Mapas são dados, não desenhos

Um dos aspectos mais importantes do uso das geotecnologias é o potencial dos GIS para produzir novas informações a partir de um banco de dados geográficos. Tal capacidade é fundamental para aplicações como ordenamento territorial e estudos de impacto ambiental, caso em que a informação final deve ser deduzida e compilada a partir de levantamentos básicos. Também é muito relevante em estudos sócio-econômicos, quando desejamos estabelecer indicadores que permitam uma visão quantitativa da informação espacial.

Combinar dados para gerar informação nova é um dos maiores desafios no uso das geotecnologias. A razão principal é que os procedimentos metodológicos de análise geográfica tradicional são, na maior parte dos casos, inadequados para uso no ambiente computacional. Neste artigo, consideramos uma das situações mais comuns em GIS: classificar o espaço em áreas mais ou menos adequadas para uma finalidade. Este problema ocorre em grande número de aplicações, como zoneamento, prospecção mineral e seleção de áreas para um novo empreendimento comercial.

Tome-se, por exemplo, um estudo de preservação ambiental em áreas de encosta, para estabelecer uma política de ocupação, associada a mapas de risco de desmoronamento e impacto ambiental. Vamos supor que dispomos de um mapa topográfico, da carta geotécnica, e de um mapa de uso e ocupação do solo (obtido a partir de foto-interpretação ou classificação digital de imagens de satélite).

O procedimento tradicional de análise baseia-se no princípio de interseção de conjuntos espaciais de mesma ordem de grandeza (Yves Lacoste) e está baseada em condicionantes ("risco máximo ocorre em áreas cuja declividade é maior que 10%, não são áreas de preservação ambiental e o tipo de terreno é inadequado"). A transposição desta metodologia analógica para o ambiente de GIS requer o uso de operações booleanas (ou, e, não) para expressar as diferentes condições. Esta técnica usa o computador como mera ferramenta automatizada de desenho, ignorando todo o potencial de processamento numérico do GIS, e gera descontinuidades inexistentes no dado original. Por exemplo, áreas com declividade igual a 9,9% serão classificadas diferentemente de regiões com inclinação de 10,1%, não importando as demais condições.

Mapas são dados e não desenhos. Tratar mapas como dados significa dar forma numérica ao espaço ao associar, a cada localização, um valor que representa a grandeza em estudo. Requer ainda, na maior parte dos casos, o uso do formato matricial (raster), mais adequado a uma representação contínua do espaço.


Mapa de áreas potenciais para a pesquisa de minerais radioativos no planalto de Poços de Caldas, segundo método baseado em álgebra booleana.

No caso em apreço, a análise espacial em GIS será muito melhor realizada com uso da técnica de classificação contínua: os dados são transformados para o espaço de referência [0..1] e processados por combinação numérica, através de média ponderada ou inferência fuzzy. Ao invés de um mapa temático com limites rígidos gerados pelas operações booleanas, obteremos uma superfície de decisão, sob forma de uma grade numérica. O que representa este resultado? Uma visão contínua da variação da nova grandeza (seja ela adequação a plantio, indicador de mineralizações ou susceptibilidade ambiental).


Mapa de áreas com diferentes prioridades para a pesquisa de minerais radioativos no planalto de Poços de Caldas, segundo modelo de médias ponderadas.

No exemplo citado, o resultado será uma grade numérica que indica, para cada localização, o risco de desmoronamento, numa gradação de 0% a 100%. Qual a grande vantagem desta situação? Ela nos permite construir cenários (por exemplo, risco de 10%, 20% ou 40%), que indicam os diferentes compromissos de tomada de decisão (maior ênfase em proteção ambiental ou em minimizar o custo econômico). Obtemos assim uma flexibilidade e um entendimento muito maiores sobre os problemas espaciais.

Esta visão é ainda compatível com as modernas teorias de Suporte à Decisão. Técnicas de tomada de decisão como AHP (ver T.Saaty, The Analytical Hierarchical Process) requerem que se faça uma atribuição de pesos a cada um dos critérios usados. Alguns GIS, como o IDRISI, já incorporam a técnica AHP no processo de análise espacial.

A diferença entre os resultados pode ser considerável. A figura à esquerda ilustra a comparação entre os procedimentos booleano e contínuo para o caso de um modelo de prospecção de minérios radioativos no Planalto de Poços de Caldas, realizado pelo Dr. Raimundo Almeida, do INPE. A classificação contínua permitiu limitar as áreas favoráveis a apenas 5% da região de estudo, e que contém 90% das mineralizações conhecidas.

Em resumo, o uso de técnicas de análise espacial baseadas em classificação contínua produz, na maior parte dos casos, resultados melhores que a técnica tradicional de interseção espacial (análise booleana). Permite ainda uma representação do espaço que, afinal das contas, é um contínuo e não uma simples junção de polígonos coloridos. Para maiores detalhes, o leitor pode consultar nossa referência (http://www.dpi.inpe.br/cursos/analise).

Gilberto Câmara é coordenador do programa de pesquisa em Geoprocessamento da Divisão de Processamento de Imagens do INPE, e foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento dos sistemas SGI/SITIM e SPRING. (Página eletrônica: www.dpi.inpe.br/gilberto).