Você já reparou que toda praia tem um ponto em que os sorveteiros ficam concentrados? Saiba porquê

Considere um mundo unidimensional, em que os problemas de localização de comerciantes se resumem a escolher pontos sobre uma reta.

Muito irreal? Nem tanto. Imagine, por exemplo, dois sorveteiros escolhendo onde posicionar seus carrinhos ao longo de uma praia, em que os banhistas se distribuem uniformemente. Trata-se de um ambiente suficientemente "linear" para ser bem representado pelo modelo.

Considere, adicionalmente, que os sorveteiros vendem picolés fob, que os custos de transporte são homogêneos e constantes nas duas direções (praia abaixo e praia acima…), e que há informação e concorrência perfeitas.

Finalmente, assuma que, tendo conversado entre si, os sorveteiros iniciam o dia se posicionando nas posições 1/4 e 3/4 da praia, de tal forma que cada um deles fica sendo o fornecedor mais conveniente (isto é, menos distante) para exatamente metade dos consumidores potenciais. Veja a Figura 1.

Como, no entanto, o mercado é competitivo e os sorveteiros são "espertos", um tentará conquistar parte do mercado do outro, segundo o costume em vigor no mundo dos negócios. Assim, digamos, o sorveteiro que estava na posição 1/4 moverá seu carrinho para perto do outro sorveteiro (que está na posição 3/4), pretendendo ampliar sua participação, conforme representação da Figura 2.

Este por sua vez, reage, movendo seu carrinho em direção ao centro da praia, procurando "cortar" a iniciativa do primeiro (Figura 3).

Eles vão se alternando até que, ao atingirem a posição 1/2, novas movimentações tornam-se inócuas e eles param, um de costas para o outro, no meio da praia (este é o conhecido "princípio da mínima diferenciação"). Cada sorveteiro atendendo metade do mercado. Como no início. Mas com a diferença de que os consumidores agora saem prejudicados pois devem se deslocar mais. E também os sorveteiros saem prejudicados pois fazem uma concorrência destrutiva, uma vez que os consumidores agora podem jogar um contra o outro mais facilmente. Segundo consta, esta é uma simplificação das idéias apresentadas por Harold Hotelling em seu artigo "mais citado do que lido" "Stability of Competition", de 1929 (eu mesmo cito de segunda mão, baseado, de novo, em BROWN 1992).

Pessimismo e otimismo. Nota-se neste modelo, que o comportamento "racional" dos agentes, leva a um resultado irracional e deletério. Trata-se de um modelo pessimista.

Mas o interessante é que, postulando mecanismos diferentes daqueles admitidos nos capítulos anteriores, o modelo de "mínima diferenciação" de Hotelling deduz uma aglomeração das atividades comerciais no "centro" do espaço econômico. O que converge com os resultados dos modelos do "Lugar Central" e de "Leilão de Aluguéis".

Há no entanto, razões mais otimistas para justificar este processo, mesmo do ponto de vista da mínima diferenciação: economias externas e redução da incerteza.

É comum encontrar áreas das cidades que concentram certos tipos de comércio. Em S. Paulo temos um grande número de lojas de lustres e luminárias na Rua da Consolação; de lojas de ferramentas e material elétrico na Rua Santa Ifigênia; de móveis, na R. Teodoro Sampaio; de vestidos de noiva na Rua São Caetano, e assim por diante.

Do ponto de vista do consumidor, ao contrário do que fica implícito no modelo de Hotelling, há um benefício na aglomeração de comerciantes, principalmente quando fornecedores de bens de compra esporádica: torna-se para o consumidor muito mais fácil encontrar o item procurado, pois o estoque conjunto dos diversos varejistas é maior e mais diversificado que qualquer um deles poderia manter isoladamente; também fica mais fácil comparar preço e qualidade dos produtos. Reduz-se, assim, o risco causado pela informação incompleta, que é o que tipicamente ocorre em mercados reais. Em conseqüência destes benefícios, há um maior afluxo de público a estas regiões do que ocorre em locais onde se posicionam lojas isoladas.

Por outro lado, do ponto de vista do fornecedor, há uma "economia externa": a competição exacerbada entre os varejistas é mais do que compensada pelo aumento do número de consumidores atraídos para a região. E, finalmente, há uma sensível redução no risco de implantação do negócio: a existência de várias outras lojas do mesmo ramo indica claramente a existência de mercado naquele ponto.

Explicações inconclusivas. Seria de se esperar, diante destes argumentos, que a disposição das lojas apresentasse regularidades de aglomeração facilmente identificáveis e explicáveis: uma maior tendência de co-ocorrência de fornecedores de bens de alto nível hierárquico versus uma maior dispersão de fornecedores de bens de conveniência, por exemplo; ou, ainda, uma alta correlação entre clusters de lojas e clusters de população.

Mas não é este o caso. Ao contrário, estudos científicos têm chegado a resultados fracos ou até contraditórios.

Isso talvez ocorra pela dificuldade em caracterizar e medir padrões de dispersão. As abordagens puramente descritivas tendem a ser ingênuas, o que não surpreende pois não é difícil nos equivocarmos, como se pode verificar pelos gráficos da Figura 4, em que o gráfico da esquerda representa um processo aleatório e o da direita uma distribuição de pontos autocorrelacionada. Note que a impressão é de que o contrário ocorre, isto é, a figura da direita é a que parece aleatória.

Além das dificuldades estatísticas e de percepção, há também uma sobreposição de forças concomitantes difíceis de desembricar: além das relações entre estabelecimentos concorrentes, há as tensões geradas pela disposição de estabelecimentos complementares (lojas de roupas e de acessórios, por exemplo) e de estabelecimentos antagônicos (por exemplo, joalheiro e açougueiro). A estas juntam-se o efeito das vias de acesso, dos meios de transporte, da distribuição da população, etc, etc.

Do discurso coercitivo. Em resumo: se alguém disser que os sorveteiros ficam no meio da praia, duvide. Pode ser que sim, pode ser que não. Pesquise aí em sua memória. Na praia que eu freqüento os sorveteiros ficam andando para lá e para cá. Se você não protestou ao ler o primeiro parágrafo, não se aborreça. Afinal, o que alguém se dá ao trabalho de dizer em um livro deve estar certo.

Francisco Aranha, Doutor em Administração de Empresas, é professor da FGV/EAESP e consultor em Marketing de Precisão. Email:francisco.aranha@fgvsp.br – Website: www.fgvsp.br/aranha