Por Eduardo de Rezende Francisco* e Rubens de Almeida**
A recente declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a realização do próximo Censo Demográfico do IBGE, em 2020, chamou a atenção da imprensa e da sociedade para um assunto que muitas vezes passa despercebido: a contagem decenal da população brasileira. Essa pesquisa é feita de maneira extensiva, visita todos os domicílios brasileiros e, além da contar a população, faz a coleta de diversas informações fundamentais das famílias, que se referem à saúde, educação, renda, trabalho, raça, natalidade, fecundidade, nupcialidade, condições de moradia, qualidade urbana e muito mais.
É o Censo decenal do IBGE que constrói uma visão de Big Data de toda a sociedade brasileira e serve de base para todos os estudos de desenvolvimento de mercado por empresas privadas, inclusive pelos investidores internacionais. Fundamental guia para a gestão pública nos diversos níveis da administração municipal, estadual e federal, dá informações detalhadas sobre os 5570 municípios brasileiros. É, também, referência para a União distribuir recursos a Estados e municípios, direcionar campanhas de saúde e dar suporte à educação.
Para quem não prestou atenção à notícia, o superministro da economia do novo governo afirmou que o instituto precisava buscar autonomia de recursos, sugerindo inclusive a venda “do prédio” para viabilizar a pesquisa. E complementou, dizendo que o processo de coleta de informações deveria ser mais “espartano”, afirmando que o Censo dos países mais ricos teria apenas 10 perguntas, enquanto “o do Brasil 150 e de Burundi 360”.
Ao fazer a sugestão de venda, o ministro não especificou qual dos cinco prédios que hoje o IBGE ocupa no Rio de Janeiro deveria ser comercializado. Mas se recuperarmos uma informação recente, do governo Temer, quando o presidente da instituição era o economista Paulo Rabello de Castro, é possível perceber que a ideia de custear a grande pesquisa do Censo 2020 com a venda é completamente fora da realidade.
Antes de qualquer ação de desmobilização do patrimônio público, seria adequado buscar informações sobre o valor dos bens da instituição e também sobre mercado imobiliário carioca e nacional. De acordo com o levantamento de valores patrimoniais realizados à época de Rabello de Castro, mesmo se os cinco endereços fossem colocados à venda (e efetivamente vendidos em um mercado até há pouco paralisado, diga-se de passagem) o montante de recursos auferidos não pagaria 5% dos R$ 3,4 bilhões estimados para a realização do Censo 2020.
Mas foi a outra afirmação do ministro que mais incomodou quem trabalha com dados e é cliente contumaz do excelente trabalho realizado pelo IBGE no Brasil, instituto fundado há 82 anos e considerado como uma das cinco melhores organizações de pesquisas geográficas do mundo. O Censo brasileiro nunca foi e nunca será realizado com desperdícios. E seria inadequado aceitar que a solução para viabilizar o censo seria “maior criatividade dos pesquisadores”, que, segundo o ministro, deveriam “reduzir o tamanho da pesquisa” para barateá-la, como veremos adiante.
Talvez o ministro tenha ouvido falar sobre a economia que o IBGE conseguiu fazer no último Censo Agropecuário, quando reduziu o investimento em quase 1 bilhão de Reais, porque encontrou um formato mais ágil de avaliar os quase 5 milhões de propriedades rurais em todo o país, com entrevistas que tomaram 50% menos tempo dos pesquisadores. Mas o censo populacional é outra história. Há séries históricas que não podem ser perdidas.
Sugerir que o Censo dos diversos países é mais complexo quanto mais pobre é o país é uma informação muito imprecisa. Seriam os pesquisadores dos países pobres menos capazes do que seus iguais do primeiro mundo? E é inaceitável usar como exemplo (ou ridicularizar?) a suposta falta de objetividade dos países mais pobres. É preciso saber que todos os países buscam as mesmas informações, até porque a comunidade técnica internacional assim o faz para que os números sejam minimamente comparáveis uns aos outros, independentemente da situação econômica e social e cada país, embora haja, de fato, diferenças metodológicas para a captura das informações.
Na França e em outros países europeus, por exemplo, o conceito de Censo contínuo já prevalece. O trabalho de coleta de campo é realizado anualmente em cerca de 20% do território. Outra porção de 20% é investigada no ano seguinte e assim sucessivamente, de forma que, ao final de 5 anos, o primeiro levantamento censitário completo já foi realizado e pode ser publicado. No Ano 6, revisita-se a primeira porção de 20% e um novo levantamento é publicado. Dessa forma, anualmente novos resultados censitários são publicados, tornando o instrumento contínuo, mais efetivo.
Já nos EUA, o censo é sensivelmente mais enxuto, mas porque é complementado ao longo da década pela pesquisa extensiva American Community Survey, o que torna o custo final por pessoa recenseada cerca de três vezes maior do que o similar brasileiro (5 vezes, atualmente, se considerarmos as variações da moeda).
Outros países do mundo realizam sua coleta censitária de forma remota, com autopreenchimento pelos cidadãos, como o Canadá (em 75% de seu território) e Nova Zelândia. Há condições culturais para tal. Outros ainda conseguem mobilizar um contingente muito grande de recenseadores em campo para realizá-lo em apenas um ou dois dias, como muitos países menores na América do Sul, aumentando seus custos imediatos mas encurtando seu período de levantamento de campo.
No Brasil, a Fundação SEADE, agência de pesquisa e centro de referência nacional na produção e disseminação de análises e estatísticas socioeconômicas e demográficas, ligado ao Estado de São Paulo, vêm realizando recentemente estudos comparativos entre metodologias diferentes de coleta (presencial, telefone com atendente, telefone através de URA, Internet). Os resultados são bastante promissores, no entanto insuficientes para sugerir a mudança definitiva de instrumentos de coleta para pesquisas tão importantes no Brasil, uma decisão que não pode ser tomada de afogadilho. No mundo desses levantamentos oficiais, tudo tem que ser planejado, testado comparativamente e, conforme os resultados, adotado ou não como processo rotineiro.
O que difere entre os países é o nível de organização social para prover dados através de outros sistemas administrativos. Quando o ministro observa (erroneamente) que os Censos dos países desenvolvidos teriam apenas dez questões, não é porque eles sejam mais eficientes na coleta. Fazem menos questões durante o Censo porque dispõem de outros mecanismos para obter os dados complementares. Em Burundi, um pequeno país africano que luta para acompanhar as exigências internacionais de informações, a aplicação do Censo periódico talvez seja a única oportunidade nacional de fazer isso.
No Brasil, o IBGE faz as pesquisas com dificuldades e extrema valentia. Já temos alguns sistemas administrativos como o DataSus e os Censos Escolares (auto-cadastrados), que indicam várias informações sobre a saúde ou educação da população, o que simplifica muito o questionário do Censo nesses quesitos. Estamos na média no número de questões porque temos sistemas administrativos de informações de padrão e alcance médios. Embora tenhamos tecnologia comparável à de qualquer país desenvolvido, ainda não conseguimos estabelecer nem mesmo um sistema único e confiável de endereçamento geográfico de todos os imóveis urbanos e rurais do país e seu vínculo nacional aos sistemas administrativos.
Há habitações precárias, favelas, ocupações ilegais e que nem sempre aparecem nos mapas oficiais das cidades. Em muitas regiões, os pesquisadores ainda precisam ir de casa em casa, de prancheta (agora eletrônica) na mão, descobrindo famílias para colher todos os dados, pois os outros sistemas administrativos tornam-se não confiáveis, quando alguém, por exemplo, precisando de um hospital fornece um endereço mais próximo para poder ser atendido mais rápido.
Temos que evoluir muito em termos de integração dos sistemas administrativos municipais, estaduais e federais para que o ministro – hoje responsável por muitos desses sistemas – também colabore para que o questionário do Censo nacional seja mais enxuto.
Outro ponto importante é conhecer (e respeitar) os critérios estatísticos da coleta: no Brasil e em qualquer outro país, os questionários para todos os domicílios são pequenos. Alguns cidadãos e suas famílias são aleatoriamente escolhidos para responder o que a gente chama no mercado como questionários completos com os microdados da amostra. A abordagem extensa é de aplicação estatística, derivada da inteligência e competência dos técnicos do IBGE. Exatamente para baratear a realização dos Censos.
Falar que o IBGE tem que “ser criativo” na condução de seu trabalho de referência nacional e internacional é, portanto, injusto. As maiores inconsistências históricas estão nos órgãos de governo e gestão que continuam a conviver com enormes problemas de sub-registro e imprecisão dos dados que deveriam cuidar. O IBGE, pela qualidade do trabalho que realiza, precisa ser preservado e protegido como centro de excelência na sua missão de prover informações essenciais para o planejamento do país.
Uma reflexão para o novo ministro e um estímulo ao bom senso social para que, afinal, consigamos ter, em 2020, um bom censo.
*Eduardo de Rezende Francisco é professor de Data Science, GeoAnalytics e Big Data da FGV EAESP e fundador do grupo de estudos GisBI
**Rubens de Almeida é engenheiro e jornalista, dedicado a temas urbanos e organização de dados sobre mapas digitais. Fundador do grupo de estudos GisBI.
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Artigo publicado originalmente no Estadão
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