Georreferenciamento: mais um ano se passou

É um dever da comunidade apresentar sugestões construtivas para normatizar os procedimentos

A terra, além de representar riqueza e mercadoria, é um recurso comunitário escasso, havendo uma estrita dependência do homem em relação ela, pois para ele, como para todo ser vivo, nela está a água, o alimento e o abrigo. Esta relação apresenta uma dinâmica, mas a estreita dependência entre o homem e a terra permanece. À medida que aumentam as populações é maior a necessidade de gerir a terra e demais recursos dela provenientes. Sua gestão passa pelas questões básicas de identificar e localizar no espaço e no tempo as informações diversas, tais como os recursos, a propriedade, os direitos privados e públicos, os usos e outras informações ou questões a relativas a terra, de forma a bem conduzir sua gestão.

Neste contexto foi alterada a lei de Registro Público no Brasil, instituindo a revisão cadastral e o cadastro de imóveis, comum aos órgãos do Estado, em uma base única, provida de referência espacial. Esta atitude do governo brasileiro foi realizada rapidamente num prazo de pouco mais de dois anos; de 2000 a 2002 a lei foi proposta e regulamentada. Falta apenas a normatização de procedimentos a ser definida pelo Incra. Espera-se que até a publicação deste artigo estejam estes procedimentos dispostos ao público, ainda que em forma de consulta prévia à comunidade, para depois então serem tornados definitivos, após as alterações que possam ser sugeridas.

Com o surgimento desta lei surgiu também um significativo campo de trabalho, tanto na área da engenharia quanto na jurídica, pois são milhões de imóveis a serem cadastrados e um número equivalente de pessoas e entidades que, por um motivo ou outro, poderão necessitar da justiça. Ante esta perspectiva de mercado de trabalho não se deve ter turvado o discernimento, pois, em relação aos levantamentos dos imóveis, para os quais anteriormente não se exigia muita responsabilidade inexistindo até mesmo um padrão para os levantamentos de terras privadas, estes agora passam a revestir-se de extrema responsabilidade pelas seguintes considerações:

a)O cadastro moderno tem um objetivo amplo em benefício de toda a sociedade brasileira, ordenando o uso e ocupação do solo, fornecendo informações para diversas políticas do Governo, promovendo justiça, por exemplo;
b) São os levantamentos agora georreferenciados, existindo um padrão que permitirá avaliar e confrontar os diversos trabalhos realizados e os resultados obtidos, sob o ponto de vista de um único sistema de referência, o que anteriormente não realizado;
c) Está sendo exigida maior responsabilidade do proprietário e profissional, cabendo a este último a maior parcela, pois ele é o especialista que tem a responsabilidade técnica por todo o trabalho de identificação do imóvel em atendimento ao artigo 176 da lei 6015 de 31-12-73. Esta identificação, remodelada pela lei 10267 é que atenderá o princípio da especialidade (descrição e individuação perfeita, que não deixa dúvidas) viabilizando a devida segurança jurídica ao título.

Sem dúvida alguma esta nova ordem requer a adequação do conhecimento daqueles que ainda não se preocuparam em fazê-lo. As escolas de Agrimensura e Cartografia já o fazem desde de alguns anos. Os profissionais que ainda estão defasados, afagados pela situação anterior, necessitam atualizar seus conceitos ante as novas tecnologias como o GPS diferencial e reavivar os conhecimentos em geodésia, por exemplo.

Para exemplificar a responsabilidade transcrevo aqui um trecho de um artigo de Sérgio Jacomino, intitulado Registro e Cadastro – Uma Interconexão Necessária, que pode ser obtido na integra na homepage do 5o Cartório de Registro de Imóveis (www.quinto.com.br), onde é comentada a situação anterior a lei 10 267:
Acostumados ao jargão técnico que se fez dominante após o advento da Lei 6015/73, dizemos que os imóveis matriculados devem estar "especializados", isto é, perfeitamente descritos e caracterizados, com todas as minudências que permitam individuá-los e estremá-los de quaisquer outros. Perseguimos a segurança jurídica, fazendo concretizar-se o princípio de especialidade. Mas, lamentavelmente, estamos faltos de uma abordagem estrutural, uma visão de conjunto, pois a segurança jurídica que se busca na precisa especialização do bem imóvel não logra atingir perfeitamente a conexão da parcela com sua confinância. Não há no registro uma representação da imbricação que se verifica no solo. Ou seja, temos uma visão fragmentária das parcelas, sem qualquer elemento de amarração estrutural com o todo. Em suma, tem-se, ainda, uma visão atomizada, pulverizada, desestruturada, dos imóveis que se entretecem na vasta malha do território.

À medida que forem preenchidas certas condições cada imóvel deverá se integrar ao novo sistema. Nos casos de compra e venda e de parcelamento de solo há um escalonamento estabelecido pelo decreto 4449 conforme abaixo segue:
Art. 10. A identificação da área do imóvel rural, prevista nos §§ 3o e 4o do art. 176 da Lei no 6.015, de 1973, será exigida, em qualquer situação de transferência, naforma do art. 9o, somente após transcorridos os seguintes prazos, contados a partir da publicação deste Decreto:
I – noventa dias, para os imóveis com área de cinco mil hectares, ou superior;
II – um ano, para os imóveis com área de mil a menos de cinco mil hectares;
III – dois anos, para os imóveis com área de quinhentos a menos de mil hectares; e
IV – três anos, para os imóveis com área inferior a quinhentos hectares.

Aqueles imóveis que forem objeto de ação judicial também deverão estar conforme o novo sistema de cadastro..

"Art. 225. ………………………………………………………………………………………….
§ 3o Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais."(NR)

O Governo prevê que decorra ainda por volta de 15 anos para que o cadastro possa ser completado. Um dos dispositivos da lei estabelece que os proprietários de imóveis rurais com área abaixo de 4 módulos fiscais terão isenção de custos nos levantamentos georreferenciados. Como se estima que existam 4,8 milhões de imóveis com dimensão abaixo de 4 módulos fiscais – o módulo varia conforme a região – prepara-se um projeto para viabilizar estes serviços, que serão geridos pelo Governo e executados pela iniciativa privada dentro daquele prazo.

Com um empreendimento desta envergadura é natural que surjam muitas questões e controvérsias. O espaço desta coluna é muito pequeno para falar sobre todas. Elas cobrem campos desde a falta de profissionais habilitados em número suficiente passando pelas tecnologias que seriam mais adequadas e a repercussão de ações nos tribunais e na economia do País.

Nos fóruns e debates discute-se sobre estes diversos aspectos, mas observa-se um ponto de convergência da maioria: enfim teremos um instrumento para disciplinar a questão cadastral no Brasil que tanto pecava por não conseguir identificar inequivocamente cada parcela. Este é um anseio da comunidade que desde há muito tempo se debate em universidades e congressos.

A situação fundiária no Brasil chegou a tal ponto que muitos compraram títulos que não possuíam terra e vice-versa. Atualmente poucas são as descrições de perímetro, contidas em título, que possibilitam o cumprimento inequívoco do artigo 176 da lei 6015, permitindo a perfeita identificação do imóvel. Raros são aqueles que permitem sua precisa localização geográfica. Por conta disto surgem diversas possibilidades de fraude com terras, ou ainda, com títulos, para não citar ainda a precariedade do gerenciamento do uso do solo.

O Incra estabeleceu que o erro em posição de cada ponto de divisa não deve ultrapassar 0,50 m. Com isso um lado de uma divisa pode ter diferenças da ordem de 0,7 m. Por outro lado, o novo critério é a posição do ponto de divisa. Esta deverá ter a referida precisão avaliada dentro do Sistema Geodésico Brasileiro. Para tanto, o SGB possui: as Redes Estaduais, a RBMC (GPS dupla freqüência) homologará a rede ativa do INCRA, chamada RIBAC (GPS L1). O restante do sistema não proporciona esta capacidade e portanto deverá ser evitado.

Para obter a precisão posicional adequada deverá ser avaliado não só o apoio do SGB, mas também o transporte de coordenadas, até a área, a densificação deste por toda a área ou em parte dependendo da tecnologia empregada e a o processo de determinação de cada ponto. Este último deverá ter constituição adequada para que possa atender pelo menos duas necessidades: a correta e pronta identificação do ponto e a adequada verificação dos valores, que naturalmente poderá ser feita pelo próprio Incra ou pelo proprietário, imediatamente após o levantamento ou após decorrido longo prazo.

Para que estas duas condições possam ocorrer sem dar margem a equívocos é necessário que este ponto tenha materialização e estabilidade adequadas. Neste momento sempre vem à baila a seguinte questão: É difícil convencer o proprietário a implantá-los! Quanto custa o marco e sua implantação? Quanto custa os mourões e sua implantação? As divisas são muito tortuosas! Serão muitos os marcos.

O convencimento dependerá da obrigatoriedade e também do próprio profissional que deve ter a devida consciência de que isto é um procedimento benéfico a todos os envolvidos. Deve a partir daí transmiti-la de forma adequada ao proprietário. Este último, embora possa ter restrições quanto ao custo, à luz da razão tenderá a concordar, pois será em seu próprio benefício.

As divisas são tortuosas principalmente pela falta de padronização e de referências, quando não o próprio desleixo. Existindo princípios norteadores, bem como a necessidade de se obter o comum acordo sobre cada ponto de divisa antes do levantamento, como agora há, a tendência será a de que os proprietários, bem orientados, promovam as correções em suas linhas divisórias "divagantes", previamente a medição, diminuindo a quantidade dos pontos, dividindo os custos e tornando as divisas o mais regular possível.

Segundo o Incra, a normatização dos procedimentos para georreferenciamento estará à disposição para sugestões. Consiste em um dever da comunidade apresentar sugestões construtivas e somar em benefício de todos. Num contexto como o brasileiro, onde a questão do cadastro ficou esquecida por quase um século, cabe-nos ousar e romper as barreiras com sensatez.

Régis Fernandes Bueno é mestre em Engenharia pela EPUSP, engenheiro agrimensor pela FEAP, professor adjunto da Unisantos e diretor da Geovector Engenharia Geomática. rfbueno@attglobal.net