O continente sul-americano é o primeiro, além do norte-americano, a contar com cobertura completa de modelos digitais de elevação derivados de dados da Missão Topográfica por Radar Interferométrico (SRTM)

Dados topográficos podem ser utilizados em numerosas aplicações e representam a base para a maioria dos estudos sobre a superfície terrestre. Entretanto, para muitas partes do mundo, os mapas topográficos são limitados, imprecisos ou simplesmente inexistentes. Áreas de difícil acesso, como aquelas nas quais se inscrevem cadeias de montanhas, desertos inabitáveis e florestas tropicais densas, não possuem cobertura topográfica adequada. Além disso, a falta de padronização nos métodos de aquisição de dados topográficos e de geração de bases de dados limita o escopo de estudos regionais e globais, onde a precisão topográfica é um fator importante.

Até recentemente, o único banco de dados topográficos de abrangência global disponível para a comunidade era o GTOPO30, do qual modelos digitais de elevação foram gerados em 1996 pelo Serviço Geológico Americano (United States Geological Survey – USGS | http://edcdaac.usgs.gov/gtopo30/gtopo30.html), com pixels de cerca de 928 metros de tamanho (30 arco-segundos = 0.008333.. graus). Entretanto, como esses dados foram compilados de diversas fontes, para muitas regiões, os modelos de elevação são inconsistentes e de baixa qualidade.

Bem, digamos que essa situação mudou "um pouco" recentemente ….

Muitos dos nossos assinantes devem se lembrar sobre um acontecimento, sem precedentes na história do Sensoriamento Remoto, ocorrido em Fevereiro de 2000 – o ônibus espacial Endeavour (Space Shuttle Endeavour) orbitou a Terra realizando a Missão Topográfica por Radar interferométrico, mais conhecida como a Shuttle Radar Topographic Mission (SRTM – lançamento STS-99). Nesta data, num período de apenas 11 dias, foi gerado o mais completo e consistente banco de dados sobre a topografia de 80% das áreas emersas do planeta, entre os paralelos de latitude 60°N e 56°S, com a obtenção de dados altimétricos com precisão compatível com mapas topográficos na escala de até 1:50.000.

Os dados da Shuttle Radar Topography Mission foram o resultado de uma missão espacial internacional que envolveu a NASA (National Aeronautics and Space Administration), a NIMA (National Imagery and Mapping Agency), o USDD (United States Department of Defense), a DLR (Centro Aeroespacial Alemão) e a ASI (Agência Espacial Italiana), e que teve como objetivo final a geração de um Modelo Digital de Elevação (MDE) de alta resolução da Terra, utilizando a interferometria de radar.

Embora esse levantamento tenha criado uma grande expectativa na comunidade, o cronograma de processamento e distribuição dos dados foi atrasado em função de inúmeros fatores. O principal deles foi devido à nova política do governo americano, que passou a imprimir um rígido controle sobre a distribuição de dados de sensoriamento remoto, considerados estratégicos do ponto de vista militar.

Cerca de 12,4 Terabytes de dados brutos foram coletados na missão SRTM (algo equivalente a mais de 20 mil CD-ROMs de dados). Passados 3,5 anos desde o levantamento, apesar dos entraves, os resultados mais importantes da SRTM finalmente começam a aparecer, alguns de interesse específico para o nosso continente. Toda a base da SRTM foi constituída na forma de imagens com amostragem de pixels variando entre 1 arco-segundo (= ~30 metros no Equador) e 3 arco-segundos (ou 0,000833.. graus = ~90 metros no Equador) em latitude e longitude. Há poucas semanas atrás, a América do Sul, além da América do Norte, tornou-se o primeiro continente a possuir cobertura total de Modelos Digitais de Elevação com pixels de 3 arco-segundos, ajustados para aplicações na escala de 1:100.000 ou superior. Esses dados encontram-se disponíveis para a comunidade, sem restrições de uso ou acesso. Dados com maior resolução, com pixels de 1 arco-segundo, somente foram disponibilizados para regiões dos Estados Unidos até o momento, embora possam ser adquiridos, sob demanda, para áreas mais restritas no Brasil, após aprovação pela NASA e NIMA.

Considerando as informações até agora disponíveis, já é possível medirmos o impacto que esses dados deverão ter em diversos ramos de aplicação. O SRTM produziu um grid de pontos com precisão horizontal de 30 metros (podendo chegar a 20m, dependendo da latitude) e com precisão vertical de 10 metros (podendo chegar a 4m). Isto significa que objetos com dimensões horizontais na ordem de 30 metros por 30 metros e com 10 metros de altura relativa foram registrados pelo radar interferométrico da SRTM. Ou seja, passamos a contar com Modelos Digitais de Elevação para todo o continente Sul-Americano que são 30 vezes mais detalhados, em resolução e precisão, se comparados aos seus antecessores (GTOPO30). Mesmo com a liberação até agora somente dos grids de 3 arco-segundos, os modelos já são 10 vezes mais detalhados que o GTOPO30. Além da resolução espacial mais alta, o fato dos dados terem sido gerados por um mesmo método (radar interferométrico) e processados de forma padronizada, garante a integridade dos mesmos para aplicações locais, regionais e globais.

A MISSÃO. A Shuttle Radar Topography Mission foi originalmente proposta com o objetivo de coletar dados tridimensionais, altimétricos, de precisão, da superfície da Terra.

A aplicação de Radar foi mais adequada e favorecida em relação às câmeras ópticas visto que o Radar é capaz de operar dia e noite e pode adquirir dados sob condições atmosféricas adversas, mesmo na presença de nuvens. Para coletar esses dados, duas imagens de Radar foram adquiridas ao mesmo tempo ao longo da órbita do ônibus espacial: uma pela antena instalada no compartimento de carga da Endeavour e outra por uma antena suspensa, através de um mastro, a uma distância de 60 metros da espaçonave. A combinação destas imagens permite a produção de Modelos Digitais de Elevação por interferometria. Após várias horas investidas no alçamento do mastro, ativação e verificação dos sistemas da SRTM, esses dados interferométricos foram sistematicamente coletados durante 222,4 horas consecutivas. Os instrumentos imagearam 99.96% das regiões emersas da Terra pelo menos uma vez, 94.59% pelo menos duas vezes e cerca de 50% três vezes ou mais. O objetivo foi o de imagear cada segmento de terreno pelo menos duas vezes a partir de diferentes ângulos (em órbitas ascendentes – orientadas em direção ao Norte – e descendentes), cobrindo áreas eventualmente mal registradas, em determinadas visadas do Radar, em função dos efeitos do relevo do terreno.

Dois tipos de Radar de abertura sintética foram utilizados na SRTM para adquirir dados ao longo de faixas contínuas. A visada lateral (off-nadir) desses instrumentos de radar variou entre 33º e 58º da visada vertical (nadir), a uma altitude de 233km, o que permitiu a cobertura de faixas com até 225km de largura. O RADAR de banda-C, com polarizações HH e VV, cobriu esses trechos mais largos, de 225 Km de largura, por órbita. O Radar de banda-X, com um único feixe de polarização VV, cobriu faixas menores, de 50 km de largura. O equipamento de interferometria utilizado foi uma versão aprimorada do mesmo instrumento de Radar de abertura sintética (bandas C e X) utilizado duas vezes na Endeavour em 1994, no âmbito do programa experimental da NASA denominado Spaceborne Imaging Radar-C/X-Band Synthetic Aperture Radar (SIR-C/X-SAR).

INTERFEROMETRIA. Interferometria é o estudo de padrões de interferência gerados pela combinação de dois conjuntos de sinais de radar, ou imagens de radar, adquiridas de uma mesma área a partir de diferentes pontos de visada. A pequena diferença existente entre as duas imagens permite aos cientistas determinar a elevação da superfície. Quando duas imagens produzidas por radar interferométrico são combinadas (ou colocadas sob interferência), o primeiro produto obtido é denominado de interferograma. Essa interferência pode ser ilustrada da seguinte forma: (i) segure uma pedra em cada uma das mãos com os braços esticados sobre um tanque de água; (ii) deixe as pedras caírem no tanque ao mesmo tempo; (iii) observe que as ondas resultantes do impacto de cada pedra na água se movem umas em direção as outras; (iv) onde se encontram, essas ondas interferem umas nas outras. Uma analogia ao interferograma é o conjunto de bandas coloridas que são observáveis quando filme de óleo flutua sobre um volume dagua. Essas bandas são causadas por raios de luz colidindo com as superfícies lisas do óleo e da água subjacente, gerando padrões de interferência. No caso do interferograma em específico, cada uma dessas cores representa uma diferente elevação.

O SRTM foi uma missão de Radar interferométrico fixo. Dois conjuntos de dados de Radar foram coletados simultaneamente pelas duas antenas, separadas por uma distância fixa. A antena principal, posicionada no compartimento de carga da Endeavour, transmitiu feixes de ondas de Radar. Essas ondas, na medida em que atingiram a superfície terrestre, foram espalhadas em várias direções, e parte das mesmas foram registradas pelas antenas da SRTM. A distância entre a antena principal e a antena externa, posicionada na extremidade do mastro, era conhecida em detalhe e permaneceu constante. O que mudou ao longo do levantamento foi a distância da superfície em relação às duas antenas. Dentre o feixe de radar refletido, o ponto onde a reflexão ocorreu na superfície foi registrado numa posição ligeiramente diferente, independentemente, pelas duas antenas. Utilizando as informações sobre a distância entre as duas antenas e as diferenças registradas para os sinais de ondas de Radar, foi possível calcular a elevação precisa da superfície terrestre.

PROCESSAMENTO E PRODUTOS. Os dados gerados na SRTM com o Radar de banda-C foram processados da seguinte forma: (i) processamento sistemático dos dados globais continente por continente, na resolução de 1" x 1" lat/long (~30 x 30 m); (ii) reamostragem dos dados na resolução de 3" x 3" lat/long (~90 x 90 m); (iii) reamostragem dos dados na resolução 30" x 30" lat/long (~900 x 900 m), com a geração do produto denominado SRTM30, similar em formato e organização ao GTOPO30, mas superior em qualidade. A parte principal do processamento dos dados do Radar de banda-C durou cerca de 2 anos. Ao longo deste tempo, o JPL gerou e distribuiu uma série de pequenos trechos de produtos derivados dos Modelos Digitais de Elevação preliminares, incluindo perspectivas, pares estereoscópicos, anaglifos, vídeos de paisagens tri-dimensionais, entre outros produtos.

A América do Norte foi o primeiro continente para o qual os dados foram processados. Para os outros continentes, os dados estão sendo entregues à NIMA para edição, verificação e disponibilização, de acordo com os padrões de precisão americanos (National Map Accuracy Standards). Em seguida, o dados serão retornados à NASA para distribuição ao público pelo EDC (EROS Data Center) do USGS (United States Geological Survey). Os dados para as Américas do Sul e Central já passaram por tais fases e foram verificados e disponibilizados recentemente. A atual organização do projeto prevê a oferta de toda a base de dados global, na resolução de 90m, até Dezembro de 2003.

Uma nota importante. Os usuários desses dados devem atentar para o fato de que os Modelos Digitais de Elevação distribuídos para a América do Sul não estão editados e requerem processamento adicional. Estes dados foram extraídos diretamente do processamento dos dados do radar interferométrico. Assim, os MDEs (i) podem conter áreas vazias, sem dados; (ii) corpos dagua podem não aparecer como superfícies planas; (iii) as linhas costeiras são mal definidas e necessitam de máscaras de ajuste; (iv) os dados de elevação foram determinados relativamente ao esferóide (WGS-84). Além disso, alguns dos mosaicos gerados a partir dos dados SRTM, também disponíveis no JPL/NASA, não utilizam os ajustes de escala para representação continental, os quais foram usados para os mosaicos globais finais, e podem conter erros de representação.

Os dados gerados a partir do Radar de banda-X estão sendo utilizados para geração de Modelos Digitais de Elevação com uma resolução um pouco maior do que aqueles gerados com os dados de Radar de banda-C, entretanto, não têm cobertura global. O Centro Aeroespacial Alemão (DLR) está incumbido de processar e distribuir esses MDEs em específico.

USO. Os dados produzidos durante a SRTM podem ser processados para atender especificações e demandas nos setores civis, acadêmicos e militares, abrangendo numerosas aplicações. Praticamente todo o projeto que necessite de conhecimento preciso sobre a forma e elevação do relevo pode ser beneficiado por esses dados. Além de servir como base para a cartografia e navegação em trabalhos de campo, entre vários exemplos, é possível citar o uso desses dados no controle de enchentes, conservação do solo, reflorestamento, pesquisas sobre terremotos, navegação, locação de torres de telefones de celulares, simulações de vôo, etc.

A minha experiência pessoal com esses dados não poderia ser melhor. Com base num mosaico que montei para toda a América Latina na resolução total de 90m, eu e minha equipe de alunos e pós-doutorandos na UNICAMP temos conseguido obter avanços interessantíssimos no estu- do de depósitos metálicos na região de Carajás, Quadrilátero Ferrífero e Andes; na composição de Sistemas de Informações Ambientais Georreferenciadas para várias áreas no Brasil, no estudo de impactos de meteoritos na América do Sul, e assim por diante (cf. www.ige.unicamp.br). Portanto, eu recomendo aos assinantes que não percam a chance de investigar a possibilidade de uso destes dados em seus projetos.

Os seguintes links podem ser úteis aos interessados em utilizar e conhecer mais detalhes sobre os dados do SRTM:
Links – NASA/Jet Propulsion Lab
http://www.jpl.nasa.gov/srtm
http://www.jpl.nasa.gov/srtm/southAmerica_radar_images.html
http://photojournal.jpl.nasa.gov/targetFamily/Earth

Diretórios de Dados no JPL:

South America/ – contém arquivos de Modelos Digitais de Elevação de toda a América do Sul e Central entre os paralelos de latitude N15º e S56º. A resolução dos dados é de 3 arco-segundos (90m) (processamento de dados Nível 1).
North_America_3arcsec/ – contém arquivos de Modelos Digitais de Elevação de toda a América do Norte entre os paralelos N15º e N60º, processados pelo programa SRTM global e amostrado para resolução espacial de 3 arco-segundos (90m) (processamento de dados Nivel 1).
Unites_States_1arcsec/ contém arquivos de Modelos Digitais de Elevação dos Estados Unidos, processados pelo programa SRTM global e amostrado para resolução espacial de 1 arco-segundos (30m) (processamento de dados Nivel 2).
Documentation/ – contém dicas para usuários dos dados, incluindo documentação detalhada com especificação técnica dos dados SRTM, notas para usuários do ARCInfo (script para ARCInfo que permite o uso dos dados SRTM e posterior exportação para ArcView).
SRTM30/ – contém Modelos Digitais de Elevação compatíveis, quanto ao formato e organização, ao GTOPO30.

Links – USGS
http://srtm.usgs.gov
http://seamless.usgs.gov (Seamless Data Distribution System Viewer) – ferramenta para visualização e download interativo dos dados.
Link – DLR (Centro Aeroespacial Alemão)
http://www.dlr.de/srtm

Carlos Roberto de Souza Filho é Chefe do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) e Coordenador do Laboratório de Processamento de Informações Georreferenciadas (LAPIG) do Instituto de Geociências da UNICAMP. Atua, desde 1999, como Principal Investigator do sensor ASTER junto a NASA. beto@ige.unicamp.br