Uma proposta para compartilhar informações geográficas e rever a questão de direitos autorais

Na condição de pai de internauta adolescente, tenho acompanhado com atenção a luta judicial entre o software Napster e as empresas de música americanas. Caso o leitor não esteja ainda familiariazado, lembro que o Napster é um software simples, mas genial, que permite o intercâmbio de arquivos MP3. Ao iniciar, o Napster faz uma varredura em áreas previamente definidas do micro em busca de arquivos MP3, envia uma lista com o resultado a um servidor central e em seguida, permite a busca e o acesso a todos os dados MP3 dos demais computadores conectados ao sistema. Para garantir a reciprocidade, os arquivos do micro registrados no servidor também estão disponíveis para todos. O serviço funciona melhor do que deveria: na última vez que executei o Napster, haviam mais de 200 mil arquivos on-line com cerca de 6.000 usuários. Como resultado, meu disco rígido está completamente cheio de músicas, que variam do rapper Eminen (argh!) até o inimitável João Gilberto (yes!).

O leitor pode estar se perguntando: e daí? O que tem a ver o Napster com a geoinformação? Explico: arquivos de música em MP3 representam dados de fácil uso, com grande demanda, e cujo conteúdo é relativamente auto-evidente. Se no meu micro há um arquivo chamado "JG-ChegadeSaudade.mp3", qualquer interessado sabe do que se trata. Ora, o mesmo raciocínio pode ser aplicado (com um pouco de esforço adicional) à geoinformação. Como todos sabemos, a demanda por dados espaciais é infinita e a cada momento, precisamos de novos dados, seja a nova malha municipal do Brasil ou a carta topográfica 1:25.000 de cidade de Quixeramobim. Com um pouco de esforço, sabemos decifrar o que quer dizer"sampa.shp"ou "homicidios_palegre.spr".

Ora, diriam vocês , quem tiver dados para compartilhar simplesmente poderia colocá-los na Internet de forma organizada, como já fazem o DATASUS (www.datasus.gov.br) ou o consórcio GeoMinas (www.geominas.mg.gov.br). Mas tratam-se de instituições, dotadas de gerentes de rede, advogados preocupados com copyright (veja BOX), e analistas para manter páginas ASP. O que eu estou falando é do intercâmbio puro e simples de dados por pesquisadores, alunos e pequenas empresas sem condição de manter servidores 24 horas "on-line".

Imagine-se então o funcionamento de um "Napster geográfico" (chamemo-lo de "GeoShare", porque em Inglês fica mais bonito). Ao me conectar no serviço, o GeoShare faria uma procura em meu computador (em áreas previamente definidas) por arquivos do tipo SHP, E00, DXF, MIF, SPR ou quaisquer outras extensões típicas de dados geográficos. Ele leria algumas informações comuns (como região geográfica, projeção e tipo de geometria) e as informaria ao servidor. A seguir, eu poderia fazer consultas sobre todos os arquivos disponíveis em todos os demais usuários conectados on-line, com base em restrições descritivas ou geométricas. Por exemplo, posso querer saber tudo que há on-line sobre a área que cobre o estado do Tocantins. A partir daí, é só fazer a transferência dos arquivos selecionados. Imaginem o tempo e a economia de recursos que o GeoShare poderia gerar.

Considerando a natureza específica dos dados geográficos, uma variante do esquema anterior poderia armazenar também informações sobre arquivos de usuários que estão off-line. Assim, poderíamos saber que o Laboratório de Geoprocessamento da Universidade X tem um dado que nos interessa, e faríamos o pedido por email.

Neste contexto, vale a pena diferenciar o "GeoShare" de produtos com o ArcExplorer, da ESRI, que permitem que se faça acesso a bancos de dados remotos. Em primeiro lugar, os dados tem de estar organizados no formato do fabricante e o que queremos são tecnologias abertas e não-proprietárias. Além disso, o ArcExplorer não aplica o princípio da reciprocidade, pelo qual todo aquele que quiser dados tem de compartilhar os seus com os demais membros da comunidade.
O leitor deve estar se perguntando: isto não seria ilegal? Como ficam instituições como o IBGE e a DSG, fontes primárias de muitos dados geográficos no Brasil? O problema da legalidade é ainda mais controverso que o enfrentado pelo Napster. Arquivos MP3 são derivados de originais já no formato digital, sobre os quais há uma legislação definida (a lei do direito autoral). No caso de dados geográficos, a legislação não é clara: o que acontece quando digitalizamos uma carta topográfica 1:50.000 do IBGE? Em vários debates recentes sobre o assunto, tem havido posições opostas: as empresas de Geotecnologias alegam ter o direito de cobrar pelo trabalho de digitalização, e órgãos do governo consideram estar havendo violação de direitos autorais. Minha posição pessoal é mais direta: enquanto houver serviços privados (veja-se www.geodecision.com) que cobram pelo acesso a dados geográficos digitalizados, eu tenho o direito de colocar uma carta topográfica digitalizada em meu laboratório para acesso público.

No limite, a questão é que a própria legislação do direito autoral está sujeita a uma interpretação da lei maior, que é o interesse público relevante, invocado pelo Governo Brasileiro em recente caso de acesso a remédios para tratamento da AIDS. No caso da Geoinformação, a situação hoje está próxima de um escândalo: enquanto muitos órgãos públicos assumem uma posição de não divulgar amplamente seus dados (pelas mais variadas razões), estes mesmos dados podem ser obtidos em empresas privadas. Se um pesquisador hoje precisa de uma carta topográfica, ele tem duas saídas: ou digitaliza tudo, ou compra de uma empresa privada. A solução mais natural (obter a carta digital no IBGE) é impossível hoje.

Nada tenho contra as empresas privadas, que apenas estão ocupando um vácuo deixado por nossas instituições governamentais. Estas continuam a limitar o acesso público a informações essenciais, pressionadas pela lógica de desestruturação do Estado nos anos recentes e pela pressão administrativa em usar seus acervos para recuperar investimentos já pagos pelo contribuinte. Neste ponto, um dos méritos do GeoShare seria imediatamente colocar de forma aberta um problema que estamos fingindo não ver: a apropriação privada de informação que, afinal, pertence a toda a sociedade e cuja dificuldade de acesso é o maior bloqueio ao desenvolvimento das Geotecnologias no Brasil. O mesmo aconteceu com o Napster, por colocar em questão um modelo de negócios que satisfaz apenas às megagravadoras e a alguns artistas.

Escrever o "GeoShare" é relativamente fácil. Todas as peças estão na Internet, de softwares de código aberto semelhantes ao Napster (como o "Gnutella"), a interfaces de consulta com restrição espacial ou por atributos (veja-se em www.dpi.inpe.br/teses/jroberto ou www.alexandria.ucsb.edu). Há momentos que gostaria de ter de novo 17 anos e poder passar algumas noites a escrever um programa como o "GeoShare". Quem dera um "geo-hacker" ouvir minhas preces e assim teríamos uma arma decisiva, capaz de colocar em questão a lógica atual de disponibilidade de dados geográficos no Brasil. Não custa sonhar…

Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto).

DEBATE SOBRE COPYRIGHT NO GEOBRASIL

As bases cartográficas estão se proliferando cada vez mais, para alegria das empresas produtoras e usuárias de informações georreferenciados. Entretanto, junto com esta euforia cresce a cada dia o descontentamento em relação à falta de uma legislação adequada que regule os direitos e deveres de quem contrata ou produz este tipo de informações. Na busca de justiça para quem contrata ou executa, quem pode ser prejudicada é a sociedade que muitas vezes não consegue utilizar uma informação que deveria estar disponível, mas por entraves jurídicos não está. Infelizmente já é muito comum no Brasil a produção de vários mapeamentos sobre uma mesma região.

Para satisfazer esta lacuna e discutir a questão, o GEOBrasil 2001 oferecerá o debate "Direito autoral (copyright) de mapas". Debatendo a questão estarão presentes Alexandre Derani, da Digibase; Cristina Xavier Ferreira, da CONDER; Eduardo Fontes Hotz, presidente da Emplasa e o Procurador do Estado de São Paulo , José Roberto Fernandes Castilho, que dará um panorama do quadro atual da legislação brasileira.

DEBATE:"Direito autoral (copyright) de mapas" 21 de junho de 2001, das 09:00 às 11:30 no GEOBrasil 2001 – Centro de Convenções Imigrantes – São Paulo – SP – www.geobr.com.br