Juscelino Kubitschek foi o responsável pela criação de um vasto acervo de informações geográficas

Em setembro de 2002 o Brasil comemorou o centenário de nascimento de Juscelino Kubitschek de Oliveira, um dos presidentes mais carismáticos e mais celebrados de todos os tempos. Ao analisar a biografia de JK, sua passagem pela presidência, coroada pela construção de Brasília, costuma ofuscar toda a sua experiência anterior. A política não estava em seus planos ao se formar em Medicina, mas as circunstâncias o levaram à Casa Civil do governo do Estado, e daí à Câmara Federal aos 32 anos. Com 37, foi nomeado prefeito de Belo Horizonte pelo então interventor federal no Estado, Benedito Valadares. Durante essa experiência como prefeito, que descrevo com mais detalhes a seguir, recebeu o apelido de "prefeito furacão". A partir dela, JK reuniu credenciais para eleger-se deputado constituinte em 1945, após o fim do Estado Novo, e para eleger-se governador de Minas Gerais em 1950, pelo voto direto. No Estado, realizou um governo também notável pela quantidade de ações e pelo ímpeto desenvolvimentista, na construção de estradas, de hidrelétricas, na atração de empresas estrangeiras, na ampliação dos sistemas públicos de saúde e educação. Suas realizações o levaram à Presidência em 1955, também pelo voto direto.

Ao assumir a prefeitura de Belo Horizonte, anunciou que iria "administrar na rua, e não fechado em um gabinete". Rodava freqüentemente por toda a cidade, sempre conduzido pelo mesmo motorista que dirigia o carro em que veio a falecer, no acidente de 1976. Isso lhe deu uma visão abrangente de demandas e prioridades, e dessa visão vieram muitas iniciativas importantes.


JK em 1940

Uma dessas iniciativas foi justamente a formação de um acervo de informação geográfica. Um dos instrumentos que foram produzidos em sua administração na prefeitura de Belo Horizonte, entre 1940 e 1945, foi um conjunto de plantas cadastrais da cidade concluído em 1942. Foi a primeira iniciativa do gênero desde a fundação da cidade, executada a partir da constatação da grande diferença existente entre a cidade projetada e a cidade real. De fato, plantas históricas de BH anteriores a essa época freqüentemente misturam elementos do projeto da cidade, conforme idealizado no final do século XIX, e elementos reais, edificados. Realizadas em escala 1:2000, as plantas de JK são coloridas e foram traçadas a nanquim sobre papel canson, em um formato próximo do A3. São 161 folhas organizadas segundo um critério de articulação. Foram produzidas diversas cópias. A Prodabel detém hoje uma dessas cópias, inteiramente restaurada, e já devidamente rasterizada e vetorizada. Outra cópia restaurada encontra-se no Museu Histórico Abílio Barreto, também fundado por JK na década de 1940.

A figura 1 apresenta uma amostra das plantas cadastrais de JK, onde pode ser observada a riqueza de detalhes. Curvas de nível a cada metro, toponímia, áreas verdes, hidrografia, equipamentos públicos de uso coletivo, e até as linhas de bonde. As edificações estão também rigorosamente detalhadas, com um detalhe interessante: a indicação do endereço de cada uma delas, anotado no interior do polígono. O estilo de anotação corresponde de perto ao que usamos hoje, no geoprocessamento municipal: apenas o número de porta é indicado, e subdivisões internas são deixadas de lado.


Figura 1

A realização desse levantamento teve um motivo prosaico, amplamente conhecido pelos administradores atuais: aumentar a arrecadação, ajustando a política tributária à realidade. Ao mesmo tempo, o levantamento serviu para orientar as ações da prefeitura na área urbanística, que foram muitas e definitivas, resultado de uma visão de futuro e de um projeto coerente para a cidade. Por isso, sua administração foi marcada por muitas obras, incluindo a construção de novos bairros, o asfaltamento de avenidas e a conclusão da Avenida do Contorno, incompleta desde a fundação da cidade em 1897. Obras como essas contribuíram definitivamente para a consolidação da cidade em seus contornos planejados no final do século anterior. Nas áreas sociais e no saneamento básico, a administração JK também deixou marcas: canalização de córregos com a abertura de avenidas, criação de hospitais, e até mesmo a inauguração de um restaurante popular, iniciativa que voltou à moda recentemente. Sua realização mais conhecida, no entanto, foi o conjunto arquitetônico da Pampulha, projetado pelo recém-formado Oscar Niemeyer a seu pedido. A Igreja de São Francisco, de inovadoras linhas parabólicas, o Cassino que hoje é um Museu de Arte, a Casa do Baile e o Iate Clube são hoje marcos da cidade, alguns dos poucos atrativos turísticos de uma cidade cuja vocação caminhou em outras direções. A própria lagoa da Pampulha foi criada por ele: existia no lugar um pequeno barramento, que atendia a uma fazenda na região. JK mandou elevar o nível da barragem, criando a lagoa como existe hoje, já com as obras de Niemeyer em seu entorno.

Com relação à ocupação do solo urbano, JK editou, logo no primeiro ano de governo, um novo código de posturas. A administração organizou-se para aumentar a fiscalização sobre loteamentos mais distantes, como forma de controlar a expansão. Por outro lado, a urbanização de áreas próximas ao centro foi estimulada através da doação de terrenos públicos para entidades filantrópicas, religiosas, esportivas e culturais. A desapropriação de terrenos para a instalação de novos equipamentos também foi realizada, dando origem aos campi do atual CEFET-MG e da UFMG. Foram também criados espaços para a classe trabalhadora, como um precursor dos conjuntos habitacionais, hoje conhecido como Conjunto IAPI. A ação estruturante e transformadora de JK também criou uma série de avenidas radiais, ao longo das quais novos bairros foram sendo criados. Ao longo de seus cinco anos como prefeito, JK transformou completamente a cidade fundada quatro décadas antes.

Outra inovação da administração municipal JK foi o uso de equipamentos automáticos para a cobrança do IPTU. Com esses equipamentos, a guia para pagamento do imposto era um cartão perfurado, exatamente como aqueles que veríamos décadas depois em computadores de grande porte. O próprio cartão recebia a quitação por autenticação mecânica, e era retido pelo proprietário de imóvel como comprovante de pagamento. Guardo dois desses cartões, legados a mim por um tio homônimo, através de meu pai. O formato da inscrição imobiliária é o mesmo usado até hoje, no atual sistema informatizado de tributação. A figura 2 apresenta um desses cartões.


Figura 2

O exemplo de JK é sempre lembrado na época de eleições, por candidatos que pretendem comparar-se a ele, o que sempre me soa muito pretensioso. Como administrador, JK reuniu um conjunto de características e virtudes que parece inalcançável pelos nossos confusos padrões atuais. Algumas dessas características podem, no entanto, ser perseguidas pelos atuais administradores públicos. A visão estratégica, desenvolvida através do contato intensivo e do conhecimento da realidade da cidade, juntamente com a estratégia de alocação de recursos, que viabiliza obras ao mesmo tempo em que agrega recursos tecnológicos e de informação, são virtudes de JK que a atual geração de políticos deveria buscar vigorosamente.

Fontes:
Foto de JK: Museu Histórico Abílio Barreto – Prefeitura de Belo Horizonte
Plantas cadastrais: Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte – Prodabel

Clodoveu Davis é engenheiro civil, doutor em Ciência da Computação e Assessor de Desenvolvimento e Estudos da Prodabel – Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte. E-mail: cdavis@uol.com.br