Várias teorias do geomarketing apresentam uma vertente microeconômica. Teorias são úteis quando permitem fazer previsões específicas e proíbem certos acontecimentos

Outro dia li no jornal uma historieta que associei ao tema deste capítulo. Não me lembro mais da identidade das personagens – supostamente reais. Mas, na essência, o "causo" é o seguinte. Um sujeito sofre um derrame cerebral e é internado no hospital. Depois de uns dias melhora e recebe visita do amigo. A conversa é constrangedora, pois o sujeito está confuso e sua fala é meio sem nexo. No corredor, ao final da visita, a aflita esposa do enfermo pergunta ao amigo se ele acredita em recuperação completa. O amigo coça a cabeça, suspira e responde: "Encare a coisa por este ângulo: felizmente, ele é economista; se não ficar 100% bom, é grande a chance de ninguém perceber."

Que nenhum economista se ofenda, por favor. Segundo consta, a história é rememorada aos risos, até pelos próprios envolvidos. E, de qualquer forma, é conhecida a distância entre a teoria econômica e os resultados práticos de sua aplicação. Ainda estão por aí, por exemplo, os ex-fiscais do Sarney, que não me deixam mentir.

Várias das teorias mais tradicionais do geomarketing têm uma vertente microeconômica. A ligação do tema deste capítulo com a história do economista é que, do ponto de vista prático, se algumas destas teorias geomercadológicas não funcionarem, parece que ninguém vai perceber. O que diz muito sobre sua adoção como referência de conduta e sobre sua utilidade para os negócios. Uma teoria é útil quando permite fazer previsões específicas e proíbe certos acontecimentos. E aí, quando "furam", todo mundo percebe.

Leilão de áreas nobres. Consideremos o caso da "teoria do leilão de aluguéis" (não sei se há tradução melhor para bid rent theory; aceito sugestões).

Ela parte do princípio que a urbanização é um fenômeno econômico, e que, portanto, a forma como o espaço se estrutura é resultado da ação das forças de mercado, isto é, da demanda e da oferta (por lotes de terra, no caso).

Os demais pressupostos são os tradicionais da microeconomia,
 livre concorrência,
 informação perfeita,
 comportamento racional dos agentes, e
 maximização da utilidade ou dos lucros,

acrescidos de complementos geográficos:
 planície homogênea e
 custos de transporte uniforme em todas as direções.

Porque o centro da cidade é, segundo a teoria, o ponto de convergência de toda a rede de transportes, é também o local mais acessível, tanto para consumidores quanto para trabalhadores e fornecedores de insumos. Consequentemente, o centro da cidade é a localização urbana que oferece um potencial de mercado máximo.

Os agentes econômicos, representados por unidades comerciais, industriais e residenciais, competem entre si, dando lances pelos lotes de terra melhor localizados (isto é, lotes mais centrais), de onde podem extrair um benefício máximo na forma de maiores lucros ou maior utilidade.

A competição por um estoque limitado e inelástico de terrenos faz com que, no longo prazo, todas as áreas urbanas sejam ocupadas, com os agentes capazes de pagar os maiores aluguéis apossando-se das melhores localizações. E isto, felizmente, leva (segundo a teoria) a uma situação ideal, em que a melhor terra é alocada para o melhor uso.

Entre os diferentes tipos de atividade, no entanto, varia o impacto da localização sobre os resultados econômicos:

 para o varejo, uma grande área de influência e um grande afluxo de consumidores é crucial; por este motivo, sua disposição a pagar aluguéis (curva AA1 na Figura 1) é extremamente sensível a aumentos na distância da localização até o centro da cidade;

 já para unidades industriais, a necessidade de uma localização central é menos premente, e sua curva de aluguel como função da distância ao centro é menos inclinada (curva BB1);
 finalmente, para as unidades residenciais, a localização central é ainda menos importante (curva CC1) e, por este motivo, elas se dispõem a pagar aluguéis menores.

Vão-se os dedos, ficam os anéis. Como resultado destas suposições todas (de novo: não muito realistas), surge para as atividades econômicas uma estrutura espacial anelada em torno do centro, com a predominância de um tipo de atividade em cada anel (veja a Figura 2).

No anel central (de raio OD1 ) predomina o comércio, uma vez que, nesta faixa de distância, os lances mais altos são oferecidos pela unidades comerciais.

Note que no ponto D1 a curva do comércio (AA1) cruza com o a curva da indústria (BB). A partir dele e até a distância D2 , os aluguéis mais altos são pagos pela indústria, que predomina no anel D1D2.
No ponto D3 a curva da indústria (BB1) cruza com a curva residencial (CC1) e, a partir dele, os aluguéis mais altos são os residenciais.

Dentro de cada anel, por exemplo no central, onde são pagos os maiores aluguéis e onde predomina o varejo, a mesma estrutura anelada se reproduz entre as diferentes atividades varejistas. Assim, os joalheiros, por exemplo, ficam mais próximos da área premium, do que os vendedores de móveis, já que aqueles, por trabalharem com mercadorias de alto valor e precisarem de menos espaço, podem pagar aluguéis mais altos que estes: móveis têm valor relativamente menor e são mais espaço-intensivos. O gráfico da Figura 3, cuja interpretação é análoga à do gráfico anterior, retrata este estado de coisas.

Dois séculos depois… Os principais estudos nesta linha de bid rent foram produzidos há bastante tempo. O tradicional Thunen (1826) escreveu dois séculos atrás; Hurd (1903), Haig (1926) e Ratcliff (1935, 1949), Alonso (1960), Wingo (1961) e Muth (1961) são todos… do século passado.

Entre eles e nós surgiu, e se disseminou como uma praga, o automóvel (para não mencionar a Internet). O automóvel, por sua vez, possibilitou cidades maiores e centros suburbanos. Assim, a noção de centralidade de uma localização, se não perde o sentido, pelo menos muda muito. Às hipóteses do modelo, já bastante restritivas, somam-se, portanto, novas circunstâncias que precisariam ser assimiladas pela teoria.

Seja como for, uma configuração concêntrica, com anéis de especialidade, parece compatível com a forma geral das cidades. Digamos (mesmo sem que haja evidência empírica inambígua) que ela seja uma tendência real. Minha pergunta então é: e daí?

Esta teoria basicamente descritiva ("as cidades são assim", ou antes, "deveriam ser assim se valerem as premissas") tem que impacto sobre o planejamento e o marketing das empresas?

Se é para saber como as cidades são (ou deveriam ser), seria mais simples olhar para ela, sem teoria nenhuma. Sem falar que é mais fácil mapear onde estão as unidades comerciais, industriais e residenciais, do que mapear o valor de terrenos e aluguéis.

Finalmente, que previsões de impacto para os negócios esta teoria permite fazer? Talvez algumas de interesse para o planejamento urbano. Mas para o geomarketing? E tendo em vista esta teoria, que coisas NÃO poderiam acontecer?

As respostas são, sem dúvida, controvertidas. Segundo a sistematização de Brown (1992) há autores que concluem pelo "grande valor prático" da teoria de bid rent (Davies, 1976; Whiteland, 1987). Outros julgam-na questionável, na melhor das hipóteses. E perniciosa, na pior (Harvey, 1973; Dawson, 1979).
Como ficamos?  

Francisco Aranha, Doutor em Administração de Empresas, é professor da FGV/EAESP e consultor em Marketing de Precisão. Email:francisco.aranha@fgvsp.br – Website: www.fgvsp.br/aranha