Nossa existência no tempo nos é determinada, mas temos ampla liberdade de escolha de nossa localização. Esta é influenciada, embora não de todo, pelo nosso lugar de origem. Encontrar a localização correta é essencial para uma vida de sucesso, também para um empreendimento de sucesso e para um assentamento duradouro – em suma, para a sobrevivência do grupo. Adicionalmente, uma localização adequada tem que ser a localização dos acontecimentos certos. […]" (Lösch, 1954, p. 3)
Uma questão de sobrevivência. Com as palavras acima o economista alemão August Lösch inicia seu Economia da Localização, publicado em primeira edição em 1940 e em segunda edição logo depois do outono de 1943. Foram redigidas, portanto, em meio a privações e à guerra.
Consta que Lösch não fez concessões ao regime Nacional. Nas vastas referências utilizadas em seus trabalhos, Lösch nunca hesitou em citar um autor que pertencesse a uma nação ou raça "erradas". Esta posição muito deve ter lhe custado. Segundo seu tradutor, Wofgang Stolper, em nota biográfica incluída na primeira edição americana de The Economics of Location (1954), Lösch nunca levou em consideração a possibilidade de aceitar cargo governamental ou posição acadêmica que exigisse um juramento de lealdade a Hitler.
Sua morte prematura, aos 39 anos, logo após o fim das hostilidades em 1945, e as demais circunstâncias em que foi produzida a citação do primeiro parágrafo, me fazem ler nas expressões "ampla liberdade de escolha" e "vida de sucesso" em "localização correta" uma triste ironia e uma densidade que transcende a problemática econômica de que trata o texto. De fato, quando afirmou que uma localização adequada tinha que ser a localização dos acontecimentos certos, Lösch devia saber bem do que estava falando.
Mal recebido. Alguns anos atrás encontrei pela Internet, num sebo eletrônico, o exemplar da primeira edição americana que estou comentando. Pertenceu à biblioteca de Upsala College, em East Orange, New Jersey. A anotação do tombo mostra que foi adquirido pela faculdade em junho de 1955, e o seu perfeito estado de conservação talvez seja explicado, ao menos parcialmente, pela ficha de empréstimos no bolso da contracapa: o livro circulou apenas quatro vezes, uma em 1955, outra em 1956, outra em 1957, e a última em 63. Não era, portanto, um livro muito popular.
Nem poderia ser. O trabalho é difícil, longo (520 pp.), cheio de diagramas microeconômicos complicados e formulações matemáticas. Longe de ser um livro do que hoje chamamos de geomarketing, é um tratado de teoria econômica em alto nível de abstração, permeado de sólidos, mas pouco acessíveis, argumentos estatísticos e caracterizado por uma sistemática tentativa de verificação empírica, nem sempre muito palatável.
Beavon (1977), em um excelente estudo em que reinterpreta a Teoria do Lugar Central, comenta que o livro de Lösch foi rechaçado por geógrafos em 1958, permanecendo de conhecimento restrito entre economistas e econometristas.
Christaller. Muito mais sucesso teve o trabalho publicado em 1933 por outro alemão, Walter Christaller, este um geográfo. A tradução para o inglês, Central Places in Southern Germany, foi editada em 1966 pela Prentice-Hall. Infelizmente ainda não tive acesso ao livro, amplamente citado em toda a literatura de geomarketing; tampouco descobri muito sobre a biografia de Christaller; de forma que agora recorremos a fontes secundárias.
A teoria, afinal. As formulações desenvolvidas por Lösch e Christaller ficaram conhecidas, em conjunto, como Teoria do Lugar Central (TLC). Ampla e calorosamente discutida pelos pesquisadores das gerações seguintes, a TLC já foi considerada "a tentativa de desenvolvimento de uma teoria da estrutura espacial [do mercado] mais inovadora e de maior sucesso"; por outro lado, também foi acusada de ser "demasiado implausível para servir de base a qualquer trabalho empírico".
O resumo a seguir vem basicamente de Brown (1992) e Beavon (1977).
A TLC descreve o número, tamanho, espaçamento e composição funcional de centros comerciais, num mundo microeconômico de livre concorrência típico, em que adicionalmente foram especificadas condições relativas à geografia:
quanto aos consumidores, assume-se que são pequenos, igualmente afluentes, perfeitamente bem informados, racionais e tomam decisões buscando maximizar sua utilidade;
quanto aos fornecedores, admite-se que são pequenos, racionais e tomam suas decisões buscando maximizar seu lucro; vendem fob e operam com custos equivalentes num ambiente em que o capital é móvel e não há barreiras de entrada;
quanto à geografia, postula-se um espaço homogêneo, em que os custos de transporte são uniformes em todas as direções, e onde tanto os consumidores quanto os fornecedores estão uniformemente distribuídos; finalmente, com relação ao comportamento geográfico dos consumidores, pressupõe-se que fazem expedições de compras com objetivo único, comprando um único produto na localização mais próxima que o ofereça.
quanto à geografia,postula-se um espaço homogêneo, em que os custos de transporte são uniformes em todas as direções, e onde tanto os consumidores quanto os fornecedores estão uniformemente distribuídos; finalmente, com relação ao comportamento geográfico dos consumidores, pressupõe-se que fazem expedições de compras com objetivos único, comprando um único produto na localização mais próxima que ofereça
O modo de operação da TLC é dedutivo. Baseada nas hipóteses simplificadoras acima, a teoria conclui que:
devido aos crescentes custos de transporte, a demanda por um tipo particular de produto diminui conforme aumenta a distância entre o mercado consumidor e a localização do fornecedor; a partir de uma certa distância, a demanda cai a zero; esta distância máxima que os consumidores estão dispostos a percorrer na busca por um produto chama-se "área de influência" ou "amplitude" do bem;
por outro lado, é necessário haver um nível mínimo de demanda para que uma mercadoria se torne disponível num ponto de venda; o raio da menor área de captação em torno de um ponto de venda que ainda viabiliza a disponibilização de um produto chama-se "limiar" do produto; este limiar é diferente de uma categoria de produto para outra;
quando a amplitude é maior que o limiar, o produto é comercializado;
em qualquer mercado haverá muitos ofertantes de mercadorias com baixo limiar e baixa amplitude (bens de "baixo nível") ; e poucos ofertantes de bens de alto limiar e alta amplitude (bens de "alto nível") ;
os ofertantes de cada nível estarão homogeneamente distribuídos no espaço, formando uma retícula triangular equiespaçada;cada ofertante estará no centro de uma área de influência de forma hexagonal, cuja amplitude reflete o nível do bem;
finalmente, quando a organização espacial dos diversos níveis é sobreposta, surge a famosa hierarquia dos centros de comércio (Figura 1).,
Figura 1 – Hierarquia de Localidades Conforme Teoria do Lugar Central.
Relaxamento de pressupostos. O modelo da TLC é baseado em suposições, não em observações empíricas; consequentemente, descreve como as atividade comerciais devem ocorrer se as suposições forem verdadeiras, e não como de fato as atividades comerciais ocorrem. No entanto, estudos empíricos mostram que em linhas gerais a teoria é compatível com a realidade.
Relaxamento de pressupostos. O modelo da TCL é baseado em suposições, não em observações empíricas; consequentemente, descreve como as atividades comerciais devem ocorrer se as suposições forem verdadeiras, e não como de fato as atividades comerciais ocorrem. No entanto, estudos empíricos mostram que em linhas gerais a teoria é compatível com a realidade.
Em conseqüência, toda uma série de estudos foi derivada da formulação original, cada variante removendo ou alterando uma suposição pouco realista: os custos de transporte não precisam ser homogêneos; os mercados não são uniformes; as expedições de compra têm objetivos múltiplos; os clientes não compram um produto de cada vez; etc. Outros efeitos foram também incluídos, como a ação dos níveis de governo e a influência da infra-estrutura existente em uma região.
Em todos estes novos modelos, emerge uma rede hierarquizada de localidades, desde que haja uma economia de mercado que interligue entre si numerosas áreas, cada uma produzindo excedentes locais e consumindo bens não localmente produzidos.
Um estudo brasileiro. Existe um estudo do IBGE, produzido na tradição TCL e publicado em 1987, que investiga a estrutura hierárquica dos municípios brasileiros. Neste estudo "a centralidade" de cada município foi aferida com base nos bens e serviços nele ofertados e na área onde a distribuição se realiza. A compreensão desta estrutura é fundamental para avaliar como a renda disponível para consumo desloca-se de um município ao outro, afetando fortemente qualquer estimativa de potencial de mercado de produtos com ampla área de influência. A Figura 2, a seguir, mostra a hierarquia dos principais municípios do Estado de São Paulo.
Figura 2 – Hierarquia dos Municípios do Estado de São Paulo (Fonte: IBGE, 1987)
Referências
BEAVON, Keith S. O. Central Place Theory: A reinterpretation. London: Longman, 1977, 157 pp.
BROWN, Stephen. Retail Location: A Micro-Scale Perspective. Brookfield: Avebury, 1992, 315 pp.
IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Diretoria de Geociências. Regiões de Influência das Cidades: Revisão Atualizada do Estudo "Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas". Rio de Janeiro: IBGE, 1987, 183 pp.
LÖSCH, August. The Economics of Location. New Haven: Yale University Press, 1954, 520 pp.
"Francisco Aranha, Doutor em Administração de Empresas, é professor da FGV/EAESP e consultor em Marketing de Precisão. Email: faranha@fgvsp.br."