De como é possível otimizar a aplicação da lei em prol de um Brasil mais desenvolvido

Estamos a quatro anos do início da vigência da lei 10.267 de 28-08-01 e praticamente dois anos após a data de aprovação da norma para georreferenciamento de imóveis rurais que estabeleceu um padrão para esses serviços. A complexidade da questão exigiu até o momento mais do que esses dois documentos, e exigirá ainda mais até que se chegue ao objetivo final: dotar o território brasileiro de um cadastro eficiente.

Naquela época inicial, a sociedade brasileira demarcou as primeiras estacas do eixo de uma via que tem por objetivo final conduzir a uma evolução. Esse progresso deve partir de um estado arcaico para chegar a outro, moderno e minimamente estruturado, quando poderá retornar à sociedade um fluxo de informações seguras sobre o uso da terra, maior segurança jurídica e nos negócios imobiliários, maior justiça no campo, melhores resultados para a economia do País; enfim, uma série de impactos positivos que os países mantenedores de um cadastro imobiliário conseguem auferir.

Para promover essa evolução é preciso que os vários segmentos envolvidos se alinhem num esforço conjunto com aprimoramentos contínuos. Sinergia, que requer grandes esforços consideradas certas características de uma sociedade cujo paradigma com relação à gestão da terra ainda se baseava na vaga e descontrolada descrição de bens onde se pode encontrar pérolas tais como: “segue em rumo médio em curva de 54º 15’ NO”, “segue com declividade de 29º 30 ‘SE” entre outras, de cunho menos técnico e mais surrealista. Este é um dos detalhes que sempre viabilizaram ambigüidades, distorções, conflitos, crimes e demandas intermináveis, alimentadas por figuras como os grileiros, tão ricamente descritas na literatura, nos jornais e nos processos judiciais. São seus colaboradores os corruptos e corruptores de plantão nas instituições envolvidas, pessoas cujas ações podem ser perpetradas em diversos níveis, bem como aqueles que desempenham sua profissão sem respeito à ética.

A contar da primeira lei temos, pelo menos, mais três outros balizadores: a norma do INCRA, mais os provimentos, as portarias e outros instrumentos que podem ser aplicáveis para disciplinar as atividades do georreferenciamento, sem esquecer que temos pela frente a mudança de referencial geodésico. Neste momento todos esperam mais uma correção de rumos que poderia dilatar os prazos para a exigência do georreferenciamento, alterando aqueles estabelecidos segundo a classificação do imóvel, em função da dimensão de sua superfície, conforme estabelecido pelo art 10 do Dec. 4.449, de 30-10-2002. Por esse decreto, finda em 31 de outubro o prazo para que as propriedades, com área inferior a 500 ha, passem pelo processo de georreferenciamento antes de qualquer situação de transferência.

A complexidade deste assunto exige que os engenheiros tenham conhecimentos além das ciências normalmente exigidas nos levantamentos geodésicos voltados ao cadastro. Para o bom desempenho da agrimensura, eles devem também ter noções de direito, mantendo-se atualizados quanto aos procedimentos ditados pelas leis, decretos e outras normas que afetam suas atividades, bem como ter sensibilidade para os problemas sociais, requisitos sem os quais não é possível levar a bom termo um processo de georreferenciamento. De forma análoga exige-se que advogados e registrários tenham noções sobre alguns conceitos de agrimensura para que possam melhor compreender as necessidades, dialogar com os responsáveis técnicos e realizar sua parte no processo.

Apesar dos debates, divulgações e o trabalho diário com a questão, ainda se verificam engenheiros, cartorários e advogados que declaram não estar completamente a par dos procedimentos para a condução de sua parte no processo. Entidades como o Instituto de Registrários do Brasil (IRIB), trabalham para minimizar este aspecto, principalmente no que tange aos cartorários, estendendo-se também até a comunidade tecnológica. Curiosamente, verifica-se menor esforço deste outro lado. Por parte dos representantes dos profissionais da área tecnológica foram veirificadas poucas ações construtivas e coordenadas. A mais marcante tem efeito danoso e injusto. Visou estender atribuições de georreferenciamento a uma gama maior possível de profissionais, com formações e níveis diversos, dispares do objetivo, permitindo a responsabilidade técnica através de meros cursinhos de especialização. Tomou-se por base argumentações precipitadas, superficiais, desde aquelas de se tratar de uma simples coleta de dados, até aquela alarmista de que faltariam especialistas para atender a demanda, como se da noite para o dia houvesse uma procura de grandes proporções para cadastrar mais de quatro milhões de imóveis. De nada adiantou a gestão feita por uma comissão de especialistas com o intuito de esclarecer a questão. A experiência demonstra hoje, com números, o que o bom senso previu: passados alguns anos a grande demanda ainda não ocorreu e pretende-se dilatar os prazos, diminuindo a possibilidade dessa ocorrência. Faz-se necessária a qualidade, não a quantidade. A qualidade requer material humano especificamente formado e instituições comprometidas.

Que não se tome estas palavras como argumento para a idéia de que estaria sendo exigido com o georreferenciamento algo que vai além do devido e das possibilidades. Essas disciplinas fazem parte do curriculum mínimo dos cursos de engenharia, naquelas modalidades que já possuem natural atribuição para o georreferenciamento. O que se faz necessário é uma atualização para uma parcela dos profissionais, bem como incentivo à formação de novas gerações através dos cursos de graduação existentes e implantação de novas unidades nas universidades.

Além da aplicação das ciências e tecnologias envolvidas, do responsável técnico pelo georreferenciamento se requer, por exemplo, que promova extensa pesquisa sobre documentos, identifique e analise as descrições nos títulos, esclareça as situações de fato, observe em campo, avaliando as condições específicas, as necessidades das pessoas, as confrontações entre os imóveis e verificação das pessoas que devem responder pela declaração de reconhecimento de limites. Essa é uma das etapas que mais consomem tempo no georreferenciamento para que se possa produzir um trabalho adequado às normas. O profissional experiente faz uma análise criteriosa, evitando problemas para si e seu cliente, pois ambos responderão pelo que fizerem. O modo de proceder adequado é moroso e consome tempo em estudos, entrevista, negociações. Por vezes abrem-se velhas feridas nas relações entre vizinhos ou entre condôminos.

Quando se promove esta análise é que verificamos em profundidade a extensão dos problemas gerados com origem na má fé e senso de oportunidade de pessoas mal intencionadas que se beneficiaram das lacunas das leis, da falta de um sistema de referência único, no desconhecimento dos proprietários de seus direitos e deveres e da falta de um padrão, entre outras coisas, que a lei 10.267 de 28-08-01 procurou corrigir. Podemos nos deparar com várias situações num mesmo trabalho encontrando: descrições de imóveis ininteligíveis ou mesmo absurdas, compradores que jamais registraram sua compra, loteamentos disfarçados e sobreposições de limites. Soma-se também a tudo isso a falta de conhecimento, a desconfiança, a mania do brasileiro de deixar para última hora ou, de certo senso, de que a propriedade imóvel não requer todo esse rigor, essa forma toda, ou ainda, que a lei não "pegará". Já ouvi isso de dezenas de pessoas, que acreditam que o georreferenciamento só serve para se cobrar mais imposto e é um entrave na produção e nos negócios. Este argumento é usado por aquele que deixa de verificar haverá maior segurança na venda e compra, maior agilidade nos negócios, o custo menor para a produção, a melhor orientação da política agrícola, a justa arrecadação de impostos ou ainda o melhor gerenciamento ambiental. Todos o benefícios virão ao seu tempo, com melhor gestão do recurso terra, após a mudança do paradigma.

Os princípios estabelecidos pelo georreferenciamento colidem diretamente com as necessidades daqueles que sempre tiveram, na inadequada definição da identificação do imóvel, um ponto de apoio para perpetrar ações fraudulentas, ilegais, esconder sua ineficiência e toda sorte de atividades das quais se pôde tirar proveito com os vazios legais, fechados legislação após 2001. Por conta deste estado arcaico de gestão da terra, parte dos imóveis rurais é irregular e traz insegurança aos seus ocupantes. É um dado importante a constatação de que a insegurança dominial é um fator que prejudica a produção. Seus proprietários não possuem os devidos títulos de propriedade e ficam sem acesso ao crédito pois não há como tomar dinheiro emprestado. Eles não podem contar com a garantia que seria proporcionada por sua posse se fosse regularizada, perdendo, portanto, a oportunidade de obter capital e desenvolver seu negócio agrícola.

O que até aqui se descreve, em parte, pode explicar o pequeno número de imóveis que já foram certificados, conforme o quadro abaixo:


Fonte: www.incra.gov.br em 15-10-2005

A título de sugestão, gostaria de comentar que seria profundamente proveitoso se o INCRA promovesse, de forma sistemática, workshops nas capitais dos Estados ou em centros regionais, para expor e debater temas relacionados ao georreferenciamento, tais como: as normas, as necessidades das partes envolvidas, direcionando estes aos profissionais credenciados, os cartorários, os advogados, juízes e promotores, num esforço de avançar mais rapidamente na direção dos objetivos da lei 10.267.

Parece-me que a lei e seu conceito, aos poucos, "estão pegando". Pelo menos hoje temos maior número dos que reconhecem seus benefícios. Porém é preciso maior engajamento da área tecnológica, através dos próprios profissionais, dos Conselhos, das Associações, dos cursos de Agrimensura e Cartografia. É necessário contribuir, formar e informar, cuidar de aprimorar os procedimentos, corrigir rumos, estar atento às instituições e promover adequações. Dados os bons tratos, no devido tempo, essa árvore trará bons frutos ao País.

Régis Bueno
Engenheiro agrimensor, Msc e diretor da Geovector Engenharia Geomática.
regisbueno@uol.com.br