O impacto do artigo que abalou a imprensa, os ambientalistas e o Governo Brasileiro

É sempre estimulante quando o ramo de conhecimento em que trabalhamos aparece com destaque na imprensa, mas muitas vezes este encorajamento deve ser temperado com um pouco de cautela. Refiro-me à polêmica provocada pelo artigo "The Future of the Brazilian Amazon", publicado na prestigiosa revista "Science" por um grupo de pesquisadores brasileiros e americanos, liderados por William Laurance, do Smithsonian Tropical Research Institute (Panamá) e do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), de Manaus.

O artigo realiza um exercício de simulação, num ambiente de Geoprocessamento, sobre a expansão do desmatamento que poderá ser causado pelas estradas e demais projetos de infra-estrutura previstos no programa Avança Brasil, patrocinado pelo Governo Federal. Este programa prevê a construção ou recuperação de vias de transporte na região, como a restauração das estradas Cuiabá-Santarém e Manaus-Porto Velho e da construção da hidrovia do Rio Madeira, além do estabelecimento de saídas para o Norte – via Rio Branco (RR) e Oiapoque (AP) – e para o Pacífico (via Cruzeiro do Sul, AC).

A principal ferramenta de simulação foi a construção de zonas de expansão ("buffers") em torno das estradas e demais projetos de infra-estrutura previstos no programa Avança Brasil. O autor postulou que as taxas médias de desmatamento ocorridas nas últimas duas décadas se manterão no período 2000-2020 e fez hipóteses adicionais sobre a possível degradação em áreas de reserva e conservação. Obteve como resultado uma área desmatada total para 2020 de 28% da floresta no caso "otimista" e 42% da floresta no caso "pessimista" (vejam as Figuras 1 e 2). Para que o leitor tenha uma idéia melhor dos cenários previstos por Laurance et al., reproduzimos na Tabela 1 algumas das hipóteses feitas pelo autor.

Fig.1 – Cenários de Degradação da Amazônia, segundo Laurance et al. À esquerda, o caso "otimista". À direita, o caso "pessimista".

O impacto desta publicação foi imediato, com grande divulgação na imprensa nacional e previsíveis reações de ambientalistas e do Governo. No entanto, até agora pouco se fez em termos da análise concreta da metodologia adotada. E, numa pespectiva de crítica desapaixonada (se é que isto é possível no caso), esta metodologia não resiste a uma análise mais rigorosa.

Para começar, a principal hipótese do trabalho é que as condições existentes no chamado "arco do desflorestamento" serão mantidas para toda a Amazônia. Esta hipótese ignora a grande diversidade climática, florística e pedológica e as desigualdades de distribuição populacional da região. Faltam dados sobre modelos socio-econômicos dos diferentes tipos de ocupação (madeireira, grãos, agropecuária) e sobre a relação destes modelos com os condicionantes físicos e climáticos.

Para citar apenas um problema, tomemos o caso do clima. A Amazônia apresenta três grandes áreas climáticas, do ponto de vista da precipitação média mensal: uma região com estação seca definida (RO, norte de MT, sul do PA), outra sem estação seca definida (especialmente a Amazônia Oriental) e uma região de transição (centrada na fronteira entre o AM e o PA). No entanto, no artigo da "Science", os autores trataram a rodovia Manaus-Porto Velho do mesmo jeito que a Belém-Brasília, o que implica que o impacto dos diferentes regimes climáticos não foi considerado na análise. Várias outras hipóteses apresentam problemas semelhantes de exagerada simplificação.

Para nós da área de Geoinformação, o trabalho ilustra à perfeição o alcance e as limitações da atual tecnologia de SIG. Um modelo preditivo, para ser útil, deve ser capaz de responder, mesmo que aproximadamente, às três perguntas cruciais: Onde acontecerá o fenômeno previsto? Quando estes eventos irão ocorrer? Quais as causas do fenômeno? O trabalho de Laurance é típico do atual estágio da tecnologia de SIG: os autores fazem uma análise estática, puramente geométrica, apenas apontando para a localização dos processos de degradação (onde), sem prever nem a evolução temporal (quando) nem as causas (o porquê). Em consequência, o artigo não pode ser considerado como uma estimativa realista do processo de desmatamento e degradação da Amazônia.

Resta o desafio maior para todos nós: propor um modelo realista para o futuro da Amazônia. Este desafio não será fácil, pois, além de reunir competências de várias disciplinas, teremos de produzir uma nova geração de tecnologia de Geoprocessamento, que supere as visões estáticas dos "mapas" como a principal forma de representar computacionalmente o espaço geográfico. Como leitura suplementar, os interessados em modelos de uso e cobertura da terra podem consultar o livro on-line "Analysis of Land Use Change" em http://www.rri.wvu.edu/WebBook/Briassoulis/contents.htm. Sobre as limitações da atual geração de SIG, vejam uma recente conferência do autor (http://www.dpi.inpe.br/gilberto/epistemologia.pdf).

Apesar de seus problemas, o trabalho tem um mérito importante: chamar a atenção da opinião pública mundial sobre o fato que os investimentos em infra-estrutura e os projetos de desenvolvimento sustentável são tratados de forma estanque e desigual pelo Governo Federal, com ênfases bastante distintas. Talvez o melhor julgamento sobre o tema tenha partido do próprio Laurance, em entrevista ao "Estado de São Paulo": "O que estamos fazendo é iniciar uma discussão, provocar uma polêmica, para alertar todos os segmentos da sociedade". Se era essa a intenção, certamente o objetivo foi atingido…

Tabela 1 – Hipóteses explícitas sobre fatores de degradação da Amazônia adotadas por Laurance et al. (parcial)

OBS: Para a tabela completa, favor referir-se ao artigo de W. Laurance et al., "The Future of the Brazilian Amazon", Science, n.291, 16 Janeiro 2001.

Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto).