Dois temas que estão se tornando populares nos fóruns de discussão sobre cidades inteligentes são o metaverso e os gêmeos digitais. Este último, apesar de bastante utilizado em outras indústrias, ainda é novidade quando a discussão é sobre cidades. Os dois assuntos foram debatidos no MundoGEO Connect 2022, realizado em maio em São Paulo e reuniu a comunidade de geoinformação e geotecnologias. Na FGV o tema dos gêmeos digitais de cidades tem sido debatido desde 2019 nas turmas de MBA e nos Mestrados Profissionais.

Mas afinal, o que são gêmeos digitais de cidades? São representações digitais que reproduzem a estrutura e os movimentos típicos de uma cidade real, com detalhes como a simulação de tráfego nas ruas, semáforos, domicílios, habitantes, empresas, hospitais, escolas, sistema de água, postes de iluminação e tudo o que caracteriza um ambiente urbano.

Ainda estamos tentando conhecer melhor quais seriam os benefícios práticos dessas plataformas de simulação na vida das pessoas e dos governos que as administram. Mas já é possível vislumbrar o grande impacto que a tecnologia trará na qualidade de vida e nos hábitos dos cidadãos. Talvez não seja muito exagerado compará-las, em termos de relevância, à máquina a vapor da primeira revolução industrial ou à eletricidade, comumente associada à segunda. Ambas tiveram um grande efeito – positivo e também negativo – nas cidades e na qualidade de vida de seus habitantes.

Gêmeos digitais são representações virtuais de objetos físicos. O modelo virtual inclui não só as partes do objeto representado, mas também o seu funcionamento. Outra característica importante é que o modelo virtual pode ser conectado ao objeto físico, permitindo que um interfira no outro, por exemplo quando algum incidente precisa ser mapeado e ações de reações iniciadas pelo alerta.

Apesar do conceito ter sido mencionado ainda na década de 1990 – livro Mirror Worlds de David Gelernter – foi Michael Grieves em 2002, então na Universidade de Michigan, que propôs uma arquitetura para os gêmeos digitais. A missão Apollo 13 – que ficou sem propulsores, não conseguiu pousar na Lua e teve que usar os foguetes do módulo lunar em 1973 para voltar à Terra – foi salva, em parte, pela utilização de um gêmeo não digital: a NASA executou inúmeras simulações em um modelo físico dos módulos utilizados pelos astronautas até encontrar uma configuração que aumentasse a probabilidade de sobrevivência da tripulação.

O gêmeo digital de uma cidade é uma representação virtual da mesma. Muitas cidades brasileiras já possuem pelo menos embriões, mesmo que incompletos, de gêmeos digitais: os objetos urbanos são modelados na forma de mapas digitais, cadastros imobiliários, nuvens de pontos, objetos 3D, imagens de sensores orbitais, ortofotos e diversas outras camadas de informação. Não são incomuns, por exemplo, as ruas e avenidas serem representadas por polilinhas, os lotes por polígonos e os ônibus em movimento por ícones. A parte do gêmeo digital que se refere ao funcionamento da cidade é implementada por sistemas que atuam sobre essa base de dados.

Como muitos dos fenômenos urbanos têm uma componente espacial, o GIS – Sistema de Informação Geográfica – conquistou uma importância especial neste contexto. Sensores conectam a cidade real ao gêmeo digital – permitindo, por exemplo, que o gêmeo digital saiba se está chovendo e conforme a intensidade, simular uma inundação, avisando os administradores para que tomem decisões que minimizem os prejuízos.

Atuadores conectam o gêmeo digital à cidade real. Um exemplo bastante conhecido de um atuador é o controlador semafórico, que muda as fases – verde, amarelo e vermelho – nos cruzamentos de nossas cidades.

O gêmeo digital, portanto, é uma simulação da realidade como o é, em alguma medida, a proposta de metaverso. A soma de ambos conceitos sugere que o futuro reserva muitas novidades às operações relacionadas às cidades inteligentes.

Em uma cidade, os eventos que ocorrem no mundo real – apagar um incêndio no mercado municipal podem ser testados no mundo virtual, com detalhes como desvio de tráfego para facilitar o acesso dos bombeiros, desligamento de energia para evitar o alastramento e reforço do bombeamento de água para a região. A tecnologia pode auxiliar especialmente na simulação de eventos híbridos e complexos – interagindo com a cidade real, acionando um controle semafórico adaptativo por exemplo. A otimização dos recursos disponíveis é testada no modelo virtual, mas a reprogramação semafórica ocorre na cidade real.

Na direção inversa, os gêmeos digitais e o metaverso permitirão a transferência de eventos do mundo real para o mundo virtual, promovendo estudos sobre quais reações seriam mais eficazes. Eventos de mundo virtual tendem a consumir menos recursos e ter um custo menor, são mais fáceis de operacionalizar, geram menos resíduos, são mais resistentes a interferências.

Uma boa comparação dos custos envolvidos é a realização de reunião no mundo real, que demanda salas físicas e deslocamentos dos participantes. Se o aeroporto fechar por mau tempo a reunião poderá ser cancelada.

Nestes tempos de pandemia, a maioria de nós provavelmente participou das reuniões em um mundo virtual simplificado utilizando algumas das plataformas que se popularizaram a partir de 2019 e pudemos vivenciar os benefícios – e também as limitações – de eventos que antes eram típicos de mundo real.

O metaverso promete reduzir algumas destas limitações e a utilização de avatares e equipamentos que facilitam a imersão no mundo virtual certamente terão um grande impacto em reuniões, aulas, encontros familiares, shows e até mesmo em alguns tipos de consultas médicas. O metaverso obedece a regras artificiais, criadas pelo homem e fatos como não ser obrigatório enfrentar congestionamentos para se locomover, oferecerão reduções na adaptação das cidades do futuro: avenidas não necessitarão de alagamentos e as encostas não deslizarão sobre a população atraídas pelos grandes centros urbanos. Somente por esta capacidade – de permitir a telepresença a partir de avatares – o metaverso já está ocasionando um grande impacto sobre a mobilidade nas cidades. E a mobilidade urbana é um dos principais desafios para as cidades médias e grandes não só no Brasil, mas em praticamente todo o mundo.

Há possibilidades hoje reais e com vantagens econômicas de trazer algumas partes do mundo real para o mundo virtual, com melhoria da qualidade associada à redução de custos. Em uma situação hipotética, as placas e postes com nomes das ruas e mesmo a numeração predial poderiam ser transferidas do mundo real para o mundo virtual. Sinalizar o nome de uma rua em um cruzamento no mundo real envolve alvenaria, tinta, metal e concreto. O poste ocupa espaço na calçada e interfere na mobilidade.

Quando o legislador altera o nome de uma rua nem sempre prevê orçamento para substituir as dezenas de placas nos logradouros públicos. Nas cidades brasileiras não são incomuns placas indicando o nome antigo da rua ou mesmo a inexistência total de sinalização. Inserir um poste ou uma placa no mundo virtual consome muito menos recursos e é muito mais rápido e poderia ser visualizada pelos recursos de realidade aumentada dos celulares.

Uma versão simplificada, ainda 2D, dos nomes de ruas em um mundo virtual são os mapas digitais que usamos no dia a dia em nossos smartphones. Não é mais necessário procurar o nome da rua nas placas. Basta olhar para o modelo virtual da cidade – neste caso mostrado na forma de um mapa. Imagine como ficariam nossas cidades sem placas de ruas, de numeração, de propaganda, de fachadas. Menos
poluição visual. Menos custo. Os dados seriam atualizados somente no modelo virtual da cidade e estariam sempre presentes, a uma fração do custo atual. O usuário poderia alterar a configuração para melhor atender seus objetivos: aumentar as placas com nomes de ruas, mostrar somente as fachadas de farmácias, identificar o imóvel que tenha a numeração predial desejada. Substituir a fachada de uma loja não envolveria painéis e pintura. Bastaria atualizar o modelo virtual da cidade. Representações da cidade que replicam em detalhes a cidade real apontam para os gêmeos digitais.

Fim da exclusão digital

Para que mais eventos possam migrar para o mundo virtual é essencial que todos tenham acesso aos modelos digitais da cidade e a tecnologia precisa evoluir para facilitar as consultas. Não é conveniente pensar em retirar as placas de nomes de ruas se ainda existe uma parcela da população que não consegue consultar os nomes no modelo virtual ou se a consulta é muito mais complicada do que olhar para as ruas procurando pelos postes com a identificação do logradouro.

Neste contexto, incentivar e criar as condições para que as pessoas tenham acesso aos modelos virtuais das cidades deveria ser uma política de estado. Em termos práticos, devem ser fortalecidas as ações governamentais para o acesso universal à internet – sem custos pelo menos para consultar a infraestrutura nacional de gêmeos digitais – e aos equipamentos de imersão e realidade aumentada. Nos dias de hoje, o equipamento mais utilizado para que uma pessoa tenha exposição ao modelo virtual da cidade é o smartphone.

As cidades virtuais, quando modeladas dentro do conceito de gêmeos digitais, replicam o funcionamento da cidade real. Por exemplo, a partir da representação do relevo, do solo, das redes de galerias de águas pluviais e dos dados que chegam em tempo real de pluviômetros, o gêmeo digital deve ser capaz de identificar quais áreas sofrerão alagamento e quais ruas serão interditadas.

Isto cria pelo menos duas grandes oportunidades para a administração das cidades.

A primeira refere-se à capacidade de simular, no modelo digital da cidade, os fenômenos que poderiam ocorrer na cidade real. Um exemplo, em uso há muitos anos, são os modelos preditivos de deslizamento de terras em áreas urbanas. O Brasil vem assistindo nas últimas semanas inúmeros eventos deste tipo, inclusive com perda de muitas vidas. Se o gêmeo digital for suficientemente próximo da realidade, simulações podem ser feitas para determinar em que condições ocorrerá um deslizamento e qual parcela da população estará em risco. Os profissionais de GIS – sistemas de informação geográfica – vão reconhecer facilmente esta e outras aplicações relacionadas aos desastres naturais. Ou seja: os gêmeos digitais permitirão que a administração da cidade saiba em que condições um evento negativo poderá ocorrer.

Por outro lado, os gêmeos digitais podem ser conectados à cidade real. Em geral são utilizados sensores para obter dados da cidade real: pluviômetros, fluviômetros, sismógrafos, sensores de temperatura, de luz, de poluição, de som, de raios, de tráfego, de localização de um ônibus, ambulância ou caminhão de coleta de resíduos sólidos, equipamentos cada vez mais baratos e conectados autonomamente pela internet das coisas. Os dados coletados trafegam por uma rede de comunicação e alimentam o gêmeo digital. Desta forma, o gêmeo digital começa a reagir não a uma situação hipotética, simulada, mas às ocorrências da cidade real. A reação do gêmeo digital – a informação que um alagamento ocorrerá nas próximas horas se as chuvas continuarem – poderá ser utilizada pelo gestor público para tomar medidas preventivas ou pelo menos antecipadas visando reduzir o impacto do evento negativo previsto pelo gêmeo digital.

Um desafio tem sido criar gêmeos digitais para a cidade e não para uma aplicação específica. Por exemplo, uma cidade pode ter um gêmeo digital para semáforos, outro para despacho de viaturas de emergência e um terceiro para desastres naturais. A soma dos três não cria um gêmeo digital da cidade. Para isso ocorrer é necessário que as diferentes aplicações atuem sobre uma mesma plataforma de tal forma que um evento ocorrido em uma aplicação cause reações nas demais aplicações, em uma reação em cadeia.

Para ficar no exemplo das chuvas intensas, a partir dos dados de um pluviômetro o gêmeo digital poderia reagir, gerando um alagamento virtual. Este alagamento causaria uma reação na operação semafórica que por sua vez afetaria o despacho de veículos de emergência. Em outras palavras, do ponto de vista ideal, o gêmeo digital da cidade deverá ser único, independentemente da quantidade de aplicações ou de dimensões da cidade que o gêmeo mimetizará.

Para as cidades, ainda mais útil seria uma combinação das características do metaverso e dos gêmeos digitais. O metaverso não está obrigatoriamente submetido às regras da cidade real e permite coisas inimagináveis como deslocamentos instantâneos ou que um tetraplégico possa caminhar tranquilamente pela cidade virtual, dirigir-se à sala de aula e, no intervalo, tomar café com os amigos na lanchonete da universidade.

Os gêmeos digitais, limitados pelos objetos e regras da cidade real, podem ser utilizados para simular, predizer, planejar e operar a cidade real. A combinação de metaverso com os gêmeos digitais seria algo como o Metaverso 4.0, relacionado a estudos e pesquisas realizadas pelo governo alemão: a interoperabilidade envolvendo pessoas, sensores, equipamentos e sistemas, a criação de modelos virtuais, de representações digitais de objetos reais, a habilidade dos sistemas de apoiarem os seres humanos não só na tomada de decisão mas também na execução de operações no mundo real e à capacidade destes sistemas de agirem de forma autônoma. Estes princípios estão na base de uma visão tecnológica e operacional das cidades inteligentes.

Muitas das tecnologias necessárias para executar as operações aqui mencionadas já existem. Microssimuladores de tráfego, sistemas para predição de deslizamentos e alagamentos, controles semafóricos adaptativos, sistemas de prevenção à criminalidade, realidade aumentada, imersão em mundos digitais e tantas outras. O desafio é integrar todas em uma mesma plataforma que enxergue a cidade como um organismo único.

As cidades são complexas e mesmo soluções tecnologicamente maduras, que ainda não é o caso pelo menos do metaverso, podem demorar muito a serem adotadas ou, se adotadas, não gerarem os resultados, efeitos e impactos esperados.

O metaverso atual não é, portanto, o melhor contexto para o estabelecimento dos gêmeos digitais das cidades, pela ausência de sincronicidade obrigatória com os elementos da cidade real que ele busca representar, e tudo o mais que aqui discutimos.

Mesmo assim, as cidades inteligentes estão se aproximando do metaverso. O potencial de conceitos relacionados aos gêmeos digitais integrados ao metaverso é grande para a melhoria da qualidade de vida nas cidades de qualquer porte. Isso deve estimular também as populações a permanecerem em suas localidades originais, sem a ansiedade de estarem presentes e concentrados nas grandes metrópoles. O negócio é viver e acreditar que esse futuro próximo venha a favor dos relacionamentos e da evolução humana, integrando os mundos analógico e digital.

Que o Metaverso 4.0 chegue logo!

Flavio Yuaça, Especialista em geoprocessamento pela Universidade Federal do Paraná. É Analista de Geoprocessamento na Prefeitura de Goiânia e Government Fellow da UNU-EGOV, Operating Unit on Policy-Driven Electronic Governance em 2020

Rubens de Almeida, Engenheiro e jornalista, dedicado a temas urbanos e organização de dados sobre mapas digitais e fundador do GisBI, mestrando em Gestão e Políticas Públicas (MPGPP) na FGV EAESP

Eduardo de Rezende Francisco, Professor de GeoAnalytics, Chefe do Departamento de Tecnologia e Data Science da FGV EAESP e fundador do GisBI

Publicado em 08 de Junho de 2022 na sessão “Gestão, Política e Sociedade” do jornal “O Estado de São Paulo”: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/gemeos-digitais-o-metaverso-das-cidades-inteligentes

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