Trabalho com o segmento espacial desde o início dos anos 1980 (na época, no INPE). Sou uma testemunha ocular das transformações que essa indústria vem experimentando. E, como qualquer outra, o amadurecimento acelera as transformações. Ou seja, nos próximos 10, 20 anos são esperadas transformações muito maiores que as ocorridas nos últimos 50 anos, idade do programa Landsat.
As reações contrárias também vão se intensificar. Quem está no topo não quer ser ameaçado. Quem trabalha com sucesso há anos segundo um paradigma demora a aceitar mudanças.
As reações ocorrem em todas as camadas da indústria espacial, do fabricante de satélites aos usuários das imagens em suas diversas aplicações, espalhando-se por outras indústrias que sentem a ameaça.
Voltando aos anos 1980, as empresas de aerolevantamento reagiram ao espaço (sem trocadilho) que as imagens de satélites vinham conquistando. A reação foi desmerecer e não entender de que forma elas poderiam levar valor aos projetos das empresas. A visão era binária: fotografia aérea ou (XOR) imagem de satélite. Não viram as complementaridades. Lembrando que naquela época eram imagens de média resolução espacial, muito diferente das altíssimas resoluções das fotografias aéreas. As imagens orbitais submétricas só surgiriam neste século.
Por óbvio, estas empresas, já estabelecidas e com corpo técnico altamente qualificado, estavam em melhor posição para incorporar a nova tecnologia que surgia. Não fizeram isso, novas empresas foram criadas e muitas delas apresentam hoje melhores resultados financeiros que as empresas de aerolevantamento.
Atualmente há um belo portifólio de imagens gratuitas de média resolução espacial. Sabendo integrar as diferentes imagens (diferentes resoluções espaciais, radiométricas e espectrais: MUX/CBERS-4&4A, MSI/Sentinel-2A&2B e OLI/Landsat) é possível ter 10 coberturas mensais de qualquer região do planeta, o que caracteriza uma muito boa resolução temporal desta “constelação virtual”.
Há muito o que se fazer com os dados destes satélites, principalmente considerando a extensão do nosso território. Sou um defensor de que o Brasil precisa e muito destas imagens. Porém, há muito também que não é possível fazer com elas, seja pela limitação da resolução espacial, seja pela necessidade de uma frequência de cobertura mais intensa, por exemplo, diária.
Ou seja, satélites de alta resolução espacial (ex: GeoEye e WorldView da Maxar e Pléiades e Pléiades-Neo da Airbus) são necessários para diversas aplicações como, por exemplo, as voltadas para planejamento urbano e defesa, e terão seus espaços preservados.
Muitas vezes, a gratuidade dos dados de média resolução espacial não se sobrepõe à necessidade de imagens com melhor resolução espacial ou (OR) temporal. A questão de preço deve estar sempre associada aos benefícios resultantes da imagem. Imagem cara é aquela que não traz os benefícios esperados. Por exemplo, se o uso de imagens gratuitas de média resolução levar a uma decisão equivocada em um planejamento urbano, este uso se traduz em custo alto aos moradores da região afetada.
Investir em imagens de satélite não deve ser visto como um ato impróprio, um pecado. Mais do que investir em imagens, hoje investe-se em serviços. Muitos destes serviços estão calcados em imagens gratuitas. Pagar por imagens gratuitas? Não, paga-se pelos serviços ofertados que usam imagens gratuitas e facilitam e possibilitam o uso para diferentes propósitos. Sim, vale à pena investir em muitos destes serviços.
Conforme destaquei em artigo anterior, a novidade na área espacial são as constelações de pequenos satélites. A Agência Espacial Brasileira também está fazendo essa aposta.
Atualmente, as resoluções espaciais das câmeras dos pequenos satélites se situam entre as das imagens gratuitas e as dos já estabelecidos satélites de muito alta resolução espacial (resolução submétrica). Ou seja, ficam no meio do tiroteio dos que defendem imagens gratuitas e dos que dizem “se é para pagar, tem que ser submétrica”.
A qualidade das imagens destas constelações não é a mesma das obtidas pelos grandes satélites (gratuitas ou pagas). Não há como desenvolver uma câmera, um sistema ótico muitas vezes com distância focal maior que 1 metro, em uma caixa 3U, 6U com a mesma qualidade de um satélite de dimensões acima de 1.000U (ou 1KU) (1U = 10x10x10cm3 e 1KU =1m3) (ex.: CBERS-4A > 9KU e Landsat-8 > 13KU). Porém, assim como as câmeras fotográficas de pequenos telefones celulares ficam cada vez melhores, o mesmo tende a ocorrer com os pequenos satélites.
Muitos dos que defenderam os satélites contra os ataques das empresas de aerolevantamento, mesmo com as câmeras aerofotogramétricas produzindo imagens de qualidade muito superior (naquela época), hoje atacam as constelações de pequenos satélites em função da qualidade das imagens. Não levam em consideração diversos outros aspectos, como, por exemplo, cobertura diária ao nadir. Destaco que cobertura diária é diferente de revisita diária programada. A cobertura diária produz um acervo que pode ser acessado a qualquer momento para verificação de um evento em qualquer dia pretérito (sendo ótico, dependerá sempre de ausência de cobertura de nuvens).
A cobertura diária altera o modo como se deve processar as imagens. Mais do que nunca, os modelos e algoritmos devem focar em séries temporais. Isto provoca resistência daqueles que estão tendo sucesso trabalhando segundo os paradigmas vigentes.
A cobertura diária permite, ainda, a oferta de uma variedade de serviços e produtos. O mosaico mensal de uma região livre de nuvens, pegando o melhor de cada imagem do período, é um dos inúmeros produtos. A contratação de produtos e serviços deve contrapor os preços respectivos e os objetivos para uso das imagens. Duas instituições podem fazer uso das mesmas constelações, mas com acesso a produtos e serviços diferentes. Por isso, há que se tomar cuidado com comparações e evitar conclusões precipitadas.
Por outro lado, em pouco tempo de vida, a qualidade das imagens dos pequenos satélites apresentou uma melhora significativa, tanto no aspecto radiométrico quanto geométrico. E até mesmo em relação à resolução espectral, pois hoje já é possível encontrar câmeras com 5 bandas (B, G, R, RE e NIR). Além disso, há promessa de constelações com câmeras hiperespectrais para os próximos 10 anos, algo ainda não alcançado, de forma operacional, pelos grandes satélites.
Apesar deste anúncio, a empresa Hypersat ainda não realizou os lançamentos. A promessa é uma constelação com 6 satélites, com resolução espacial em torno de 10m e mais de 200 bandas espectrais. Por outro lado, a China lançou 2 satélites com 28 bandas espectrais cada, o que não os caracteriza como hiperespectral, e resolução espacial de 5m.
Aqui no Brasil, a empresa Visiona está desenvolvendo o primeiro pequeno satélite brasileiro de observação da Terra, o VCUB1, de dimensão 6U. A câmera E3UCAM está sendo desenvolvida pela empresa brasileira Opto Space & Defense, responsável pelas câmeras MUX e WFI dos satélites CBERS (a câmera WFI em parceria com a empresa Equatorial Sistemas). Como pode ser visto no nome, a câmera tem dimensão 3U, respondendo pela metade do satélite VCUB1. O objetivo é, no futuro, ter uma constelação de pequenos satélites brasileiros, suprindo diversas necessidades do nosso mercado, como aquelas que a AEB está tratando com a ANA e ANAEL. A torcida pelo sucesso é grande.
Resistência ao novo é algo comum na natureza humana. Medo, conforto, estabilidade, são inúmeras as razões para que, consciente ou inconscientemente, ajamos para resistir às mudanças de paradigmas ou de cultura. Mas também é da natureza humana assimilar o novo e evoluir, individual ou coletivamente. Este conflito sempre existirá.
O Novo Espaço (New Space) chega para quebrar paradigmas e trazer ferramentas que permitem que possamos responder a questões que ainda não são respondidas de forma satisfatória ou eficiente. Ele não elimina o que hoje existe, mas complementa com novos serviços e produtos. Como em todas as áreas, a evolução sempre chega, e cabe a nós decidir aproveitá-la ou ignorá-la, arcando com as consequências de nossa decisão.
*Antonio Machado e Silva, Diretor da AMS Kepler