Alguns termos técnicos da área de geotecnologias e suas respectivas traduções

Existe algo mais irritante do que aquele usuário de GIS que "ataca" o neófito com frases como "… mas aí eu dei um LOAD no SHAPE, mas a VIEW não estava preparada, então eu tive que dar um ADD EVENT no LAYER, mas o GEODATABASE não aceitou, e disse que tinha uma FEATURE errada…"? Antes que alguém reclame, ou que procure deduzir de que software estou falando, vou explicar: a frase anterior não tem sentido, não tem apenas termos de um GIS particular, e não foi proferida de fato. Mas serve para demonstrar algo que ocorre cotidianamente em nossa rotina de mudanças tecnológicas: a entrada de termos e expressões técnicas em nosso vocabulário é mais rápida do que a nossa capacidade de disseminar traduções adequadas, e com isso fazer evoluir nosso idioma. O resultado é uma mistura, nem sempre necessária, de termos em inglês em nosso discurso tupiniquim.

Não sou nenhum purista quanto ao uso de expressões estrangeiras, pelo contrário. Porém acho que precisamos de duas coisas: limitar os exageros e entrar em acordos, consistentes com as regras básicas do português, sobre as traduções, quando pudermos fazê-las. Sim, porque nem sempre uma tradução soa bem ou é absorvida pela comunidade. Cito o exemplo do scanner, um equipamento que, via barateamento crescente, se tornou popular em nossas casas. O dicionário agora preconiza: escâner. Assim mesmo, com circunflexo e tudo. E nos induz a usar escanerização, em vez de scanning, digitalização em scanner, rasterização ou outras formas vistas por aí nos últimos dez anos. Foi bom, porque pôs ordem na bagunça; foi ruim, porque ficou estranho para os ouvidos de quem se acostumou ao termo estrangeiro, e se apegou a ele (até porque usá-lo no original dá um certo status).

Esse fenômeno é mais marcante no discurso de técnicos ligados a representantes de uma geotecnologia, pois essa ligação os leva a repetir no original os termos que são próprios do fornecedor estrangeiro. Esses termos estão comercialmente ligados a partes da arquitetura do produto, e assim os instrutores ou técnicos, ao usar os termos sem tradução, estão na verdade reforçando os aspectos peculiares da solução com a qual trabalham, uma espécie de marketing tecnológico de cunho proprietário, já que às vezes esses termos são até registrados como marca do desenvolvedor da tecnologia.

Em algumas situações, a tradução ou adaptação para o português é feita com naturalidade, devido à semelhança do som das palavras, porém sem maiores preocupações quanto ao significado. Um exemplo é a expressão digital terrain model, ou modelo digital do terreno.

Sendo assim, aproveitando minha breve formação como tradutor, revisarei a seguir alguns termos técnicos de nossa área e suas respectivas traduções, procurando defender um padrão em cada caso. São escolhas que considero necessárias, uma vez que não acho adequado usar a terminologia específica de um determinado produto para falar de aspectos genéricos da tecnologia, principalmente para apresentá-la a iniciantes ou estudantes.

(to) Georeference. Georreferenciar. Ato de atribuir localização a uma entidade ou fenômeno. Observe o uso dos dois erres, algo obrigatório para palavras iniciadas com r ou s e prefixadas com geo. Caso a palavra prefixada seja iniciada com h ou com vogal, torna-se obrigatório o uso do hífen: geo-objeto, geo-espacial. Caso a palavra prefixada não se encaixe em nenhum desses casos, o prefixo segue direto, sem hífen: geocodificar, geocampo, geodado. Vide o Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que consta nos principais dicionários.

Data conversion. Conversão de dados. Ato de transferir documentos de um meio de armazenamento para outro, em geral de um meio analógico para um digital. Não confundir com processos de simples mudança do formato de armazenamento, no mesmo meio, algo que é denominado tradução de formato, e em inglês é data translation (por exemplo, traduzir uma imagem do formato TIFF para o JPEG).

Shape. Forma geométrica. Um problema nessa tradução é o uso dado ao termo shape pela família de produtos da ESRI, gerando o termo em inglês shapefile (arquivo em formato shape) – assim mesmo, emendado (vide http://www.esri.com/library/ whitepapers/pdfs/shapefile.pdf). No uso corrente, fica às vezes difícil distinguir entre uma forma geométrica e um arquivo de objetos geográficos. Para designar o formato do arquivo, concordo em manter o termo original, uma abreviação de shapefile; para designar a representação geométrica de um objeto geográfico, prefiro a versão em português.

Feature. Objeto geográfico. Uma tradução que me agrade é difícil, porque não gosto do termo no original. Sua origem é a terminologia cartográfica, que se refere a características específicas (features) dos mapas. No dicionário (vide www.dict.org), feature se refere a uma característica marcante ou mesmo surpreendente de algo ou alguém. O uso mais comum em inglês não técnico é para referir-se a características faciais de uma pessoa, daí a tradução usual, feição. Porém o termo tem outros significados, como traço, aspecto, caráter distintivo; feature movie é o longa-metragem, featured article é a reportagem de capa. Com esse contexto, fica difícil justificar a tradução como feição, a não ser pela semelhança fonética. Para piorar, o termo feature é usado com significados ligeiramente diferentes entre os desenvolvedores de software. Em comum entre todos eles, existe a necessidade de se ter uma designação genérica para um componente do banco de dados geográfico – ou seja, um objeto geográfico. Só que a escolha do termo feature ocorreu antes da orientação por objetos se tornar algo popular em nosso meio.

Geographic information systems (GIS) . Sistemas de informação geográficos (SIG). Essa é a mais polêmica expressão quando se trata de tradução. Há quem prefira "sistema de informações geográficas" ou até mesmo "sistema geográfico de informação". Como no caso dos estrangeirismos ligados a termos específicos de um software, a tradução reflete um certo marketing de cada grupo que a propõe. Na minha opinião, a expressão original identifica uma classe de sistemas na qual estamos interessados, e deriva da expressão information systems (sistemas de informação), usual na área de computação, associada à particular característica que permite trabalhar com dados geográficos. Portanto, considero que a tradução ideal é Sistemas de Informação Geográficos, cuja concordância reflete mais adequadamente a noção fundamental de que um SIG é, antes de mais nada, um sistema informatizado de tratamento de informação. Como a sigla corresponde a sistemas de informação, no plural, não considero necessário nem elegante usar uma designação de plural para ela, como em "SIGs".

Database. Banco de dados. A tentação é de traduzir como "base de dados", mas nos meios de acadêmicos de computação há um grande acordo tácito para que se use banco de dados. Existem aqueles que distinguem uma coisa da outra, dizendo que base de dados se refere ao conteúdo do banco de dados, ou seja, a um conjunto de dados básicos para alguma coisa, porém neste ponto não há consenso. A maioria dos autores usa "gerenciador de banco de dados" para se referir ao software, e "banco de dados" para citar o conteúdo.

Layer. Camada ou classe de objetos. O desafio aqui é traduzir de acordo com o contexto. Quando se está falando de sistemas CAD (computer-aided design, outra expressão cuja tradução não "pegou"), o significado é mesmo de camada, na analogia com plantas superpostas. Quando o contexto é o de bancos de dados espaciais, e por extensão o de SIG, é preferível dar ao termo o significado de "conjunto de objetos estrutural e semanticamente semelhantes". Faz pouco sentido chamar de layer uma tabela de um banco de dados espacial, já que a analogia com mapas na mesa de luz também perde força nesse contexto. O mesmo raciocínio se aplica a coverage, outro termo usualmente intraduzível (cobertura? eu acho que não…), porém intimamente ligado à arquitetura de uma linha de produtos específica – e que está inclusive a caminho de abandonar esse conceito.

Mouse. Mouse. Traduzir mouse como "rato", como fazem os portugueses, já é demais. Esse termo nós já adotamos, como dezenas de outros, junto com suas respectivas siglas: software, hardware, shopping center, CAD, SQL, GPS, TIN, etc. Ou será que tem quem prefira chamar GPS de SPG (Sistema de Posicionamento Global)?

Clodoveu Davis é engenheiro civil, doutor em Ciência da Computação, pesquisador da Prodabel – Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte e professor da PUC-MG. clodoveu.davis@terra.com.br