Algumas empresas do setor vêem a questão da segurança pública como uma boa oportunidade de negócios, uma chance de oferecer mais um "sistema" acompanhado de mapeamento das ocorrências

Se Deus não existe, tudo é permitido". A frase é do escritor russo Fiodor Dostoiévski, autor de obras como o magistral Crime e Castigo, no qual o perturbado Raskolnikov vaga por São Petersburgo após assassinar uma velha judia por dinheiro, assombrado pelo fantasma da morta e pela perspectiva de ser punido por Deus e pela polícia do czar. O impacto psicológico do crime em Raskolnikov é amplificado por seu profundo misticismo, característico da alma russa e do autor. Dostoiévski, em suas reflexões, nos deixa antever a porta do inferno que se abre ao abolirmos a existência de "Deus". Não falo aqui do ser supremo das crenças pessoais, mas do papel de um "Deus" em sentido amplo, como a combinação de uma consciência repressora coletiva e de um Estado organizado, detentor único do direito à violência. A fragilidade deste "Deus coletivo" é um ponto de partida para entender a violência na Brasil de hoje, uma combinação perversa de desmonte do Estado, urbanização desenfreada, dinheiro fácil do tráfico de drogas e falta de perspectiva para nossa juventude.

A explosão da violência nas grandes cidades brasileiras tem motivado um substancial interesse no uso de tecnologias de geoinformação. Algumas empresas do setor vêem a questão da segurança pública como uma boa oportunidade de negócios, uma chance de oferecer mais um "sistema integrado de alerta criminal", agora acompanhado da capacidade de mapeamento das ocorrências. Isto não basta e pode até atrapalhar. Quando se trata de criminalidade, tais respostas simplistas não vão muito longe. A associação direta entre pobreza e violência esbarra em casos como a Índia, cujos crimes contra o patrimônio são muito baixos, apesar da miséria que leva 2 milhões de pessoas a morar nas ruas de Calcutá. A ênfase em equipar a polícia com a tecnologia mais recente também falha em esclarecer como Londres, com seus bobbies sem armas, tem taxas de homicídio cinco vezes menores que Chicago.

É preciso muito mais. Necessitamos de uma estratégia inteligente de combate ao crime, baseada na análise criteriosa de dados e capaz de romper com mitos estabelecidos. Para tanto, é preciso uma combinação multidisciplinar de sociólogos, antropólogos, estatísticos e geoinformáticos, além de uma polícia disposta a empreender um processo doloroso de renovação.

O exemplo virtuoso, com em muitos outros casos no setor de geotecnologias, vem de Belo Horizonte, com o CRISP (Centro de Estudos sobre Crime e Segurança Pública), uma iniciativa que combina a universidade, a polícia mineira e a PRODABEL. Liderado por Cláudio Beato (sociólogo) e Renato Assunção (estatístico), o CRISP é uma iniciativa pioneira, na qual a tecnologia de geoinformação é parte de uma visão mais ampla do problema da segurança pública. O primeiro passo é o reconhecimento de que "delinqüentes não são diferentes dos não-delinqüentes: ambos estão igualmente predispostos ao crime", nas palavras de Cláudio Beato. Nessa visão, quem está doente é a sociedade e não o criminoso. Isto implica que é necessário ir além da simples localização dos endereços de ocorrências, para considerar o contexto socioeconômico em que o crime ocorre, a disponibilidade de alvos para ação criminosa, e a ausência de mecanismos de controle.

Embora o CRISP tenha pouco tempo de existência, já produziu resultados importantes. Suas análises mostram não haver, em Belo Horizonte, correlação significativa entre desemprego e crime violento, nem entre desemprego e crime contra o patrimônio. Além disso, das 81 áreas urbanas que contém favelas, os homicídios se concentram em apenas 6 regiões, que apresentam condições de exclusão social muito piores que o resto da cidade, com menor infra-estrutura urbana e piores condições de moradia e assistência social. Outro exemplo: a partir do mapeamento das ocorrências de assaltos a táxi, foi possível identificar áreas críticas de incidência deste crime. Montou-se uma estratégia de ação que envolveu os motoristas e a polícia, com postos de interceptação e apreensão de armas nessas áreas. O resultado foi uma queda de 34% em assaltos em 2001, por comparação com 2000. O Centro está ainda envolvido em projetos de mapeamento detalhado da violência em BH, sempre buscando relacionar delitos com condicionantes sociais. Para maiores detalhes, veja-se a homepage www.fafich.ufmg.br/~crisp.

Uma condição sine qua non para o sucesso de iniciativas como o CRISP está no suporte de geoinformação do projeto, que conta com a experiência da equipe da PRODABEL, liderada pelo colega de infoGEO Clodoveu Davis. Para quem se interessa pelo tema, há um artigo fundamental de Clodoveu, "Endereços a Base de um GIS Urbano", disponível em sua webpage (www.cdavis.hpg.com.br). Ele mostra como uma base consistente de endereços é condição fundamental para a integração de dados em GIS urbanos, onde os dados provêm de diferentes fontes (cadastro, polícia, concessionárias) e estão em permanente estado de atualização.


Taxas de crimes violentos em Minas Gerais, para os anos de 1988 e 1997. Fonte: Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG)

Iniciativas semelhantes ao CRISP estão acontecendo em outras cidades brasileiras, como em São Paulo, onde está sendo estabelecido um "Centro de Estudos Territoriais sobre Desigualdades Sociais", em convênio entre a PUC/SP, INPE, Prefeitura Municipal e Instituto Polis. Estes exemplos mostram que, felizmente, a sociedade brasileira está reagindo ao processo recente de desarticulação do setor público, e que o bem comum pode e deve estar acima de considerações puras de mercado. Revela ainda que as geotecnologias, se colocadas a serviço de uma visão transformadora da realidade, tem um papel social fundamental em nosso Brasil. Oxalá nossa comunidade perceba este desafio e saiba usar seu conhecimento de forma responsável….

Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto)