Colunista alerta que empresas de geotecnologias precisam ampliar sua capacidade de integrar informações de todos os tipos

"Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Por meu bom, de desde mocinho". É o sertanejo Riobaldo que nos fala, em "Grande Sertão: Veredas". Contando suas próprias coisas com a sua própria linguagem, num fluxo do pensar onde a linguagem inesperada é antes expressão de saber universal que de modo rústico de conversa, Riobaldo repassa os temas insolúveis do ser humano – amor, morte, pecado e perdão – numa história mais própria ao hipertexto que das páginas de um livro.

Não tendo a pontaria nem os alvos visíveis de Riobaldo, somos também presas de um tempo que nos escapa, mas que se tornou uma quasi-obsessão em nossa sociedade tecnológica. Afinal, todos querem antever o futuro, mas para que lado mesmo fica o futuro? Como as instituições podem tornar-se melhores com o uso da geoinfor-mação? Como as empresas podem se antecipar e oferecer o que o mercado precisa, mas ainda não sabe? E as instituições de ensino e pesquisa, como podem começar a ensinar hoje o que será importante daqui a 5 ou 10 anos? Claro que só haverá respostas aproximadas, mas vale a pena examinar este tripé (mercado – empresas — pesquisa) na busca de indicadores difusos que tornem este processo de adivinhação menos endoidecedor.

No recente congresso "GEOBrasil", realizado em São Paulo, foi divulgado que o tamanho do mercado brasileiro de geoinformação, incluindo as áreas de levantamentos de dados, softwares, equipamentos e demais serviços, seria de mais de R$ 1 bilhão por ano, e que 85% dos empregos do setor estão vinculados a pessoas com curso superior ou técnicos qualificados. Os dados, embora ainda incompletos, mostram um crescimento substancial do setor nos anos recentes. Para fins de comparação, somente o mercado americano de sistemas de informações geográficas em 2002 seria da ordem de 1.4 bilhões de dólares, ainda dominado pelos clientes de governo (68% do total), de acordo com a consultoria de Frost & Sullivan. O principal problema com os levantamentos como estes é a questão básica que tentam resolver: afinal das contas, quem é o mercado de geoinformação? Atualmente, duas tendências complementares podem ser identificadas: a tendência de clientes antigos solicitarem dados e serviços melhores e a inserção das geotecnologias em empresas que não utilizam informação geográfica. Para simplificar o raciocínio, rotularemos o primeiro cenário de "mais-e-melhores-dados" e o segundo de "localização-é-mais-um-atributo-de-dados-da-empresa". Deve-se ainda levar em consideração uma mudança tecnológica fundamental: o uso de sistemas gerenciadores de bancos de dados para armazenar tanto os atributos quanto as geometrias dos dados geográficos, e permitir o acesso e compartilhamento eficiente de dados em ambiente multiusuário.

No cenário "mais-e-melhores-dados", a demanda por serviços decorre da necessidade dos clientes em refinar suas bases cartográficas. No setor privado, este mercado vem dando sinais de saturação, especialmente em função da consolidação do setor de telecomunicações, e do cumprimento das metas de universalização dos serviços fixadas pelas agências reguladoras. Em contrapartida, o setor público ainda não recuperou sua capacidade de investimento. Muitas instituições públicas de grande porte (como prefeituras e órgãos de cadastro) enfrentam hoje o rescaldo de grandes projetos de investimento nos anos 90, que geraram ambientes proprietários e em rápida obsolescência. Tais insucessos são hoje um fator limitante para uma nova rodada de investimentos no setor público.

No cenário "localização-é-mais-um-atributo", o uso das geotecnologias nestas organizações deverá ser muito diferente do GIS "tradicional". Neste caso, o cliente já dispõe de grandes bases de dados (como os clientes de um supermercado) e seu interesse é em saber qual o retorno de um substancial investimento para usar o componente geográfico associado a seus dados. A questão crucial neste caso é: "o que minha empresa ganha de novo com a geoinformação?" Para responder a este desafio, será preciso mais do que gerar mapas coloridos. Uma sólida dose de estatística espacial, aliada a bons fundamentos de economia empresarial, serão essenciais. Que empresas de serviço irão ocupar este mercado? Pode-se prever um embate entre as empresas de geotecnologias, que conhecem as questões cartográficas mas não o problema do cliente, com as companhias de tecnologia de informação, que conhecem o cliente e irão buscar incorporar as tecnologias de localização espacial ao seu baú de ferramentas. Este embate tende a ser desfavorável às empresas de geotecnologias, a menos que… estas deixem de ser focadas apenas em mapas e se tornem empresas de tecnologia de informação! Para ter sucesso nos anos vindouros, as empresas terão de ampliar muito sua capacidade de integrar informações de todos os tipos, e não apenas as vindas de mapas.

Este desafio não é apenas tupiniquim. Nos Estados Unidos, algumas empresas de geotecnologias estão criando divisões especializadas para atender o mercado de serviços baseados em localização, como fizeram a Intergraph e Autodesk. Num recente levantamento de empregos do setor (www.gisjobs.com), as melhores ofertas de emprego exigem qualificação em informática, com conhecimento de ORACLE, SQL, C++ ou VisualBasic e HTML/Java.

"Sertão é isto: os senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera". Os dizeres de Riobaldo bem ilustram nosso dilema coletivo. Lutamos 20 anos para construir um espaço próprio para as geotecnologias, com tecnologia barata e de fácil uso, e logo agora que conquistamos nosso pedaço, vem a realidade e nos impele a mudar de novo! E aqui cabe a pergunta final: como pode a universidade apoiar este processo de reconversão técnica e empresarial? Para dar mais um exemplo gringo, nossos colegas da área de geoinformação da Universidade do Maine, liderados pelo prof. Max Egenhofer (que já esteve várias vezes no Brasil) acabam de criar um curso de graduação em "Engenharia de Sistemas de Informação". Um dos objetivos é formar alunos "capazes de desenvolver tecnologias de informação e sistemas que respondam a demandas complexas envolvendo interação entre pessoas e negócios."

Aqui na terra de Diadorim, uma resposta possível está sendo dada por um consórcio de instituições que acaba de lançar a TerraLib, uma biblioteca de software livre para construção de sistemas de informação que incluem dados espaciais e temporais, disponível no sítio http://terralib.dpi.inpe.br. Descrita em maior detalhe em reportagem desta edição, a TerraLib pretende permitir que as empresas e usuários possam se apropriar criativamente da experiência das instituições de pesquisa que participam do projeto e assim ganhar eficiência para atender às novas demandas do mercado.

"O real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia (Riobaldo)". Pois é, a busca pelo futuro tem suas surpresas e exige de nós uma atitude de aceitar que a mudança é a única coisa constante na vida. Afinal, como dizia o cangaceiro Corisco, "o futuro fica em cima do futuro, e não embaixo do passado".

Gilberto Câmara é coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento em Geoprocessamento do INPE, sendo um dos responsáveis pelos sistemas SGI e SPRING (www.dpi.inpe.br/gilberto).