Precisamos de mais em sistema de coordenadas no Brasil?

São muitas as questões e dúvidas envolvidas quando o assunto é a definição de um único sistema de coordenadas no país. Marcelo Carvalho dos Santos faz um levantamento da situação e aponta caminhos a serem seguidos.

No artigo Banco de Dados, GPS e Sistemas de Coordenadas, publicado na revista InfoGeo de janeiro/fevereiro de 1999, tivemos a oportunidade de apresentar um problema que o Brasil possui: a coexistência de diferentes referenciais geodésicos (sistemas de coordenadas). Na oportunidade, tratamos do perigo em se desconsiderar o sistema de coordenadas adotado em um banco de dados. Nesta coluna, iremos tratar do mesmo problema, colocado sob uma ótica diferente e, certamente, muito mais abrangente.

Conforme mencionado naquela coluna, do ponto de vista prático, existem hoje no Brasil três sistemas de coordenadas amplamente utilizados. Oficialmente, isto é, por força de lei, a Geodésia e a cartografia nacionais usam o SAD-69 (com exceção da marinha e aeronáutica que usam o WGS-84 por força de acordos internacionais). Parte da produção cartográfica, contudo, ainda usa o Córrego Alegre, referencial precursor do SAD-69, notadamente em alguns órgãos de São Paulo e Minas Gerais. O GPS utiliza o WGS-84, que é um sistema de coordenadas geocêntrico (origem do sistema no centro de massa da Terra). Para efeitos de ordem prática, o WGS-84 pode ser considerado como similar ao Sistema de Referência Geocêntrico Sul-americano SIRGAS (a relação rigorosa entre eles será tema de uma próxima coluna).

Existem diferenças entre estes três sistemas da ordem de dezenas de metros, isto é, um mesmo ponto sobre a superfície da Terra pode ter coordenadas com valores numéricos que diferem de dezenas de metros se determinadas em cada um deles. A relação entre eles é feita através de valores numéricos constantes, chamados de parâmetros de transformação: aplicando-se estes parâmetros às coordenadas de um ponto qualquer, expressas em um sistema, obtém-se as coordenadas do mesmo ponto em um outro sistema. Os parâmetros de transformação a serem usados devem ser aqueles fornecidos pelo IBGE.
O problema tornou-se um pouco mais envolvente após o IBGE ter divulgado, em 1996, uma nova listagem de coordenadas no SAD-69, que nós vamos chamar aqui de SAD-69/96. Existem diferenças entre as coordenadas do SAD-69 e do SAD-69/96 de até vários metros. Contudo, os parâmetros oficiais de transformação do SAD-69/96 para o WGS-84 permanecem os mesmos, o que é algo intrigante. Já existem cartas elaboradas no SAD69/96.

O acesso aos sistemas de coordenadas é feito através das coordenadas de pontos materializados sobre a superfície da Terra, formando uma malha de pontos, geralmente referida por rede. Do exposto acima, pode-se verificar que no Brasil existem três sistemas de coordenadas (Córrego Alegre, WGS-84 e SAD-69) materializados por quatro redes (Córrego Alegre, WGS-84, SAD-69 e SAD-69/96). Os parâmetros de transformação devem retratar a relação entre as redes, pois os levantamentos são ligados fisicamente a elas! A divulgação da listagem de coordenadas SAD-69/96 apresenta um fato inédito no Brasil: a existência de duas redes associadas a um mesmo sistema de coordenadas.

Os usuários de técnicas espaciais de posicionamento, tais como o GPS, obtém coordenadas em um sistema geocêntrico. Para aqueles que se valem do GPS nas suas atividades de posicionamento e navegação (um número cada vez maior de usuários) o ideal seria que o sistema de coordenadas oficial do Brasil fosse o WGS-84 ou o SIRGAS, e que, por conseguinte, toda a base cartográfica estivesse em algum deles, tornando desnecessário o uso de parâmetros de transformação. Contudo, não é isto o que ocorre. A base cartográfica está no SAD-69, SAD- 69/96 e, em alguns casos, no Córrego Alegre. Para se representar um levantamento feito com GPS em uma carta no SAD-69, por exemplo, é necessário o uso dos parâmetros de transformação.

O emprego de tais parâmetros não garante uma transformação imaculada porque eles não são capazes de corrigir as distorções, algumas de natureza local, que as redes, de um modo geral, possuem. Isto é, os parâmetros possuem um erro residual, que se torna mais detectável quanto maior a escala da representação. Por exemplo, em um estudo realizado pela UFPR, a trajetória percorrida por um veículo, monitorado com o GPS, por algumas avenidas e auto-estradas próximas a Curitiba, foi representado em uma carta, em escala cadastral, no SAD-69. Percebeu-se que a representação da trajetória tinha um deslocamento constante com respeito a trajetória programada na carta, característica que não se deve ao GPS, mas à transformação propriamente dita.

Deve ser enfatizado que a rede que materializa o SAD-69 foi implementada através das melhores técnicas clássicas de posicionamento geodésico à época e dentro de especificações técnicas rigorosas. As distorções mencionadas aparecem por ser o posicionamento geodésico com o GPS mais preciso do que as técnicas clássicas utilizadas. Já foi dito que, do ponto de vista dos usuários do GPS o ideal é que seja adotado um sistema de coordenadas geocêntrico. Contudo, a adoção do WGS-84 ou do SIRGAS como sistemas oficiais pelo Brasil não pode ocorrer intempestivamente, por vários motivos. Alguns deles são tratados a seguir.

Inicialmente, pode-se afirmar que tem havido um grande investimento de recursos e esforços na implantação de uma base cartográfica nacional, através de atividades de levantamento e mapeamento, em SAD-69 (algumas ainda em Córrego Alegre). Estas atividades são, na maioria das vezes, contratadas por órgãos governamentais, que se valem de recursos (públicos) oriundos do contribuinte. Existe, também, aspectos de natureza legal, como a delimitação de limites municipais, estaduais e de fronteiras, que têm ramificações econômicas, por exemplo, questões envolvendo aspectos de royalties do Petróleo.

Pode-se concluir, que não se trata de uma simples adoção de um sistema de coordenadas (e sua rede associada), mas de uma substituição: sai um sistema e entra um outro. E este é um fator complicante. Esta mudança para um novo sistema de coordenadas deve ser motivo de debate e estudo, de natureza científica (sobre como fazer) e prática (as conseqüências desta adoção, quer em nível de levantamentos como de mapeamento).

Alguns dos vários problemas associados a esta mudança são: afinal, vale a pena a transição?
qual o novo sistema a ser adotado? SIRGAS? WGS-84?
como definir a melhor relação entre os sistemas antigos (SAD-69, SAD-69/96, Córrego Alegre) e o novo, para fins geodésicos e de mapeamento, de maneira compatível com o nível de precisão do GPS?
como analisar o significado dos resíduos da relação definida acima? E como minimizá-los de modo a que não sejam significativos?
como ficam as coordenadas que tem significado legal, por exemplo, aquelas ligadas a conflitos de terra e demarcação de fronteiras?
como transformar os mapas e cartas para o novo sistema?
como lidar com a cartografia ainda hoje produzida em Córrego Alegre?

No último Congresso Brasileiro de Cartografia, realizado em Recife, promovido pela Sociedade Brasileira de Cartografia, após um debate sobre este tema, foram aprovadas várias moções sobre o assunto. Talvez a mais importante sugere que seja promovida uma discussão, de natureza técnica, e coordenada pelo IBGE, cujo objetivo seria a elaboração de toda uma estratégia de ação para a transição – conforme seja o caso, para um outro sistema de coordenadas, por exemplo, SIRGAS, com metas e prazos a serem atingidos. Como o assunto é muito envolvente, espera-se que esta transição seja feita de modo que a grande comunidade produtora e usuária de cartografia e Geodésia do país não seja surpreendida e fique sem saber o que fazer. Muito pelo contrário, que ela seja pactuadora desta mudança.

Marcelo Carvalho dos Santos é Engenheiro Cartógrafo e Ph.D. em Geodésia e Engenharia Geomática pela Universidade de New Brunswick, Canadá. Atua como professor adjunto do Departamento de Geomática, e pesquisador associado ao Laboratório de Geodésia Espacial, da UFPR. E-mail: mcsantos@geoc.ufpr.br