômenos econômicos e sociais. No caso de Caio Prado, ninguém deveria se aventurar a fazer proposições sobre os complexos problemas urbanos que a cidade de São Paulo enfrenta sem ter feito ao menos uma leitura de final de semana do ensaio desse autor.

Feita a introdução “fora da caixa”, cabe uma pergunta: é possível hoje imaginar um mundo sem os serviços geográficos? De uma forma imperceptível, mas aparentemente irreversível, ocorreu um salto quântico pela introdução de serviços geograficamente referenciados, no espaço muito menor do que uma geração, decorrentes de transformações tecnológicas que se impregnaram não somente no mundo empresarial como no cotidiano das pessoas.

O estudo “What is the economic impact of Geo services?”, encomendado pela Google para a consultoria Oxera, é impactante. Embora não detalhe a linha do tempo na qual os “geo services” levaram para atingir os estimados 150 a 270 bilhões de dólares de receitas, o fato de terem ultrapassado a indústria de videogames e mostrar um volume financeiro próximo, quase igual, à da indústria de segurança, por si só é expressivo.

Um aspecto intrigante é que a estrutura da indústria envolve uma cadeia de valor que é parte apoiada em “hardware” (um vasto conjunto de eletrônica fina, mas também “elementos pesados”, tão pesados quanto os foguetes lançadores de satélites), mas que só se materializa na forma de “serviços”. Parte dos “serviços” são razoavelmente inteligíveis à cabeça de um economista formado no Séc. XX, como os impactos na produtividade dos negócios; mas uma parte não desprezível decorre de serviços (aparentemente) “gratuitos”, movidos por desejos que até podem ser racionalizados à luz da teoria microeconômica (como é demonstrado pela aplicação, no estudo da OXERA, do modelo do círculo de Salop para determinar decisões dos consumidores em função da utilidade), mas são fortemente influenciados pela adesão coletiva e a universalização das comunicações (embora “comunicações” seja um termo inadequado para caracterizar o fenômeno da evolução do “celular 0G” para os “smart-devices” 4G, 5G, nG…).

O estudo é estruturado em cinco sessões “metodológicas”, uma introdução extremamente elucidativa e uma conclusão breve, para a dimensão do estudo, mas que de fato é suplementada por um “Executive Summary” que diz o essencial para quem, neófito, deseje entender, “afinal, do que estamos tratando?”

Uma conclusão possível de ser alcançada é que o motor dessa indústria tem como principal combustível a mistura de: (i) custos evitados, facilmente percebidos e capturados por empresas e (minha percepção) dubiamente percebidos pelos consumidores finais, embora a quantificação dos benefícios para os consumidores finais não seja passível de contestação, do ponto de vista teórico; (ii) externalidades positivas, que são diluídas entre muitos atores, facilmente identificadas com esforços de P&D sustentados por recursos públicos.

Muitos aspectos no texto são intrigantes, como a suspeita de que o valor de startups geográficas não deve estar sendo devidamente contabilizado, tornando subavaliada a mensuração do real impacto econômico das “geocoisas”.

O documentário Geospatial Revolution, produzido pela PennState University, pode ser classificado em outro patamar. Sendo um projeto de divulgação científica, é capaz de sensibilizar (e educar) um público mais amplo do que o estudo da Oxera (embora sejam totalmente complementares).

Dividido em quatro episódios, que progressivamente apresentam ao “espectador de primeira viagem” detalhes que podem passar desapercebidos de como os geoserviços estão presentes no dia a dia, passa a tratar de temas mais específicos, como a criação de uma cidade interativa (Portland, EUA), o impulso que os negócios recebem dessa “revolução”, até exemplos comoventes, no uso da tecnologia para a administração de crises, na transformação da vida de comunidades, simplesmente organizando espacialmente informações para uma melhor tomada de decisão por parte de policy makers (porém sob a pressão do olhar das comunidades, que se transformam em agentes ativos e não mais passivos das políticas públicas).

Estamos diante de dois dilemas éticos: a mesma tecnologia que impacta expressivamente a produtividade marginal dos fatores de produção e amplia o nível de satisfação (ou utilidade marginal) dos consumidores, é também a base pela qual a segurança da sociedade (em sentido amplo) está crescentemente se apoiando, seja no sentido de manter a “lei e a ordem”, seja nas complexas equações geopolíticas. O exemplo de como o conflito nos Balcãs, na década de 1990, foi resolvido, apresentado em “Mapping the Road to Peace”, é ilustrativo, mas de forma nenhuma elimina a complexa natureza ética dos dilemas envolvidos.

O lado intrigante não é somente esse: o universo de aplicações recorre em boa parte a informações “espaciais”, mas há um vasto de “dados & informações de várias naturezas”, coletores, sensores, “da internet das coisas”, de sistemas de monitoramento e de colaboração, que formam o “Big Data” sobre o qual não é leviano afirmar que talvez somente a primeira volta de uma rosca sem fim tenha sido dada.

Indiscutivelmente, “A Brave New World” está em evolução, não exatamente como Aldous Huxley, George Orwell, Isaac Asimov, ou H.G. Wells previram, mas ainda assim um admirável mundo novo, um pouco preocupante em aspectos éticos ainda mal digeridos, mas que não parece assustar, nem incomodar aqueles que não conheceram outro mundo que não esse em que transformações são regras e não exceções.

A Revolução Geoespacial é sim uma revolução e como todo processo revolucionário jamais poderá ser, determinado em quando e como será terminado.

Eduardo de Rezende Francisco
PhD em Administração de Empresas pela FGV-EAESP, Bacharel em Ciência da Computação pelo IME-USP, atua em GIS, Business Intelligence, Pesquisas de Mercado e Satisfação de Clientes. É professor de Métodos Quantitativos, Analytics e Big Data na FGV-EAESP e de Sistemas de Informação na ESPM, Consultor em Geomarketing, Estatística Espacial e Microcrédito e sócio-fundador do GisBI e do Meia Bandeirada.
erfrancisco@gmail.com

Eduardo José Bernini
Economista pela FEA-USP, especialista em economia da energia pelo IEE-USP, MBA em Governança Corporativa pela FIPECAFI e mestrando em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-EAESP. Foi CEO de diversas empresas do setor energético.
eduardo.bernini@tempogiusto.com.br