A atitude das pessoas e de suas organizações define o sucesso na adoção de um GIS

João chegou ao trabalho naquele dia sentindo-se cansado antes de começar o expediente na prefeitura. Algum maluco havia cismado de mudar totalmente seu familiar e estável ambiente de trabalho. Era um tal de geoprocessamento que estava chegando e, segundo lhe disseram no corredor, tornaria tudo automático. Como assim automático, meu Deus, pensava ele, será que tudo o que eu demorei vinte anos para fazer mais-ou-menos-bem-feito vai agora sumir dentro de um computador? Os colegas mais animadinhos lhe diziam maravilhas (na opinião deles): as plantas, os mapas, tudo vai ficar prontinho ao toque de um botão. E sem erros. Mas então, retrucavam os colegas mais próximos a ele, pra que tanta gente na seção? Vão mandar todo mundo pra rua – ou pior, forçar uma aposentadoria precoce em alguma área burocrática? O chefe tentava esclarecer, dizendo que, afinal de contas, alguém precisava operar aquelas máquinas novas que acabavam de chegar. Mas operar o quê, pensava o João, logo eu que nem sei como funciona aquele ratinho… eu e meu inglês macarrônico… O pessoal mais jovem procurava acalmá-lo. Afinal, haveria treinamento para todos, e os instrutores viriam lá de São Paulo. Quarenta horas! Mais do que suficiente…

Por antigüidade no posto, foi garantida para o João uma vaga no treinamento. Mas olhe lá, avisou o chefe, quem participar dessa primeira rodada fica obrigado a repassar o conteúdo para os demais. Essa frase não lhe saiu da cabeça toda a semana: repassar de que jeito, se eu estou entendendo só os comos, mas não os porquês? Até que o ratinho é fácil de mexer, o problema é a quantidade de coisas diferentes que esse treco faz. Melhor anotar no cantinho da apostila, senão me esqueço dos detalhes pro repasse… mas se eu ficar anotando tudo, perco a explicação da instrutora, que é muito rapidinha. Pior ainda, a conversa dela é cheia de letrinhas e termos que eu nunca ouvi falar: Arque-isso, Mape-aquilo, O-D-B-C, D-B-F, Jota-pegue, Tecepê-ipê, SPC do CIC! É preciso memória de elefante, coisa que eu nunca tive. Melhor mesmo anotar, mas a tradução das letrinhas é em inglês, peraí fessora, não muda a transparência…

Mas na sexta-feira João até achou que estivesse sabendo algumas coisas. Conseguiu rodar uns programinhas, tomava já um pouco de intimidade com aquelas figurinhas e símbolos na tela. Acostumando, dá – tentava ele convencer-se. Sei lá como é que eu vou colocar meus mapas aí pra dentro, mas na cidadezinha de demonstração eu já estou cobra. Será que tem emprego pra mim lá? Não sei quanto essa loucura aqui ainda vai durar…

Antônio acompanhava atentamente a apresentação de um técnico de uma cidade vizinha a respeito do geoprocessamento de lá. Nunca havia lhe passado pela cabeça que tanta coisa pudesse se feita com os mesmos dados, dados como os seus, só que na tela do computador. De fato, já havia ouvido falar em CAD, mas pra quê CAD se a prancheta e os estagiários estavam dando conta do recado? Mas ao entrever as possibilidades, ligou as antenas. Estou perdendo o bonde da história, pensou ele, esse povo usando o nosso cadastro, os nossos dados de cada dia, pra muito mais que o IPTU, pra acabar com a dengue, mil coisas e eu aqui preso no setor-quadra-lote.

No dia seguinte reuniu uns colegas e foi dar uma prensa no chefe. Tudo bem que é caro e difícil, mas nós precisamos saber mais sobre essas coisas. Não é nem o problema de estar atrasado, mas é que deu pra perceber que temos muito que fazer. Nossos mapas e plantas, que estão aqui mofando na mapoteca, têm mais valor do que pensávamos, deveriam estar na mão da dra. Maria da saúde, do José do controle de zoonoses, da diretora da escola, dos meninos, nossos filhos, que aprendem sobre espaço urbano num livro didático padronizado e sobre a Capital. Por quê não? O chefe, sensibilizado, prometeu conversar com o secretário.

Precisamos nos capacitar melhor, argumentou com o secretário, primo do prefeito. Nem é pra gastar dinheiro, mas é que não dá pra fingir que é moda, que é onda, que vai passar. É pra tentar fazer mais com menos. Ou muito mais com a mesma coisa. Esses meus funcionários poderiam ter enfiado a cabeça na areia que nem avestruz, poderiam ter se fechado em defesa de seus empregos, ameaçados pela máquina, poderiam mesmo ter adotado aquela típica postura de burocrata, pendurando o paletó na cadeira e deixando a coisa rolar e esperando a "vontade política". Mas quem quer se reeleger não pode desperdiçar essa boa-vontade técnica.

Alguns colegas de Antônio danaram a procurar mais cursos, livros, qualquer coisa que lhes desse uma visão mais ampla desse tal de geoprocessamento. Um achou um monte de coisas na Internet, até mesmo em português. Outro descobriu um congresso que ocorreria daí a alguns meses. Mais radical mesmo foi o Francisco. Chegou à conclusão de que só mesmo voltando pra faculdade, que ele havia abandonado no segundo ano. Não, disse ele a Antônio, se do nosso mato aqui não sair coelho, pelo menos eu me defendo. Vai sacrificar a mulher e os meninos, mas não dá pra ignorar o que está acontecendo e que nós não conhecíamos. E ai deles lá na faculdade se não souberem nada sobre esse tal de geoprocessamento!

O secretário pensou muito sobre o assunto, ele também meio que contaminado pelo que viu e, na falta de recursos para contratar um consultor, acertou com o chefe do cadastro uma maneira de facilitar as coisas pra quem quisesse se recapacitar. Estabeleceu uma maior flexibilidade de horário, folga na véspera das provas, e até conseguiu com o prefeito uma verba pra subsidiar parte das mensalidades, mediante o compromisso de permanência no emprego após o término do curso. O chefe propôs aos seus comandados a montagem de uns grupos de estudo, toda segunda-feira à tarde, horário de expediente, para que pudessem ler e discutir entre eles o que haviam obtido de material, trocar umas idéias. Os coordenadores de cada grupo se reuniram e convenceram o secretário a enviar dois emissários para o tal congresso, com a missão de fazer contatos e reunir informações sobre tudo: pessoas, experiências semelhantes, software, serviços, consultoria…

Na volta, os enviados apresentaram tudo em uma tarde, lá no auditório da Câmara, falando sem parar pra pessoas de todas as áreas da prefeitura, e também para alguns vereadores. Ao contrário do que o chefe e o secretário esperavam, não trouxeram soluções prontas. Viram o suficiente pra entender que o que vem primeiro, nessa história de geoprocessamento, não são os comos nem os porquês. São os para-quês. Sem saber o que queremos fazer com isso, não adianta gastar dinheiro em máquinas e programas. Sabendo para que queremos geoprocessamento, fica mais fácil descobrir de que dados precisamos, e sabendo os dados fica mais fácil escolher programas e computadores, quais e quantos. Sem isso, acrescentaram com segurança, é desperdício.

Com qual das duas historinhas fictícias você, leitor, identifica-se mais? Com a da organização voluntariosa, que investe mundos e fundos em hardware, software e treinamento – nessa ordem – para depois pensar nas pessoas e na informação? Ou com a da iniciativa de um grupo de técnicos que investe em auto-desenvolvimento, com ou sem o apoio formal de seus chefes, e que pensa em GIS com a racionalidade dos gatos escaldados, e com a frieza dos que não se deixam levar pela pirotecnia e pelas promessas mirabolantes?

De acordo com o seu sentido de prioridades, o que vem primeiro: a capacitação da equipe, ou a escolha do software? O planejamento das aplicações, ou o financiamento para a compra do hardware? A análise das informações, ou a reforma das instalações elétricas para receber os equipamentos? Aprender os conceitos, ou treinar a operação?

Percebemos com clareza que não há soluções mágicas para implantar um GIS, mas não é difícil verificar, na prática dos que já passaram por situações semelhantes, qual caminho tem mais chances de sucesso.

Clodoveu Davis é engenheiro civil, doutor em Ciência da Computação e pesquisador da Prodabel – Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte. E-mail: clodoveu.davis@terra.com.br