Nomes e Tempo Circular

É possível aprender muito com a agricultura. Ela pode ser útil para definir métodos de precisão em outras áreas e pode nos ensinar o conceito de tempo circular.

O ato de nomear é uma das mais impressionantes formas de poder e, freqüentemente, de irracionalidade. Palavras como bom e mau, nós e eles, amigo e inimigo, respeito e jeitinho, trabalhador e banqueiro, por exemplo, tem conseqüências profundas sobre a forma como as pessoas se percebem, comportam-se e se relacionam.

Outro exemplo fantástico da influência de uma palavra sobre o comportamento é o nome do tempo. Convencionou-se: tal instante fica sendo 00h 00min de 1o de janeiro de 1. O instante escolhido podia ter sido outro, como, de fato, em outras culturas foi e é ainda. De qualquer forma, dois mil anos depois do instante zero, aqui estamos nós, aos milhões, virando o milênio vestidos de branco, assistindo queimas de fogos, acompanhando shows em cadeia mundial e erguendo brindes esperançosos ao novo período que se inicia… Quer dizer: quase. Porque milênio novo, na verdade mesmo, segundo a definição do termo, só no ano que vem… Aliás, dizem, foi por isso que ainda o mundo não se acabou em labaredas de fogo – e fico me perguntando para quando estaria programado o juízo final se os anos fossem contados numa base hexadecimal.

Tempo linear. Seja como for, passada a euforia, a dor de cabeça que o Engov não segurou e a subida da serra a dois km por hora, observo na maioria das pessoas uma certa melancolia. Uma nostalgia dos anos que se foram. É como se uma porta tivesse se fechado em definitivo, uma aventura chegado ao final. Mesmo que isso signifique que outra porta se tenha aberto e outra aventura começado, o saldo emocional parece ser negativo: perdeu-se algo, algo acabou. Encerrou-se. Morreu.

Reputo esta sensação ao nosso conceito de tempo linear, em que os dias, meses e anos são como um líquido se esvaindo de um reservatório, cujo nível vai inexoravelmente baixando. Mesmo que o reservatório seja infinitamente grande, ele se escoa infinitamente. E o fato é que, no marcador do calendário, a agulha está sempre descendo.

Tempo circular. Não é assim para todo mundo. O caseiro lá do sítio não podou as árvores como eu havia pedido. Começaram as chuvas, então este ano não se pode mais. Perdemos um ano, disse eu. No ano que vem a gente corta, disse ele. Olhei-o bem nos olhos. Chama-se Rodrigo, é de poucas palavras e trabalhador. Nos olhos não havia malícia ou desconforto: a poda não foi feita porque fizemos um milhão de outras coisas, então não deu. E não há problema: as estações se repetem todos os anos, teremos uma nova oportunidade no ano que vem, nada se perdeu.
A agricultura tem muito disso: um recomeçar. Li umas histórias do antigo Egito nas minhas últimas férias; nelas se percebe este tempo cíclico, companheiro das cheias e das vazantes do rio, da semeadura e das colheitas, coordenando a vida de deuses e mortais. A água do tempo não se esvai: recua; depois torna a subir.

Aprendendo com a agricultura. Acho extremamente interessante como os diversos campos de conhecimento se fertilizam mutuamente, intercambiando técnicas, modelos e metáforas. O marketing tem apresentado uma grande convergência com a agricultura. Vejamos três exemplos:

As empresas estão revendo seu conceito de tempo, deixando de lado as transações como módulo de medida de resultado e adotando um ciclo vitalício (a este respeito, veja o indispensável HUGHES, Arthur, Database Marketing Estratégico, São Paulo: Makron, 1994; se puder prefira o original em inglês, pois a tradução está muito ruim). De acordo com esta abordagem, o tempo é mais pacífico, mais maleável, alternante entre o plantar e o colher. Não se esvai, renova-se.

Em segundo lugar, temos o modelo da "agricultura de precisão", ou "cultivo local-específico", ou "cultivo sob prescrição", como às vezes também é chamado. Todos estes nomes de moda descrevem uma "administração sob medida" do solo, fertilização e colheita, em que se procura ajustar estas atividades às características específicas de cada local no campo cultivado. Também no marketing sistemas de precisão têm sido implantados: não basta mais saber que determinadas regiões estão oferecendo baixa produtividade interessa saber porque isso ocorre e como corrigir os fatores limitativos.

Numa região vende-se pouco guaraná porque a empresa de cola forneceu as geladeiras dos bares e padarias, não deixando lugar para geladeiras de concorrentes; naquela outra região, o fraco resultado decorre de falta de agilidade na negociação com supermercados; numa terceira, os pequenos comerciantes estão sem fôlego para fazer estoques. Cada microrregião requer um tratamento específico – e o recebe, em vez de um tratamento homogêneo para todo o campo. Para a primeira, luminosos; agilidade para a segunda; para a terceira, crédito.

O marketing de precisão nos conduz ao nosso último exemplo: a implementação de condutas local-específicas requer informação detalhada sobre o mercado, geralmente em nível de quarteirão ou grupos de quarteirões; tratar e analisar informação detalhada e volumosa, por sua vez, demanda técnicas estatísticas sofisticadas, muitas das quais foram sistematizadas e aperfeiçoadas no início do século, por Sir Fischer. Praticando meu recém adquirido hobby de… arqueologia de textos… estava lendo neste final de ano justamente a primeira edição do clássico O Desenho de Experimentos (FISCHER, Ronald. The Design of Experiments, London: Oliver & Boyd, 1935) onde se discute a controvertida análise de Galton sobre os dados de um experimento de Darwin relativo a germinação cruzada. Ali descobri que muitos dos principais desenhos experimentais muito utilizados no marketing de hoje nasceram para resolver problemas agrícolas.

Ciclo completo. A moral desta história é a seguinte: muitas das técnicas que estamos utilizando hoje para o marketing de precisão, seguindo os passos da agricultura de precisão, foram desenvolvidas no começo do século para analisar… problemas agrícolas! Assim, fechada uma volta na espiral, estamos novamente próximos do ponto de partida. Acho que Rodrigo (o caseiro do sítio) tem razão: o que não fizemos neste século, e, na verdade, neste milênio, faremos, sem afobação, no próximo.

Desejo a todos os leitores desta coluna, a seus familiares e amigos, um novo milênio de conquistas e realizações, em que predominem os benefícios coletivos sobre os individuais, e em que haja paz e prosperidade para todos.

PS: Se você leva os nomes muito ao pé da letra, por favor aceite estes votos como um adiantamento em relação aos cumprimentos oficiais, que renovarei na virada do ano que vem. Abraços.

Nomes e conclusões equivocadas

Considere a tabela (hipotética) abaixo, retratando o consumo de um produto em quatro diferentes regiões. Note como o consumo per capita é praticamente o mesmo em todas elas: à primeira vista, isto sugere que a localização não tem impacto sobre o consumo.

Agora, analise o Mapa 1, abaixo, em que a densidade populacional é de fato homogênea entre as quatro regiões mas a densidade de consumo comporta-se como está representado: pouco consumo representado por rosa claro e muito consumo por vermelho escuro. O consumo per capita resultou aproximadamente igual nas regiões apenas porque cada uma ficou com uma fatia parecida do local onde as vendas se concentram.

Mantidas as distribuições de população e consumo, se a divisão (arbitrária) das regiões tivesse sido um pouco diferente, como no Mapa 2, a conclusão seria totalmente diversa do que revela (oculta?) a tabela inicial. O consumo estaria concentrado quase totalmente na Região Sul, cujo consumo per capita seria muito diferente do consumo per capita das outras áreas. Neste caso, a localização estaria fazendo toda a diferença. Note como, do Mapa 1 para o Mapa 2 nem a população nem o consumo se alteraram: o que mudou foi o nome dado a cada pedaço de chão.

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Francisco Aranha é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), e consultor em Marketing Geográfico pela Paredro Administração (SP).
Email: faranha@fgvsp.br