A Polêmica da Representação de Lotes em GIS Urbano

Visões cadastral, legal e tributária podem ser integradas num único sistema de informação a fim de contribuir para a divisão do solo urbano

Uma das coisas mais interessantes que existem em geoprocessamento é a possibilidade de se compatibilizar diferentes visões do mundo, originárias de diferentes grupos de usuários, em um mesmo sistema de informação. A localização geográfica cumpre um papel fundamental nessa integração, pois oferece um "denominador comum" que, de modo geral, independe de contexto.

No entanto, certos tipos de diferenças conceituais relativas à visão do mundo estão tão enraizadas em seus respectivos meios que se torna muito difícil estabelecer um acordo que permita o efetivo compartilhamento da informação. É o caso, em prefeituras, das diferentes percepções relativas ao parcelamento do solo urbano. Por regra, no Brasil, existem três visões distintas. A primeira delas é a visão legal, ligada à percepção do resultado dos processos de aprovação de projetos de loteamento por parte do poder público municipal, e que fundamenta a divisão de glebas em lotes urbanos. A segunda é a visão cadastral, tipicamente voltada para registrar, em documentos, a realidade de campo. Nessa visão, os lotes são, em princípio, aquelas partes do território municipal que se encontram divididas em outros lotes e sob a posse de um ocupante – o que não implica que a posse seja legal. A terceira visão é a tributária, cuja intenção é a arrecadação, e que ora tende para a visão legal, ora para a visão cadastral, já que a cobrança do imposto territorial também independe da existência do registro da propriedade e de sua legalização.

Os projetistas de GIS devem resistir em copiar o modelo americano. Aqui os cartórios são responsáveis pelo registro de imóveis – e não me consta que sejam consumidores ávidos de tecnologia GIS.

Existe alguma superposição conceitual entre essas três visões, o que dificulta o estabelecimento de um ponto de vista único sobre o problema. Por exemplo, diversos sistemas cadastrais tendem a registrar a situação legal quando disponível, usando a visão de posse e ocupação física apenas nas áreas não legalizadas. Há também um grande desajuste conceitual quando a questão passa a ser a comparação direta entre aquilo que está legalizado, um projeto, e a forma segundo a qual esse projeto foi edificado na cidade real: teoricamente, se existe um desajuste, todos os afetados poderiam exigir a correção. Na prática, isso raramente acontece.

Com essas diferenças conceituais, Sistemas de Informações Geográficas (GIS) urbanos precisariam ser modelados com base em cada uma das visões de forma independente, buscando depois estabelecer uma correspondência entre o lote legal, o lote cadastral e o lote tributário, na medida do possível. A maioria das cidades opta, no entanto, por implementar apenas a visão tributária, visando resultados em prazo mais curto, e com isso subordinando a visão cadastral às metas de arrecadação – ou seja, o cadastro técnico passa a ser arrecadatório, e não multifinalitário. Já a visão legal raramente torna-se parte do GIS, uma vez que, na maioria das cidades, o somatório das plantas de aprovação de loteamentos perfaz apenas uma parte da área urbanizada do município. Isso inviabilizaria uma série de aplicações interessantes do GIS sobre a cidade real, onde existem favelas e outras áreas de ocupação irregular, áreas onde vive uma parcela muito real da população.

Há também alguma polêmica, no desenvolvimento de GIS urbanos, sobre a melhor forma de se representar espacialmente um lote – de qualquer um dos três tipos. De imediato, a maioria das pessoas não hesitaria em escolher a representação por polígonos. A primeira característica que vem à mente quando pensamos em lotes é a sua área. Lotes ocupam parte do território municipal, que também é uma área.

Em nossa opinião, definida pela prática aqui em Belo Horizonte, o armazenamento do lote como polígono atenderia a principalmente (apenas) duas coisas: fazer mapas temáticos mais "bonitos" e fornecer uma estimativa da área do lote. Ainda assim, essa estimativa não pode ser usada pela prefeitura em processos legais, pois para contestá-la ou revisá-la é necessário medir o terreno, em campo, com a anuência (e possivelmente com a presença) do proprietário, usando um processo mais preciso do que o levantamento aerofotogramétrico, que originou a maior parte dos bancos de dados geográficos urbanos. Se a área do polígono não é suficiente para definir no GIS a área do lote, poderíamos, então, conceber uma representação mais simples, em que a área do lote (segundo registrada documentalmente, ou obtida por um processo de medição em campo) fosse codificada como um simples atributo numérico. Poderíamos, sem prejuízo para a consistência e a integridade do banco de dados geográfico, ter o lote representado por uma linha (digamos, o segmento frontal), ou mesmo por um ponto: a localização estaria definida e a área seria cadastrada como atributo, se disponível com qualidade adequada. Se for o caso de codificar relacionamentos de vizinhança, poder-se-ia ter um grafo ou uma rede, na qual os nós representassem os lotes e os arcos ligassem lotes vizinhos. Acredito que essa representação simplificada de lotes é muito mais simples e econômica, além de ser mais rápida e mais fácil de desenvolver.

Dentro da visão legal, poderia ser mesmo inte ressante ter lotes codificados como polígonos. O interesse estaria em poder medir (estimar) afastamentos e outros parâmetros urbanísticos. Ocorre que, em Belo Horizonte, apenas 40% da cidade é, de fato, legalizada em plantas de loteamento; sendo o resto ocupação irregular (invasões) e loteamentos clandestinos. Essa realidade não difere muito da de outras grandes cidades brasileiras, sendo inclusive mais grave em algumas. Outro problema decorre da variação de qualidade entre as plantas de loteamento aprovadas: existem originais já muito desgastados pelo tempo, plantas que não trazem nenhum referencial geográfico, escalas e formatos variados, plantas que se baseiam em coordenadas locais e até mesmo projetos que não trazem indicação do Norte. Isso dificulta bastante a compatibilização entre lotes legais, cadastrais e tributários, algo que desejamos conseguir para estabelecer um novo nível de comunicação entre sistemas de informação convencionais dessas diferentes áreas da prefeitura.

Sistemas de Informações Geográficas (GIS) urbanos precisariam ser modelados com base em cada uma das visões de forma independente, buscando depois estabelecer uma correspondência entre o lote legal, o lote cadastral e o lote tributário

Para ajudar nessa compatibilização, a prefeitura desenvolveu um grande projeto de scanning das plantas de loteamento, recentemente concluído, que nos permite superpor à planta aprovada a situação real, registrada no GIS. Esse projeto, denominado plantas on-line, está promovendo agora um esforço de vetorização dessas plantas, para formar finalmente uma classe de objetos para os lotes legalizados. Acredito que a imagem das plantas já seria suficiente para orientar a comparação entre lotes legais e lotes cadastrais/tributários, mas o fechamento dos polígonos dos lotes legais facilitará a compatibilização, tanto do ponto de vista da visualização das discrepâncias quanto da adoção de medidas corretivas.

No caso geral, os projetistas de GIS devem resistir em copiar o modelo americano. Os fornecedores deste sistema, tendo aprendido com suas matrizes, propagam um modelo de representação de lotes sempre usando polígonos. Não acho que esse modelo se aplique bem ao Brasil em todos os casos, uma vez que o interesse dos americanos na delimitação de lotes parte do fato de que lá o poder público é o responsável pelo registro de imóveis. Aqui são os cartórios – e não me consta que os cartórios sejam consumidores ávidos de tecnologia GIS. Do ponto de vista dos cartórios, o que for lançado no banco de dados digital não vale, pois o meio digital não é "fidedigno" como a planta (documento em papel) aprovada carimbada, assinada), segundo referenciada no registro do imóvel. O registro em cartório é de fato o documento primário, juntamente com a planta aprovada pela prefeitura (veja a discussão na coluna GeoBytes da edição anterior da InfoGEO).
Já vi projetos que construíram a base geográfica pela vetorização de plantas de loteamento, mas o mais comum é ter bases aerofotogramétricas. Nessas últimas, o reconhecimento e delimitação de lotes cadastrais – que é o tipo que poderia ser identificado em uma imagem aérea – pode não ser nada simples. Fazer a delimitação desses lotes não resolveria os problemas legais nem os tributários totalmente, e ainda consumiria tempo e recursos que seriam mais bem aplicados em ações na área social e na construção do restante da infra-estrutura de informação urbana no GIS (incluindo eixos de via, malha de circulação, sistema público de transporte, equipamentos urbanos, infra-estrutura urbana, e vários outros).

Clodoveu Davis
Engenheiro civil
Doutor em Ciência da Computação, professor da PUC-MG e pesquisador da Prodabel – Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte.
clodoveu.davis@terra.com.br